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O mal nunca anda só [i]

Dão Real Pereira dos Santos

Vice-presidente do Instituto Justiça Fiscal e membro do coletivo Auditores Fiscais pela Democracia

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Por que será que a gente continua se surpreendendo? Será por falta de atenção? Desde 2017, quando era ainda apenas um deputado federal, calejado com os seus mais de 26 anos de mandato parlamentar e com apenas dois projetos aprovados, o então candidato à presidência da República já declarava em alto e bom som, com todas as letras para não deixar nenhuma dúvida, que a sua especialidade era matar, não era curar ninguém.

Talvez, por uma dessas incompreensíveis ironias do destino, encontramo-nos agora sob o governo do especialista em matar, justamente quando o que mais precisamos é de especialistas em curar e salvar vidas. Não dá para esquecer que já lá no início do seu governo, discursando para empresários e representantes da extrema-direita estadunidenses, ele declarava que tinha chegado ao governo para desconstruir e não para construir[ii]. Mais recentemente, o seu ministro da economia declarou em Twitter institucional que a orientação do presidente era de tirar o Estado do povo[iii], o que nos ajuda a entender o significado da expressão “descontruir”, utilizada anteriormente, quando começava o seu governo.

Coerente com sua especialização, portanto, o chefe do executivo acionou o STF para derrubar os decretos de restrição de locomoção de pessoas adotados pelos governadores do DF, da Bahia e do Rio Grande do Sul para combater o coronavírus. Também vetou integralmente o projeto que visava a garantir internet gratuita para professores e alunos da rede básica de educação[iv].

Ao invés de viabilizar condições para que as pessoas possam se isolar e proteger suas vidas, evitando, assim, um colapso ainda maior na rede pública de saúde, com o pagamento de renda emergencial, por exemplo, ou com a implementação de medidas voltadas ao fortalecimento do SUS, à vacinação em massa e à intensificação dos controles sobre a propagação do vírus, ele prefere inviabilizar as medidas de prevenção, ainda que isso signifique, comprovadamente, colocar as vidas da maioria da população em risco. O que é surpreendente é que continuamos a nos surpreender! Enquanto somos pegos de surpresa, estaremos sempre desprevenidos. Aliás, a desatenção é uma das características marcantes das vítimas potenciais de assaltos, por exemplo.

A tragédia sanitária que estamos enfrentando não pode ser atribuída somente à uma eventual falta de habilidade do presidente e das demais autoridades do governo em lidar com questões de saúde pública, pois estes estão claramente muito mais preocupados com os lucros de alguns setores privados do que com a inviolabilidade do direito à vida das pessoas[v]. Isso fica muito bem evidenciado em uma pesquisa realizada pela Faculdade de Saúde Pública da USP e pela Conectas Direitos Humanos, que analisou as mais de 3.000 normas federais, os atos do governo e as declarações do presidente, ocorridos desde março de 2020, e concluiu que o governo executou uma estratégia institucional de propagação do coronavírus[vi].

O crescimento descontrolado do número de vítimas fatais da pandemia está também relacionado com uma concepção retrógrada sobre o papel do Estado, que vem sendo implementada sistematicamente com uma série de projetos que tem a clara finalidade de esvaziar o Estado e privatizar as políticas públicas. No rol dos responsáveis por essa tragédia, portanto, precisamos incluir também ministros e parlamentares que, mesmo diante da maior crise sanitária e econômica do país, continuam propondo e aprovando medidas só fazem aprofundar cada vez mais o problema. As reformas neoliberais, em curso desde a aprovação do congelamento dos gastos primários, em 2016[vii], e que contam com o apoio de setores econômicos privilegiados, que não param de enriquecer, mesmo em período de recessão, estão na origem da própria crise econômica, do aumento do desemprego, do aumento das desigualdades e da precarização das estruturas do Estado, especialmente daquelas necessárias ao enfrentamento da pandemia.

Os principais países do mundo, inclusive aqueles com governos mais liberais, estão revendo seus paradigmas e reconhecendo a importância do sistema de proteção social, não apenas para enfrentar a pandemia, mas também para enfrentar a crise econômica. Até mesmo o tradicional jornal britânico Financial Times já publicou editorial alertando que os “governos terão que aceitar um papel mais ativo na economia” (Dowbor, 2021)[viii] e que as políticas até recentemente consideradas excêntricas, como renda básica e impostos sobre a riqueza, terão que estar presentes na composição, posição que é compartilhada com o FMI que também reconhece que o investimento público pode impulsionar a saída da crise produzida pela pandemia.

É absolutamente inegável, portanto, que, numa crise como essa, não há saída sem o fortalecimento do Estado e de suas estruturas. Somente o Estado pode transferir renda para as famílias, salvar vidas e manter funcionando a atividade econômica. O gasto público se converte diretamente em receitas privadas, ou alguém imagina que os valores pagos a título de renda emergencial, aposentadorias ou salários dos servidores públicos não se transforma em consumo, aquecendo a atividade econômica? Arantes, Rossi e Dweck (2018) nos alertam que “se no momento de crise o governo buscar superávits, estes se darão às custas de déficits do setor privado, o que pode não ser saudável para a estabilidade econômica e resultar no chamado ajuste fiscal autodestrutivo”[ix]. Mas tudo o que o governo vem propondo, com apoio da maioria dos parlamentares, são formas de cortar ainda mais os gastos públicos, como aconteceu, recentemente, com a aprovação da PEC 186/2019, por exemplo.

O que acontece nos principais países do mundo parece não estar sendo muito bem compreendido por aqui. Ou, por outro lado, podemos suspeitar que os bens públicos estão sendo tratados como um butim, por aqueles que tomam o povo por inimigo vencido e aproveitam todas as oportunidades para converter os direitos sociais em lucros privados, retirando, literalmente, o Estado do povo.

Assim, é preciso ficar claro que, além da forma aparentemente atabalhoada de lidar com a pandemia, a obsessão pelo aprofundamento das medidas de esvaziamento do papel do Estado, disfarçadas de reformas, concretizam a implementação de um projeto muito bem pensado e articulado para apropriação privada dos recursos públicos e para substituição do Estado pelo mercado, inclusive em relação às políticas públicas mais essenciais. O aumento na quantidade de mortes, portanto, não decorre somente da pandemia, mas também desse conjunto de ações institucionais, que fragilizam a vida da maioria da população. Precisamos entender o funcionamento desse método, de “ir passando a boiada” ou de “ir colocando granadas no bolso do inimigo”, para não mais nos surpreendermos, pois, quem é sempre pego de surpresa, não se previne e não se prepara para enfrentar e resistir.

 


[i] Ditado popular.

[ii] “O Brasil não é um terreno aberto onde nós iremos construir coisas para o nosso povo. Nós temos que descontruir muita coisa” (https://www.brasil247.com/poder/bolsonaro-diz-que-chegou-para-desconstruir-e-nao-para-construir).

[iii] https://www.brasil247.com/brasil/guedes-diz-que-vai-tirar-o-estado-do-povo-brasileiro.

[iv] PL 3.477, de 2020 que dispõe sobre a garantia de acesso à internet, com fins educacionais, a alunos e a professores da educação básica pública.

[v] Artigo 5º da Constituição Federal.

[vi] https://brasil.elpais.com/brasil/2021-01-21/pesquisa-revela-que-bolsonaro-executou-uma-estrategia-institucional-de-propagacao-do-virus.html.

[vii] Emenda Constitucional 95, de 2016.

[viii] Dowbor.org.br – Contas Públicas: Entenda a Farsa (2021).

[ix] ROSSI, Pedro; DWECK,  Esther; MATOS DE OLIVEIRA; Ana Luíza (2018) – A Economia Para Poucos, Impactos Sociais da Austeridade e Alternativas para o Brasil – Editora Autonomia Literária.

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