O debate público está no cerne do jogo democrático realizado entre a opinião pública e o Estado, mercado e mídias. A comunicação é de grande relevância social, uma vez que, a partir dela, podem ser firmadas as decisões que levam a sociedade a caminhar em direção à igualdade, à justiça e à liberdade, qualificando, assim, a democracia. Assim, observar quais são os temas acionados na comunicação de um governo nos permite entender quais são as estratégias de comunicação pública agendadas no espaço público e quais pautas ocupam a centralidade do debate promovido pelo Estado.
É inegável que, a partir da chegada das redes sociais, o espaço público e o diálogo que dele emerge ganharam novos contornos na democracia. As fronteiras entre a dimensão pública e a privada se tornaram ainda mais difusas, caracterizando o que Marques e Martino (2016) chamam de “mundo media”, em que uma nova faceta da realidade se estabelece e o que é publicizado passa por um processo de reciclagem dos materiais e de recursos, antes divididos em fronteiras mais bem sedimentadas. Assim, a interação direta, própria das redes, como uma experiência doméstica e fragmentada, pode não privilegiar os espaços de comunicação institucionais, já que, nesse caso, a relação se estabelece com um interlocutor abstrato.
Essa nova relação entre as dimensões pública e privada nas redes sociais pode ser considerada questão central para entender de que forma o governo de Jair Bolsonaro corrói o sistema democrático em suas bases, enfraquecendo espaços de diálogo autônomos, racionais e com vistas à cooperação e tergiversando sobre temas vitais para a sociedade, que são da competência do Estado, para pautar o debate com temas comportamentais, mais suscetíveis ao reforço ideológico defendido pelo governo. Ao estabelecer as redes sociais como canal principal de comunicação do governo com a sociedade, presidente Bolsonaro explora a audiência de seus perfis virtuais próprios, muito maiores do que a das redes institucionais, para promover a comunicação pública do governo. Apenas no Instagram, o número de seguidores somados dos três perfis que compõem o sistema de comunicação institucional – Governo Federal[1], SECOM[2] e EBC[3] – corresponde a 5% do número de seguidores do perfil de Jair Bolsonaro[4] . São 937 mil seguidores das redes institucionais frente a 18 milhões e 330 mil seguidores de Jair. Além disso, o engajamento médio das postagens do presidente na rede é mais que o dobro da média dos perfis institucionais. Enquanto o percentual de engajamento das publicações do presidente nas redes é de 5,97%, o dos perfis institucionais é de 2,36% (PINHEIRO, 2021).
Como parte da dissertação de mestrado de minha autoria, que buscou investigar as intervenções privadas na comunicação pública do presidente Jair Bolsonaro a partir da presença dos vieses moralista e religioso, foi realizada uma pesquisa das postagens de Instagram do perfil do presidente Jair Bolsonaro. O levantantamento teve por objetivo identificar os assuntos mais abordados pelo presidente, que pautam a comunicação pública que o governo realiza com a sociedade.
A Comunicação do presidente Jair Bolsonaro no Instagram
O mapeamento das temáticas presentes nas postagens do Instagram @jairmessiasbolsonaro, rede social com maior audiência entre as que o presidente possui perfil, foi feito a partir da leitura flutuante das 2097 postagens publicadas entre 1º de janeiro de janeiro de 2019 a 30 de junho de 2020.
Nesse universo, foram perseguidas as temáticas relacionadas a temas sensíveis, que se referem a comportamentos, modos de ser e de agir na sociedade, e temas políticos, que mobilizam a discussão política. De forma resumida, aparesenta-se as temáticas selecionadas para a investigação:
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- Temas sensíveis: Aborto, Ciência, Questões raciais, Pobreza/ miséria, Violência, Direitos humanos, Família, Gênero e sexualidade, Infância, Moral e costumes, Adversários, Questões indígenas, Questões religiosas e Questões sobre a mulher;
- Temas políticos: Brasil, Forças de segurança, Sistema Econômico, Regime Político, Políticas públicas – Comportamento e direitos humanos, Cultura, Educação/ ciência, Justiça e segurança, Meio ambiente – Pandemia, Presidência da república, Corrupção, Eleições, Notícias falsas, Mídias sociais/ internet, ideologia e internet.
Entre todas as postagens do período, 1225 se relacionavam com os temas de interesse da pesquisa. As postagens selecionadas foram classificadas a partir das temáticas com a ajuda do Software Nvivo, ferramenta de análise de conteúdo.
Temas sensíveis e temas políticos tiveram codificação múltipla, ou seja, o mesmo post poderia ser codificado com diversos temas. Juntos, somam 2194 referências, sendo 1480 políticos e 714 sensíveis. Considerando o número de posts codificados, 1225, temos a média de 79% de posts com múltipla contagem, ou seja, publicações em que são referenciados mais de um tema. O número aponta para a multiplicidade da comunicação do presidente Jair Bolsonaro, que faz uso de diferentes assuntos em uma mesma publicação.
Temas políticos
Os temas políticos dizem respeito à diversidade de assuntos que fizeram parte da abordagem da pesquisa dentro do espectro político. Foram codificados 1480 temas políticos na amostra analisada. O gráfico 1 ilustra essa abordagem nas postagens do Instagram @jairmessiasbolsonaro analisadas.
Gráfico 1 – Distribuição da codificação dos temas políticos presentes no Instagram @jairmessiasbolsonaro
Fonte: Elaboração própria (2021).
As políticas públicas somam 335 referências (22,7%) e contemplam as áreas de interesse da pesquisa em relação a ações do governo: cultura, comportamento e direitos humanos, educação/ ciência e justiça e segurança. O tema pandemia, que aparece logo em seguida e tem 297 referências (20%), foi considerado um tema à parte de políticas públicas por ser referente ao contexto social mais amplo. O terceiro tema mais acionado, presidência da república, está relacionado aos assuntos ligados, diretamente, à figura do presidente Bolsonaro, com 258 referências (17,4%).
As políticas públicas e a pandemia são temas de interesse público que demonstram a comunicação sobre as ações de governo a partir das redes do presidente. Juntas, elas correspondem a menos da metade dos temas políticos, revelando que os temas de interesse público disputam espaço com temas relacionados ao presidente e a seu posicionamento político e ideológico. Para entender qual o peso de cada tema desse grupo, considerado principal grupo de interesse coletivo, são detalhadas as ocorrências de cada área de políticas públicas, conforme o gráfico 2.
Gráfico 2 – Codificação do tema Políticas Públicas no Instagram (@jairmessiasbolsonaro)
Fonte: Elaboração própria (2021).
Entre as políticas públicas, o tema de Justiça e segurança recebeu 143 referências, demonstrando o grande foco do governo com o assunto. A área de educação-ciência teve 86 referências, 41% a menos. Justiça e segurança contemplou abordagens referentes à criminalidade, a drogas, encarceramento, armamento, Pacote Anticrime, estrutura, terrorismo e abuso de autoridade. Criminalidade teve o maior número de referências, 52, e reuniu as informações a respeito da queda dos crimes, de ações de combate à criminalidade e declarações a respeito do Código Penal. Em seguida, aparecem as menções ao Pacote Anticrime, do ministro Sérgio Moro, com 28 referências. Drogas e armamento são temas que aparecem em terceiro lugar, com 21 referências cada. Chama a atenção o destaque dado ao Pacote Anticrime, com divulgação de manifestações de apoio, esclarecimentos a respeito de itens previstos e propaganda exaltando as vantagens do pacote para a sociedade. Armamento também é tema recorrente, ocupando o mesmo espaço da divulgação sobre ações de combate ao tráfico de drogas.
Pandemia predominou no período de fevereiro a junho de 2020, quando foi a pauta central do Instagram do presidente. A divulgação de ações do governo de combate ao coronavírus é o subtema mais recorrente nas publicações relativas à pandemia, com 100 das 297 referências e, em muitos casos, aparece relacionado com outro subtema do grupo. Questão econômica também é seguidamente abordada, com 38 referências, e contempla empregos, fechamento do comércio e consequências da pandemia na economia. Hidroxicloroquina é o terceiro subtema mais abordado, com 28 menções, à frente de outros assuntos de grande interesse público na pandemia, como auxílio emergencial, protocolos sanitários, investimentos e testes.
O terceiro tema político com mais referências é Presidência da república, que reuniu os assuntos referentes à figura do presidente, como a vida familiar, doméstica, o atentado sofrido e as manifestações de apoio, entre outros. Esse tema mostra a vida do presidente e suas ações independentemente do cargo que ocupa, explicitando a presença da comunicação privada em meio à comunicação governamental. As publicações divulgando apoios espontâneos e manifestações organizadas somam 108 referências, mais de 40% do tema, e buscam demonstrar a popularidade de Jair Bolsonaro. A divulgação do crescimento das mídias sociais do presidente é o terceiro subtema mais recorrente, com 29 referências. Para cada número marcante nos seguidores de uma das páginas das redes sociais, o presidente faz uma publicação agradecendo o apoio e carinho das pessoas. Essa prática também se configura como demonstração de popularidade e revela que o presidente destina grande espaço para divulgar o apoio que recebe. Considerando o total de referências em temas políticos, os apoios, as manifestações e a divulgação do crescimento de suas redes sociais, juntos, correspondem a quase 10% do total e demonstram que a promoção pessoal de Jair Bolsonaro é uma das principais pautas da comunicação de seu Instagram.
Temas sensíveis
Os temas sensíveis dizem respeito ao conjunto de temáticas relacionadas a comportamentos e à autonomia moral do indivíduo. Ao todo, foram classificados 714 referências para temas sensíveis. O gráfico 3 apresenta o número de referências de cada temática:
Gráfico 3 – Distribuição de referências por tema sensível
Fonte: Elaboração própria (2021).
Os dois temas sensíveis predominantes na amostra analisada foram comportamento sobre adversários, com 256 referências (37,3%) e questões religiosas, com 159 referências (23,2%). Somados, representam 58,97% dos temas sensíveis abordados nas postagens do presidente. O comportamento referente à ciência aparece em terceiro lugar, com 75 referências, pouco mais de 10% do total de temas sensíveis, seguido por violência, com 64 referências, correspondendo a 9%. Comportamento sobre adversários, que diz respeito a atores desqualificados pelo presidente em seu Instagram e comportamento referente à ciência, correspondente a posicionamentos do presidente em relação a evidências científicas, foram considerados parte dos temas sensíveis por afetarem o direcionamento moral e comportamental da sociedade.
Comportamento sobre adversários foi classificado nos subtemas embate/conflito e institucional, para que fosse possível verificar em quais situações o presidente adota tom bélico para se referir aos adversários e quando adota postura institucional. O resultado está descrito no gráfico 4.
Gráfico 4 – Codificação dos subtemas de comportamento de Bolsonaro sobre os adversários no Instagram @jairmessiasbolsonaro
Fonte: Elaboração própria (2021).
O espaço ocupado pelo presidente em sua conta de Instagram para identificar os atores e personalidades com os quais tem relação de contrariedade se destaca entre os temas sensíveis. Percebe-se que em mais de 94,5% dessas referências o presidente adota o posicionamento de conflito e que em apenas 5,5% das vezes adota postura institucional. A identificação desses dados permite afirmar que, nesse recorte, o presidente Jair Bolsonaro ignora o princípio da impessoalidade, uma vez que encara de forma pessoal as divergências políticas, adotando linguagem chula e ofensiva para se dirigir aos adversários diversas vezes. Exemplo é o POST 13[5], em que se refere a Fernando Haddad:
Haddad, o fantoche do presidiário corrupto, escreve que está na moda um anti-intelectualismo no Brasil. A verdade é que o marmita, como todo petista, fica inventando motivos para a derrota vergonhosa que sofreram nas eleições, mesmo com campanha mais de 30 milhões mais cara. – Eles procuram e criam todos os motivos possíveis para estarem sendo rejeitados pela maioria da população, só não citam o verdadeiro: o PT quebrou o Brasil de tanto roubar, deixou a violência tomar proporções de guerra, é uma verdadeira quadrilha e ninguém aguenta mais isso!
O segundo tema sensível com maior ocorrência, questões religiosas, foi classificado em quatro subtemas, Deus/Cristo, símbolos religiosos, autoridades/ instituições religiosas e rituais religiosos. O resultado está descrito no gráfico 8.
Gráfico 1 – Codificação dos subtemas de questões religiosas no Instagram @jairmessiasbolsonaro
Fonte: Elaboração própria (2021).
As questões religiosas correspondem a 22,65% dos temas sensíveis e pouco mais de 7% do total de temas codificados. As menções a Deus, Jesus Cristo e outras divindades permeiam as postagens, inseridas em outros assuntos abordados ou mesmo sendo o tema central do post, e correspondem a 34,6% das referências em religião. Em seguida, aparecem os símbolos religiosos, como versículos bíblicos, imagens de cruzes, evangelhos, etc., com 32%. A presença de Igrejas e pastores, padres e outras lideranças do segmento acumularam 28 referências, cerca de 17,6% do total e, logo atrás, a divulgação de cultos, missas e outros eventos e rituais relacionados à religiosidade, com 11%. Percebe-se que as questões religiosas têm espaço e importância na comunicação verificada a partir do Instagram de Jair Bolsonaro, que procura inserir a religiosidade na estratégia de comunicação do perfil presidencial.
Terceiro tema com mais ocorrências em temas sensíveis, comportamento referente à ciência poderia ser um indicador positivo para a comunicação presidencial e, por conseqüência, governamental, se não fosse o teor das publicações. A pesquisa demonstrou que, quando se refere a evidências científicas, Jair Bolsonaro se posiciona contrário ao que a ciência comprova ou publica dados científicos inverídicos em 76% dos casos, e em apenas 16% das declarações fica ao lado da ciência, rompendo declaradamente com a racionalidade balizadora da comunicação pública e exigida pela democracia. O comportamento do presidente em relação à ciência atua tergiversando a verdade, ao negar a ciência como fonte crível de justificação da realidade. Um dos posts que evidencia essa distorção da ciência é o POST 1071[6]:
Segundo o CEO Fernando Parrillo, a Prevent Senior reduziu de14 para 7 dias, o tempo de respiradores e divulgou hoje, 1:400 da manhã, o complemento de um levantamento clínico feito: de um grupode de 636 pacientes acompanhados pelos médicos, 224 não fizeram uso da hidroxicloroquina. Destes, 12 foram hospitalizados e 5 faleceram. Já dos 412 que optaram pelo medicamento, somente 8 foram internados e, além de não serem entubados, o número de óbitos foi zero. O estudo será publicado em breve.
Ao analisarmos os resultados numéricos do levantamento, fica evidente o protagonismo que temas sensíveis, ideológicos e privados ocupam no governo. As referências relacionadas aos adversários, com 256 ocorrências, superam em três vezes as temáticas relacionadas à educação, por exemplo. Juntas, questões religiosas e comportamento referente a adversários têm mais ocorrências do que todo o grupo de políticas públicas, contemplado por educação, segurança, cultura, direitos humanos e meio ambiente.
Sob outra perspectiva, podemos comparar temas políticos relacionados à ideologia a temas de interesse público. Eleições, Sistema econômico (comunismo e capitalismo), Corrupção, Regime político (ditadura e democracia), Ideologia (direita e esquerda), Notícias falsas e Brasil (patriotismo, soberania nacional, globalismo, futuro do país) têm, juntas 335 ocorrências, mesmo número que o grupo de políticas públicas. Sob outra perspectiva, a grande incidência de publicações relacionadas à vida de Jair Bolsonaro, no tema Presidência da República, demonstra a dificuldade em delimitar a separação entre público e privado nas redes sociais.
Percebe-se, a partir da investigação realizada, que, ao levar a centralidade da comunicação do governo para uma arena pública com características diretas e personalizadas, o presidente desliza o agendamento do debate dos temas vitais à sociedade, que impactam diretamente no cotidiano e na vida das pessoas e, que, por isso, exigem soluções do Estado, para temas comportamentais e ideológicos e que dão margem para diferentes perspectivas a partir da bagagem cultural, educacional e religiosa de cada indivíduo, advindas da dimensão privada, e que, por isso, são mais suscetíveis ao reforço ideológico que o governo pretende impor.
Considerações finais
Considerando a análise dos temas mais acionados, entre sensíveis e políticos, é possível afirmar que a comunicação do presidente Jair Bolsonaro utiliza a nova configuração da comunicação facilitada pelas redes sociais para reiterar o discurso dual que caracteriza permanente conflito e mantém seus apoiadores adeptos aos posicionamentos presidenciais a partir do apelo emocional, como o medo e o ódio, diminuindo a possibilidade de espaço para o diálogo e questionamento de certezas.
A perspectiva privada está presente a partir do viés religioso, que afronta o Estado laico, e moralista conservador, baseado em valores familiares, culturais e particulares. O movimento difere de governos anteriores tanto no objeto quanto no modo em que se apresenta. A sociedade costumava identificar como elemento da dimensão privada nos governos a presença de interesses econômicos, relacionados a grandes conglomerados e aos políticos, e que eram gerenciados de forma velada, ou seja, estavam sujeitos ao constrangimento frente à opinião pública. O governo de Jair Bolsonaro subverte essa lógica e insere um elemento privado de outra ordem e de maneira explícita na comunicação governamental. Esse novo comportamento, somado ao fato de a dimensão moralista ter aderência em grande parcela do público, gera um estranhamento que torna sinuoso o caminho para identificação e crítica dos problemas que podem surgir a partir dessa intervenção privada na comunicação pública. O moralismo relacionado a comportamento acarreta outro efeito favorável ao governo, que é o de tornar a divisão na sociedade ainda mais marcada, acentuando a polarização.
A comunicação direta é uma das características apontadas por Rosanvallon (2020) como constituinte do populismo moderno. Essa perspectiva se insere numa ideia de renovação democrática, em que o princípio liberal-representativo, que previne a tirania da maioria, outorgando um lugar central à autonomia das pessoas, é objeto de críticas segundo as quais os meios perturbam a formação da vontade geral e não possuem legitimidade moral, pois estariam contaminados por interesses particulares. A democracia, nesse contexto, adquire caráter polarizado, já que as eleições se impõem como único meio da expressão democrática. A dinâmica das redes sociais favorece o desenvolvimento dessa distorção da democracia, já que os próprios algoritmos se encarregam de facilitar apenas as conexões de visões de mundo semelhantes, formando as chamadas bolhas digitais, o que colabora ainda mais para enfraquecer o debate livre e a troca de ideias plurais.
Com espaços de manifestação mais complexos e híbridos, as pautas comportamentais e culturais disputam visibilidade com aquelas ligadas ao funcionamento essencial da coletividade e que configuram, dessa forma, temas vitais para a sociedade. A pesquisa identificou que os vieses moralista e religioso estão presentes na comunicação do governo com o objetivo de conformar um novo quadro de mundo, dissociado de aspectos basilares que nortearam o desenvolvimento social até então. Nessa nova visão, o interesse público deixa de ser a prioridade para dar lugar à ordenação moral de justificativa religiosa sobre comportamentos e formas de agir.
A interação comunicativa do mundo simbólico propõe um debate coperativo com vistas ao consenso e à solução dos conflitos entre indivíduos autônomos presentes no espaço público. O tema que mobiliza essa argumentação cooperativa deverá ser sempre um tema que diga respeito à coletividade e que estabeleça de modo central, tangível e concreto. Ao captar as novas vias de verdade que se desenvolvem nas redes sociais e explorar na comunicação pública do governo o posicionamento privado sobre questões morais e religiosas como forma de gerar identificação e adesão dos públicos dessas bolhas, o presidente substitui o lugar central de temas que estão sob gerenciamento governamental para temas culturais e emocionais. Trata-se da subversão, em essência, do princípio do primado do público.
O que Bobbio (1987) chama de “a soma dos bens individuais” que não pode se impor ao bem público é traduzida, nesse caso, pela importância que os vieses moralista e religioso têm na vida de um grande número de pessoais, razão pela qual o debate em torno desses temas adquire relevância e causa grande adesão. Contudo, ainda que os temas tenham peso na orientação comportamental das pessoas, não deixam de ser formados por questões ancoradas em individualismos autocentrados e associativismos fragmentados. A relação entre poder do Estado e sociedade se configura a partir do acionamento da publicidade frente à crítica e ao controle dos cidadãos. A perda de espaço de temas vitais para a abertura a temas sensíveis na comunicação de Jair Bolsonaro configura, dessa forma, a privatização da função do Estado, na medida em que o governo deixa de cumprir o papel de publicização central sobre ações a respeito de questões que incidem diretamente na vida social, o que permitiria abrir espaço para o controle da sociedade a partir do debate público, para promover discursos dogmáticos sobre questões que dizem respeito à dimensão privada da comunicação, inculcando percepções de mundo baseadas em crenças e valores de grupos específicos. Em última análise, a estratégia diminui o foco da crítica ao governo sobre o cumprimento da sua função, reforça a polarização e recoloca na centralidade do espaço público discussões já superadas pela sociedade, retardando definições que direcionam a coletividade para a emancipação social, o que tem como resultado o enfraquecimento da democracia.
Bibliografia
BOBBIO, Norberto. Estado, governo, sociedade: para uma teoria geral da política. 14. ed. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2007.
ROSANVALLON, Pierre. El siglo Del populismo.Barcelona: Galaxia Gutenberg SL, 2020.
MARTINO Luís Mauro Sá; MARQUES Ângela Cristina Salgueiro. Ética, mídia e comunicação: Relações sociais em um mundo conectado. São Paulo: Summus Editorial, 2018.
PINHEIRO, Muriel Felten. Intervenções privadas na comunicação pública do governo de Jair Bolsonaro: os vieses moralista e religioso. 2021. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação, Programa de Pós-graduação em Comunicação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2021.
[1]GOVERNO FEDERAL. Disponível em: https://www.instagram.com/governodobrasil/. Acesso em 08/04/2021
[2] SECRETARIA ESPECIAL de Comunicac?a?o Social da Preside?ncia da Repu?blica. Disponível em: https://www.instagram.com/secomvc/. Acesso em 08/04/2021.
[3] EMPRESA DE COMUNICAÇÂO Púlica do Brasil. Disponível em: https://www.instagram.com/ebcnarede/
Acesso em 08/04/2021.
[4] JAIR BOLSONARO. Disponível em https://www.instagram.com/jairmessiasbolsonaro/. Acesso em 08/04/2021.
[5]BOLSONARO, Jair. Haddad, o fantoche... 05 jan. 2019. Instagram: jairmessiasbolsonaro. Disponível em: https://www.instagram.com/p/BsQcZA_g_VQ/. . Acesso em: 20 jan. 2021.
[6] BOLSONARO, Segundo o CEO Fernando Parrillo… 20 abril 2020. Instagram: jairmessiasbolsonaro. Disponível em: https://www.instagram.com/p/B_JaHabn1jA/. Acesso em: 20 jan. 2021.