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Governos e Sociedade nas Políticas de Segurança

Benedito Mariano*

Secretário de Segurança Cidadã da Cidade de Diadema e coordenador do Núcleo de Segurança Pública na Democracia do IRRE.

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Este texto foi apresentado no Seminário Democracia, Segurança Pública e Integração, realizado no dia 12 de outubro de 2023, em Montevidéu (URU).

 

Boa tarde a todos e a todas, queria saudar e agradecer meu amigo e sempre ministro Tarso Genro, presidente do Instituto Novos Paradigmas, que me convidou para este prestigiado seminário, com personalidades da esquerda e do campo democrático da América Latina, e em nome dele saudar todas os representantes das instituições que apoiam este evento.

Meu tema sugerido é Governos e Sociedade nas Políticas de Segurança. Vou desenvolver o tema, com partes de dois artigos que escrevi recentemente num jornal de grande circulação no Brasil, que intitulam se: “Segurança Pública: O calcanhar de Aquiles da Esquerda e do Campo Democrática e Policiamento de Proximidade, Repressão Qualificada e Enfrentamento às Organizações Criminosas”. Nesses artigos eu indico que a transição democrática no Brasil, por negligência ou omissão, não priorizou a agenda de Segurança Pública.

Nos 40 anos de transição democrática no Brasil, só tivemos uma única Conferência Nacional sobre Segurança Pública, no segundo governo do presidente Lula, o que é uma demonstração de que o tema não foi agenda prioritária da transição. O único programa federal que procurou quebrar a lógica de que segurança pública é sinônimo de repressão sistemática foi o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (PRONASCI), brilhantemente coordenado e idealizado pelo Ex-Ministro Tarso Genro, também no segundo governo Lula. Metade das ações e projetos de financiamento da União aos Estados e Municípios eram dedicados a programas e projetos de prevenção à violência e ao crime. Esta foi a grande contribuição do Pronasci.

Hoje, a cidade de Diadema, localizada na região da grande São Paulo, com 400 mil habitantes, é o melhor exemplo de que o Pronasci deu frutos.  Em 2021 e 2022, a taxa de homicídios dolosos na cidade foi de, em média, 04 homicídios dolosos para cada 100 mil habitantes, a menor taxa do país, considerando-se cidades com mais de 200 mil habitantes. Na década de 90, para se ter um exemplo da grandeza destes números recentes, a taxa de homicídios dolosos na cidade ultrapassava 130 homicídios para cada 100 mil habitantes. No mesmo período de 2021 e 2022, a taxa de letalidade policial em Diadema foi a menor do Estado de São Paulo, com 04 mortes em decorrência de intervenção policial em 02 anos, uma prova inequívoca de que é possível diminuir o crime contra a vida e ao mesmo tempo ter baixos índices de letalidade policial. Os dados de Diadema são consequência da política de segurança cidadã implementada na cidade, comandada pelo Prefeito Filippi, que pode se resumir em três princípios: Prevenção, Integração e Inteligência.

Temos que implementar nos territórios mais vulneráveis o Policiamento de Proximidade somado a Programas Intersetoriais de Prevenção a Violência e Crime.

No Policiamento de Proximidade ou comunitário, os policiais passam a estabelecer uma relação de confiança com a população, que passa a ser também sujeito do processo de resolução dos conflitos vivenciados na comunidade. Parte-se de uma lógica de compreensão dos fatores geradores das violências dentro de cada território, considerando-se suas dinâmicas e particularidades. Dessa forma, o policiamento de proximidade potencializa-se quando somado ao desenvolvimento de projetos e programas de prevenção à violência e ao crime, voltados, em especial, para a juventude e para as mulheres nos territórios mais vulneráveis. Neste diapasão, os Municípios têm papel estratégico na prevenção do crime e da Violência

O contrário do policiamento de proximidade é o policiamento baseado no confronto, que tem como umas de suas marcas a incursão policial sistemática nas periferias, com operações com blindados, numa lógica de guerra. Esta lógica é fruto de uma herança cultural e estrutural de atuar mais na repressão do que na prevenção, lógica esta que, ainda hoje, infelizmente, é hegemônica nas políticas de segurança pública no Brasil. Entre os muitos fatores que contribuem para o fortalecimento deste tipo de atuação, deve-se citar a própria estrutura das polícias estaduais brasileiras, que historicamente não realizam o ciclo completo da atividade policial (caracterizado pelo policiamento ostensivo e investigação). Como as Polícias Militares não tem atribuição de investigar, (atribuição esta que cabe a polícia judiciária) elas só são autorizadas a realizar policiamento ostensivo. E no policiamento ostensivo feito, na maioria das vezes, as policias militares priorizam uma atuação voltada para o flagrante delito, e o fazem imbuídas de um preconceito histórico contra pobres e negros (herança de 350 de escravidão e da cultura do capitão do mato). Soma-se ainda a cultura de combate ao inimigo interno, criada no período da ditadura militar e fortalecida pela política de guerra às drogas, que fortalece a política de confronto.

Como diz o ex-comandante da PM do estado do Rio de Janeiro, Cel da reserva Ibis Pereira “a busca pelo flagrante delito embrutece o policial”.

O resultado é uma ação de repressão nas periferias que vitima, sistematicamente, a juventude negra e pobre, a medida em que, neste conceito perverso de segurança pública, o “inimigo interno e ou marginal em potencial” tem cor e condição social definidos.

Portanto, temos que afirmar que não aceitamos, sobre a justificativa de combate às organizações criminosas, a naturalização da violência policial sistêmica nas periferias. Até porque as organizações criminosas se alimentam e se mantêm através da violência, e quando o Estado, através das polícias, também produz violência sistemática nas periferias, acaba, paradoxalmente, fortalecendo essas organizações ao invés de enfraquecê-las. 

O desafio da implementação do policiamento de proximidade é grande porque implica em um novo modelo de segurança pública. É mudança da repressão sistemática, por uma filosofia que valorize a Prevenção ao crime e a interação com a comunidade, através de uma presença permanente nos territórios, para, de forma conjunta, construir um ambiente de cultura de paz e resolução de conflitos.

Para tanto, é imperativo no Brasil, introduzir na formação dos policiais o tema do antirracismo e estabelecer novos protocolos operacionais que indiquem com objetividade que é inaceitável abordar, prender ou matar alguém por “fundada suspeita” pela cor da pele e condição social. O policial da ponta precisa trabalhar com diretrizes objetivas que orientem sua ação cotidiana.

A esquerda e o campo democrático têm que ter coragem de acabar com a criminalização da pobreza patrocinada por um modelo de segurança pública autoritário e preconceituoso. A segurança pública, na democracia, tem que ser conceituada como política pública social, com diz Lúcia Lemos Dias “A segurança pública deve ser configurada como política pública social, incorporando também, as necessidades de segurança dos grupos socialmente vulneráveis”. Nessa perspectiva, a população que sofre sistematicamente violência policial deveria, ao contrário, ser a mais protegida pela ação policial. E seria, com a implementação do Policiamento de Proximidade, somado a projetos e programas intersetoriais de prevenção à violência e ao crime.

Concomitante com o policiamento de proximidade, que deve ser realizado pelas polícias estaduais e guardas civis municipais, é fundamental que se tenha uma política permanente de Repressão Qualificada (Inteligência Policial) de Enfrentamento às Organizações Criminosas, única forma efetiva de enfraquecê-las.

Segundo dados do Anuário de Segurança Pública do FBSP, temos no Brasil mais de 50 facções criminosas, que lucram, por ano, bilhões e bilhões de reais com o tráfico de drogas e armas.

Como diz o jornalista Marcos Augusto Gonçalves, em artigo publicado recentemente: “O tráfico de cocaína, o cenário impressiona. Passa pelo território brasileiro, 50% da produção da droga. Parte fica por aqui no Brasil. Já  somos o segundo maior consumidor do mundo, atrás dos EUA – e o restante segue rumo à Europa”.

“Essa montanha de cocaína, equivalente a 710 toneladas, segundo os dados mais recentes da ONU, de 2021, atinge o valor de US$ 65 bilhões por ano, a preços do mercado europeu. Some-se a isso o faturamento com outros entorpecentes e práticas ilícitas e nos vemos diante de uma atividade que, além rentável, tem expressiva presença na economia nacional e transnacional”

Mas, as estruturas de comando destas organizações criminosas não estão nas regiões periféricas. Estão em bairros nobres e condomínios fechados de alto padrão. Lavam dinheiro com empresas de fachada, possivelmente abrem contas em paraísos fiscais, realizam garimpo ilegal e predatório do meio ambiente na Amazonia e estabelecem conexões transnacionais.

Cabe ao governo federal, através do Ministério da Justiça e Segurança Pública, que tem a responsabilidade de implementar uma política nacional de segurança pública, coordenar, por meio da Polícia Federal, PRF, Receita Federal, com apoio dos Ministérios Públicos (estaduais e federal) e FFAA, e em articulação com as polícias estaduais, uma política permanente de repressão qualificada contra as estruturas de comando do crime organizado.  Concomitantemente, deve também induzir a implementação do policiamento de proximidade, em especial nos territórios mais vulneráveis, através de integração (articulação) com os estados e municípios.

Enfrentar as Organizações Criminosas, portanto, é um dos grandes desafios da esquerda e do campo democrático da América Latina, e deveria ser uma agenda prioritária do Mercosul.

Isto porque, a extrema direita no Brasil e talvez em outros países, já definiu sua agenda prioritária de segurança pública. São políticas demagógicas, autoritárias e de fomento à violência e ao preconceito com pobres e negros. Tais políticas, já está mais do que demonstrado, não mudam os índices criminais, mas reforçam a necropolítica contra os de sempre.  Tão pouco esta política valoriza os profissionais de segurança pública, que tem baixos salários e que sofrem por não ter um programa de saúde mental do início ao fim da carreira, levando à números epidêmicos de suicídio policial. Mas, mesmo assim, esta agenda segue crescendo, fruto da cultura reacionária e excludente do sistema de segurança pública e do vácuo deixado pela transição democrática no Brasil, que, além de abdicar de construir novos paradigmas para a segurança pública, por vezes repete práticas políticas na área que não se diferenciam da narrativa da extrema direita.

Não fosse o candidato da esquerda e do campo democrático o presidente Lula, a maior liderança operária da América Latina e um dos maiores líderes mundiais do século XXI, o candidato de extrema direita teria sido eleito no primeiro turno.

Ou damos conta de resolver este “Calcanhar de Aquiles” da esquerda e do campo democrático, ou a transição democrática estará sempre em risco no Brasil, com a sombra da volta da extrema direita fascista que se alimenta de um sistema de segurança pública reacionário e anacrônico que, por inércia e omissão, da própria transição democrática, continua conflitando com os valores mais caros da democracia e da civilidade.

Por último, quero reforçar que o debate sobre Democracia, Segurança Pública e Integração, passa necessariamente pela construção de uma política integrada na América Latina, de enfrentamentos às organizações criminosas concomitante com o policiamento de proximidade e da construção de uma segurança pública democrática, cidadã e com foco central no Antirracismo.

A democracia e o estado democrático de direito também são medidos pelo perfil do seu modelo de segurança pública. Parabenizo os organizadores deste seminário, que sem dúvida, é uma contribuição importante para apontar caminhos para uma nova segurança pública na América Latina.

 


*Benedito Mariano: Secretário de Segurança Cidadã da Cidade de Diadema e coordenador do Núcleo de Segurança Pública na Democracia do IRRE.