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Direito do trabalho, neoliberalismo e austeridade: a reforma trabalhista no brasil

Wilson Ramos Filho (1) e Nasser Ahmad Allan (2)

Advogados e doutores em direito pela Universidade Federal do Paraná

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I – INTRODUÇÃO

O Direito do Trabalho no Brasil sofreu grande modificação com a edição da Lei 13.467, de 2017. A chamada reforma trabalhista produziu alterações impactantes nas relações sociais de produção sob o pretexto de modernizar a legislação e tornar o mercado de trabalho mais atual e atrativo para os novos tempos.

Neste artigo pretende-se discorrer, brevemente, sobre os fundamentos adotados pelos legisladores reformadores a fim de justificar as alterações legislativas produzidas, confrontando-os com o receituário neoliberal, aplicado em outras partes do mundo ocidental. Além disso, intenciona-se indicar os principais pilares de sustentação das modificações legais introduzidas e, ao final, verificar se os efeitos econômicos e sociais ambicionados pelos legisladores – ao menos os publicamente confessados – foram alcançados.

 

II – OS FUNDAMENTOS DA REFORMA TRABALHISTA NO BRASIL

Depois do final da Segunda Guerra Mundial o continente europeu experimentou a consolidação de democracias constitucionais, com predomínio político-ideológico da socialdemocracia, cujas políticas econômicas baseavam-se, entre outras, na intervenção estatal no mercado a fim de garantir taxas de juros e margens de lucros mais baixas, pleno emprego, equilíbrio social e proteção da população contra a instabilidade do mercado.

Pode-se afirmar que a primeira crise do Petróleo, de 1975, encerrou um ciclo de quase trinta anos de prosperidade e crescimento econômico nas principais economias ocidentais, inaugurando, a partir de então, períodos de sucessivas crises no capitalismo (talvez, pareça mais apropriado definir como uma longa e contínua crise, permeada por alguns momentos de alívio, proporcionados por medidas paliativas adotadas pelos Estados nacionais, sem atuar nas reais origens dos problemas econômicos).

Com as dificuldades enfrentadas pelas economias nacionais, em especial, após as duas crises do Petróleo (em 1979, houve a segunda) e com o rompimento do grande capital com o pacto social keynesiano – centrado na concordância com a intervenção estatal no mercado para restringir lucros tendo por contrapartida a garantia de longos períodos de crescimento econômico –  constatou-se a estagnação econômica a partir da desconfiança do capital para aportar investimentos e gerar novas riquezas.[3]

Tal ruptura restou em evidência com a assimilação e difusão, por parte dos capitalistas, dos postulados da racionalidade neoliberal[4]. Aos poucos, formou-se uma hegemonia em torno da identificação da crise do capitalismo como resultado de excessivos gastos dos Estados com direitos sociais e a estagnação econômica como fruto da overdose de direitos concedidos à classe trabalhadora.

Praticamente, de modo consentâneo, governos neoliberais foram se constituindo e as políticas de austeridade[5] não tardaram a surgir, trazendo consigo a subtração ou mitigação de direitos sociais. Aos seus muitos entusiastas não haveria solução à crise, a não ser atacar as suas supostas causas com medidas para conter as despesas estatais com benefícios concedidos às classes mais pobres e com a redução do custo da mão de obra como alternativa a incentivar o crescimento econômico e enfrentar o desemprego.

No Brasil, durante a Assembleia Nacional Constituinte, havia quem concebesse uma Constituição, inspirada nas europeias do pós-guerras, a garantir direitos mínimos à população a fim de permitir a diminuição das enormes distâncias que separam pobres de ricos. Mas, também, não faltaram os defensores de medidas de austeridade, a advogar por um mercado livre, sem as amarras estatais, e, pela flexibilização negativa de direitos trabalhistas.

Da correlação entre as forças em ação na Constituinte resultou uma Carta com viés socialdemocrata, porém, atenuado por muitos dispositivos de índole neoliberal. Esse hibridismo, por assim dizer, mostrou-se útil aos governantes do país, notadamente, Fernando Collor de Mello (1990-1992) e Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), que em seus governos adotaram uma série de medidas com forte acento neoliberal, especialmente, no tocante ao mercado de trabalho brasileiro.

As justificativas para as modificações legislativas que previam retirada de direitos eram baseadas na necessidade de adequar a anacrônica legislação trabalhista à nova realidade e, sempre, partindo-se da premissa de que o Direito do Trabalho seria fator de entrave econômico, sendo o principal responsável pelo desemprego.

Sob a perspectiva de privilegiar-se a liberdade e autonomia dos sindicatos surgiu o Projeto de Lei n. 5.483, de 2001, prevendo a modificação do artigo 618 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) a fim de permitir a derrogação de normas trabalhistas pela negociação coletiva. Não houve tempo hábil, no entanto, para concretizar a guinada no caráter heterônomo e cogente da legislação trabalhista, pois, no início do Governo de Luís Inácio Lula da Silva, em 2003, o projeto – que era de iniciativa do presidente da república anterior – foi arquivado e, com ele, por treze anos foram suspensas medidas de desregulamentação do mercado de trabalho no Brasil.[6]

A retomada neoliberal viabilizou-se com o golpe midiático-judicial-parlamentar de 2016 que importou na deposição da Presidente Dilma Rousseff e na tomada do poder por Michel Temer. Antes disso, porém, no final de 2015, o partido do então vice-presidente divulgara um documento intitulado “Uma ponte para o futuro”[7] onde foram assinaladas premissas de caráter neoliberal como solução à crise econômica, propondo equacionar o déficit fiscal do Estado com a redução de gastos públicos em direitos sociais, com ênfase na reforma da previdência social e em medidas para assegurar maior liberdade ao mercado, dentre outras, mencionando modificar-se a legislação trabalhista para contemplar a possibilidade de derrogar direitos previstos em lei por acordo ou convenção coletiva de trabalho.

Com o golpe de Estado, a análise da correlação de forças estava a indicar inexistirem óbices reais à elaboração de uma completa reforma na legislação do trabalho. Os capitalistas ansiavam por recuperar as décadas de resignação à intervenção estatal na economia e, por consequência, a imposição de amarras à acumulação de lucros, mesmo estando a história econômica do país a relativizar a capacidade e/ou interesse de o Estado opor tais limites ao capital. Não tardaram a imprimir sua agenda reformadora.

Em pouco tempo de tramitação na Câmara dos Deputados um comedido projeto de iniciativa do Poder Executivo tornara-se em uma ambiciosa proposta de reforma da legislação, com a nítida intenção de modificar as bases estruturantes do Direito do Trabalho no país. O deputado relator do Projeto de Lei n. 6.787, de 2016, na apresentação da justificativa das modificações pretendidas, deixava transparecer, de maneira bem elucidativa, quais as razões a ensejar tamanhas alterações:

Novas profissões surgiram e outras desapareceram, e as leis trabalhistas permanecem as mesmas. Inspiradas no fascismo de Mussolini, as regras da CLT foram pensadas para um Estado hipertrofiado, intromissivo, que tinha como diretriz a tutela exacerbada das pessoas e a invasão dos seus íntimos.

O respeito às escolhas individuais, aos desejos e anseios particulares é garantido pela nossa Lei Maior. Não podemos mais negar liberdade às pessoas, não podemos mais insistir nas teses de que o Estado deve dizer o que é melhor para os brasileiros negando-os o seu direito de escolher. Precisamos de um Brasil com mais liberdade.

Revela-se a importância concedida à liberdade de contratar das partes, buscando retratar os limites impostos pela legislação estatal como uma indevida e indesejada intromissão na esfera da autonomia privada individual. Seria necessário garantir-se “um Brasil com mais liberdade” contra o Estado opressor que, enfim, impedia trabalhadores (as) de aceitarem condições menos favoráveis do que as previstas em lei, como forma de manter ou criar empregos.

Tal preceito encontra-se ainda em consonância com a racionalidade neoliberal de supervalorizar o individualismo em detrimento dos espaços de construção de sujeitos coletivos e em prejuízo do princípio de solidariedade, servindo também a deslegitimar os sindicatos como interlocutores dos interesses da classe trabalhadora.

O discurso acentua o tom cínico quando aborda o combate ao desemprego e ao mercado de trabalho informal. Resta evidente a atribuição de responsabilidade pelas dificuldades econômicas, então verificadas, ao excesso de direitos trabalhistas. Assim, a retirada de direitos da classe trabalhadora mostrava-se imperativa à superação daquela crise, pois, propiciaria a geração de empregos:

Essa modernização trabalhista deve então assumir o compromisso não apenas de manter os direitos dos trabalhadores que possuam um emprego formal, mas também de proporcionar o ingresso daqueles que hoje não possuem direito algum. Esse desequilíbrio deve ser combatido, pois, escudada no mantra da proteção do emprego, o que vemos, na maioria das vezes, é a legislação trabalhista como geradora de injustiças, estimulando o desemprego e a informalidade. Temos, assim, plena convicção de que essa reforma contribuirá para gerar mais empregos formais e para movimentar a economia, sem comprometer os direitos tão duramente alcançados pela classe trabalhadora.

Não resta dúvida de que, hoje, a legislação tem um viés de proteção das pessoas que estão empregadas, mas a rigidez da CLT acaba por deixar à margem da cobertura legal uma parcela imensa de trabalhadores, em especial, os desempregados e o trabalhadores submetidos ao trabalho informal.[8]

Assim, a retirada de direitos da classe trabalhadora mostrava-se imperativa à superação daquela crise, pois, propiciaria a geração de empregos e conduziria ao ingresso de milhões de pessoas ao mercado formal de trabalho. Essa perspectiva – ao menos como externada – torna-se ainda mais evidente na seguinte passagem em que são referidos números de desempregados e desalentados, registrados na época:

O compromisso que firmamos, ao aceitar esta tarefa, não foi com empresas, com grupos econômicos, com entidades laborais, sindicatos ou com qualquer outro setor. O nosso compromisso é com o Brasil. É com os mais de 13 milhões de desempregados, 10 milhões de desalentados e subempregados totalizando 23 milhões de brasileiros e brasileiras que foram jogados nessa situação por culpa de equívocos cometidos em governos anteriores.[9]

O número de trabalhadores (as) submetidos (as) ao mercado informal de trabalho também foi mencionado no relatório, aludindo-se, em 2007, existirem cerca de 40% das pessoas economicamente ativas em trabalhos sem vínculo formal de emprego.[10]

Aprovada na Câmara dos Deputados e no Senado Federal em tempo recorde, a Lei 13.467 entrou em vigência em 11 de novembro de 2017 promovendo mais de duas centenas de modificações na Consolidação das Leis do Trabalho, buscando desregulamentar o mercado de trabalho para torná-lo mais atrativo ao capital e com isso propiciar crescimento econômico.

Com clara inspiração da racionalidade neoliberal, a reforma trabalhista no Brasil produziu alterações em regras de direito material do trabalho, de direito sindical e de direito processual do trabalho. Não se pretende aqui – nem haveria espaço para tanto – adentrar nos pormenores das mudanças, mas sim, procurar identificar seus fios condutores.

 

III. OS PILARES DA REFORMA

As alterações legislativas trazidas com a Reforma Trabalhista no Brasil assemelham-se em muitos pontos há processos de desregulamentação das relações de trabalho verificados em outros países. Nem sequer, portanto, mostra-se possível constatar alguma criatividade ou inovação nas medidas adotadas no país. Tampouco se pode atribuir algo de originalidade aos legisladores brasileiros, pois, dedicaram-se a implantar as pautas exigidas há décadas pelo grande capital.

Apesar de a Lei 13.467, de 2017, haver introduzido mais de uma centena de modificações na CLT, parece viável identificarem-se algumas áreas mais sensíveis relacionadas ao direito material do trabalho e ao direito sindical como alvos de uma estratégia agressiva de desconstrução dos marcos regulatórios então vigentes.

Segue sendo consenso entre autores e estudiosos de Direito do Trabalho no Brasil que este ramo do direito estabeleceu-se a partir dos alicerces do princípio da proteção, com influência da obra do jurista uruguaio Américo Plá Rodriguez[11], partindo da premissa de existir disparidade econômica entre os contratantes a tal ponto de retirar da parte mais frágil a completa autonomia para pactuar.

A combinação do princípio da proteção com o da irrenunciabilidade estruturou o Direito do Trabalho brasileiro com raízes na ideia de os limites impostos pela legislação estatal permanecerem indisponíveis e irrenunciáveis aos (às) trabalhadores (as). Assim, a autonomia privada individual sempre foi compreendida com reservas ante o caráter cogente e imperativo das normas trabalhistas.

Um dos eixos centrais da reforma trabalhista no Brasil repousou em atribuir aos contratantes maior poder de negociação, conferindo em algumas circunstâncias ao (à) trabalhador(a) a capacidade antes vedada pela legislação, a de dispor de seus direitos. Nesse passo, regras como a prevista no parágrafo único do artigo 444[12] da CLT parecem apontar para a ruptura com os princípios estruturantes do Direito do Trabalho, construindo-se a partir da falsa premissa de existir igualdade entre empregado(a) e empregador.

Outro aspecto também merece menção em relação a este dispositivo legal. O(a) empregado(a) “hipersuficiente”, como passou a ser indevidamente chamada essa nova figura, artificialmente, criada pela lei, também pode abdicar das conquistas obtidas por sua entidade sindical por meio de negociação coletiva.

Parece acertado constatar a tentativa de criarem-se outras clivagens, além das já existentes, dentro das categorias profissionais e com isso instigar ainda mais a negociação individual em detrimento do agir coletivo. Tal pretensão fez-se refletir igualmente nas regras atinentes ao regime de trabalho de 12×36 horas[13] e ao Banco de Horas[14], cujas disposições passaram a validar acordos individuais de trabalho.

Tais mudanças imbricam-se com as ampliações de contratos de trabalho precário. Não se deve perder de vista que a Lei 13.467, de 2017, como visto, com a intenção de tornar ainda mais flexível e inseguro o mercado de trabalho no Brasil, majorou modalidades de contratação atípica, distantes do contrato standard, por prazo indeterminado e por tempo integral, além de criar outras.

Novas figuras jurídicas como os contratos de trabalho intermitente[15],  teletrabalho[16] e o regramento do autônomo exclusivo[17] passaram a ser disciplinados pela legislação infraconstitucional como forma de garantir mão de obra a custos ainda mais baixos.

Já as modalidades de contratação atípica antes previstas receberam atenção do legislador reformador, mediante a concessão de ampliação de possibilidades e a facilitação aos empregadores para contratar, o que se denota claramente em relação às alterações praticadas nos contratos temporários e a tempo parcial[18].

Mais grave, contudo, foram as modificações intentadas no tocante à possibilidade de terceirização de mão de obra. As barreiras legais e jurisprudenciais a conferir validade a esta modalidade de contratação foram retiradas, passando-se a permitir contratar-se mão de obra terceirizada sem restrição, inclusive, para desenvolver atividades econômicas em áreas centrais ao negócio do tomador dos serviços.[19]

Assim, chega-se a insensatez de reputar-se em conformidade com a lei a terceirização integral de todas as atividades empresariais, a fim de ser facultado aos empregadores não possuírem empregados por eles contratados diretamente, o que induz ao esvaziamento de conteúdo do próprio conceito de empregador, estabelecido no artigo 2º da CLT, lá definido como aquele que contrata, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviços.

Tal flexibilização negativa de regras de proteção trabalhista não alcançaria a plenitude dos efeitos desejados se fossem previstas quaisquer garantias de isonomia aos(às) trabalhadores(as) terceirizados(as). Portanto, sem prever igualdade de direitos entre terceirizados(as) e contratados(as) diretamente pelo tomador dos serviços, a legislação garantiu a maximização da precarização das relações de trabalho.

Alterações em matérias nucleares do contrato individual de trabalho como remuneração e jornada aparentam ser de menor importância quando comparadas aquela promovida com a inclusão do artigo 611-A à CLT e, com ela, a concretização do insistente desejo do patronato brasileiro de sobreposição da negociação coletiva às regras infraconstitucionais, mesmo que em prejuízo aos(às) empregados(as).

Antes, contudo, a concessão de tal autonomia negocial às entidades sindicais fez-se acompanhar de importantes modificações nas regras relativas a sua sustentação financeira, demonstrando existir uma tentativa de enfraquece-las com asfixia econômica.

Os eixos parecem notórios.

Privilegia-se a autonomia individual aos(às) trabalhadores(as) e afasta-se os sindicatos da cena negocial. Criam-se e ampliam-se modalidades de contratação de emprego precário, fato que permite a fragmentação maior da classe trabalhadora, criando clivagens no seio das categorias profissionais e interprofissionais. Consentaneamente, reduz-se a capacidade de arrecadação financeira das entidades sindicais e, a elas –­ enfraquecidas pelos transtornos econômicos e pelas dificuldades de representatividade criados pelas novas regras – concede-se a autonomia para derrogar direitos previstos em lei.

Passados mais de dois anos da reforma trabalhista pode-se aludir terem a insegurança e flexibilidade no mercado de trabalho sido devidamente alcançadas. Resta saber, no entanto, se a precarização das condições de trabalho traduziu-se em crescimento econômico e em maior empregabilidade.

 

IV. AS CONSEQUÊNCIAS ECONÔMICAS E SOCIAIS DA REFORMA TRABALHISTA

Se as medidas para desregulamentar o mercado de trabalho no Brasil não foram inéditas, mas, ao contrário, representaram a reedição de um receituário neoliberal implantado a partir da agenda do grande capital na maior parte do mundo ocidental, as consequências econômicas e sociais decorrentes de tais políticas deveriam também de se repetir.

Nos Estados Unidos da América pode-se constatar que entre 1983 e 2009, as políticas de austeridade permitiram ao segmento composto pelos 5% mais ricos daquele país abocanhar quase 82% do crescimento econômico obtido no período. Em contrapartida, o contingente equivalente aos 60% mais pobres da população registrou um decréscimo de 7,5% em sua renda.

Números também impactantes podem ser extraídos a partir do exemplo português. Pesquisa realizada em 2011 apontou que a crise econômica então vivida ocasionou perda na renda média de 4,5% a 6% para os 20% mais pobres, mas somente da metade disso para os 20% mais ricos.[20]

Na Espanha, onde desde 1984 uma série de iniciativas legislativas tornou mais flexível a possibilidade de contratos temporários, essa modalidade de contratação precária já ocupava 35%, em 1995, e 30%, em 2006, do mercado de trabalho espanhol.[21]

Ao analisar os resultados das medidas neoliberais sobre o mercado de trabalho europeu, o economista britânico Guy Standing concluiu terem a facilitação de contratação temporária e a terceirização de mão de obra produzido mais uma segmentação dentro da classe trabalhadora, a partir de um novo contingente formado por pessoas mal remuneradas, sujeitadas a trabalhos de curtas de duração e sem segurança ou estabilidade.[22]

Decorridos mais de dois anos da reforma trabalhista no Brasil parece perfeitamente viável analisar-se os efeitos econômicos e sociais produzidos até o momento, em especial, sobre o mercado de trabalho do país.

A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua, divulgada trimestralmente pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), constitui-se em balizador confiável da situação do mercado de trabalho no país.

De acordo com tal pesquisa, no trimestre imediatamente antecedente ao início da vigência da reforma trabalhista, o Brasil apresentava uma taxa de desemprego (desocupação) de 12,4%, o que indicava uma melhora de 0,6% relativamente ao trimestre anterior. Já a taxa de subtilização da força de trabalho, considerada por desempregados (as), trabalhadores (as) em regimes parciais de jornada e por pessoas que têm interesse em trabalhar, mas não procuraram trabalho ou não estavam disponíveis a procurar (força de trabalho em potencial) foi de 23,9% da população economicamente ativa, significando na época cerca de 26,8 milhões de pessoas.

No trimestre seguinte, praticamente ainda sem sofrer influência das modificações legislativas, a taxa de desemprego foi registrada em 11,8% e em 23,6% a de subutilização da força de trabalho. A média naquele ano foi de 23,8%.[23]

Dois anos depois, os números relativos ao terceiro e ao quarto trimestres de 2019 já contemplavam os efeitos das medidas de flexibilização das regras trabalhistas sobre o mercado de trabalho. O terceiro trimestre apresentou taxa de desocupação de 11,8% e de subutilização da força de trabalho de 24%. No trimestre seguinte registraram-se 11% de desempregados e 23% de força de trabalho subocupada, com média anual neste critério de 24,2%.

Outro ponto importante reside na avaliação das proporções do mercado formal e informal de trabalho na população economicamente ativa. No terceiro trimestre de 2017, anotava-se existirem 48% de brasileiros (as) ocupando postos de trabalho com vínculo formal de emprego, 25% declarando trabalharem por conta própria e 21,9% de trabalhadores informais. Esses números foram citados pelo deputado Rogério Marinho, relator do projeto, quando asseverou que 40% de brasileiros estavam no mercado informal. O número exato, em verdade, seria 46,9%.

Mesmo com todas as medidas de flexibilização de normas trabalhistas, incluindo aquelas que facilitaram a utilização de subempregos, a partir dos contratos de intermitentes, para dissimular os índices de desemprego, não se verificou crescimento nos números de contratos formais de trabalho. Ao contrário, no terceiro trimestre de 2019, havia 26% de trabalhadores (as) por conta própria e 26,4% de informais, o que representava 52,4%, para adotar os mesmos critérios do Deputado Rogério Marinho. [24]

As estatísticas demonstram cabalmente que a reforma trabalhista não produziu os efeitos propalados pelos defensores de medidas de desregulamentação do mercado de trabalho.

As políticas de austeridade fiscal, incrementadas por onde a racionalidade neoliberal tornou-se hegemônica, nada produziram se não concentração de renda e desigualdade social.

 

CONCLUSÃO

Resultado da ação da racionalidade neoliberal sobre o Direito do Trabalho, a reforma trabalhista no Brasil produziu profundas mudanças nas regras atinentes ao mercado de trabalho. A propagada intenção de modernizar a legislação trabalhista, tornando-a mais flexível e, assim, mais atrativa aos capitalistas a fim de gerar crescimento econômico e novas riquezas, não se concretizou, constata-se. Nem se concretizará.

O receituário empregado – dissimulado em um discurso modernizante e inovador – não detém condições de fazer-se cumprir as promessas formuladas pelos ideólogos neoliberais, já tendo demonstrado isso em todos os lugares por onde se buscou substituir direitos por empregos.

A falácia do crescimento econômico propiciado pela retirada ou redução de direitos sociais também se fez perceber no Brasil. Sob esse pretexto produziu-se uma reforma na legislação trabalhista com a finalidade de tornar o mercado de trabalho brasileiro mais inseguro, menos estável, mais barato e, portanto, mais lucrativo ao capital.

A reforma trabalhista produziu a fragilização dos sindicatos profissionais impondo-lhes uma base de representação mais fluida e fragmentada, ocasionada pela ampliação das modalidades de contratos de emprego precários, em especial, pela legalização da terceirização de mão de obra sem restrições. Ao mesmo tempo, interferiu severamente na capacidade de as entidades sindicais sustentarem-se, deixando-as economicamente débeis.

À medida que enfraqueceu os sindicatos a nova legislação ampliou a autonomia negocial, relativizando o caráter imperativo das normas trabalhistas que passaram a poder ser derrogadas por intermédio da negociação coletiva.

Longe de vislumbrar-se crescimento econômico e geração de riqueza a ser desfrutada pela sociedade, o que se enxerga no horizonte é um capitalismo triunfante com a reforma promovida e com a submissão da classe trabalhadora a um novo arranjo institucional em que ele recupera as concessões realizadas no passado e pretende resgatar o tempo perdido maximizando a mais-valia e potencializando os lucros.

O direito do trabalho que havia no Brasil, como historiado anteriormente, era fruto de seu contexto histórico. O direito do trabalho atual, depois do golpe de 2016 e da reforma trabalhista que propiciou também, é tributário da história das relações de classe que se estabeleceram na sociedade. Assim como aquele direito do trabalho que se conhecia já não subsiste, esse que tem na atualidade não é definitivo. O direito sempre materializa, histórica e concretamente, relações que se estabelecem na sociedade. Nenhuma conquista é eterna. Nem para a classe trabalhadora, nem para o patronato.

Depois das reformas austericidas neoliberais, desaparecendo o caráter de amortecedor entre as classes sociais que caracterizava o direito do trabalho do passado, outorgando alguns direitos para obter a submissão da classe trabalhadora à maneira capitalista de viver em sociedade, as condições objetivas para a crítica do capitalismo, contraditoriamente, nunca estiveram tão evidentes. Destruíram as mediações existentes na luta de classes. Acabaram com os direitos sociais (reforma trabalhista), desmontaram as políticas públicas para os pobres (teto nos gastos públicos), destruíram as promessas de uma velhice assistida (reforma previdenciária), promovem a morte de dezenas de milhares de pessoas (insistência patronal para a reabertura dos negócios em plena pandemia), escancaram o ataque à democracia formal (derretem as instituições). Fiquem esses exemplos. O capitalismo brasileiro se mostra como realmente é, sem mediações, sem véus ideológicos, a ocultar sua perversa natureza.

Como as relações sociais não são estáticas, e como o neoliberalismo sucumbirá seguindo a trajetória de fracasso em todas as experiências anteriores, certamente, as relações conflitivas entras as classes sociais fundamentais engendrarão, cedo ou tarde, uma nova regulação do trabalho no Brasil.

 

[1] Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Professor adjunto aposentado de Direito do Trabalho da UFPR. Presidente do Instituto de Defesa da Classe Trabalhadora (DECLATRA).

[2] Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Pós-doutorando em Direito na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor de Direito do Trabalho e Sindical em cursos de pós-graduação em Direito. Advogado trabalhista em Curitiba. Diretor Institucional do Instituto de Defesa da Classe Trabalhadora (DECLATRA).

[3] STREECK, W. Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático. Tradução Marian Toldy, Teresa Toldy. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2018.

[4] Na esteira de LAVAL e DARDOT, compreende-se o neoliberalismo como uma racionalidade, ou a “razão do capitalismo contemporâneo”, definindo-o como o “conjunto dos discursos, das práticas, dos dispositivos que determinam um novo modelo de governo dos homens segundo o princípio universal da competição”, cuja pretensão se constitui em triunfar sua racionalidade sobre governos, empresas e indivíduos, induzindo a redução dos laços de solidariedade e impondo a desregulação dos mercados de trabalho como forma de estimular tal competição. (DARDOT, P; LAVAL, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Tradução Mariana Echalat. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2016. p. 17)

[5] De acordo com o cientista político MarK Blyth, austeridade significa “uma forma de deflação voluntária em que a economia se ajusta através da redução de salários, preços e despesa pública para restabelecer a competitividade, que (supostamente) se consegue melhor cortando o orçamento do estado, as dívidas e o déficit”, com vistas a recuperar a confiança empresarial. (BLYTH, M. Austeridade: a história de uma ideia perigosa. Tradução de Freitas e Silva. São Paulo: Autonomia Literária, 2017. p. 22).

[6] SILVA, S. G. C. L; ALLAN, N. A; TRIANI, V. A. Negociado sobre o legislado em dois tempos: a Lei n. 13.467/2017 em diálogo com o PL n. 5.483/2001. In: SILVA, S. G. C. L; EMERIQUE, L. B; BARISON, T. Reformas institucionais de austeridade, democracia e relações de trabalho. São Paulo: LTr, 2018. p. 168-180.

[7] Disponível em: https://www.fundacaoulysses.org.br/wp-content/uploads/2016/11/UMA-PONTE-PARA-O-FUTURO.pdf, acesso em 27. Maio. 2020.

[8] Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1544961, acesso em: 27. Maio. 2020. p. 20.

[9] Ibidem, p. 18.

[10] Ibidem, p. 19.

[11] RODRIGUEZ, A. P. Princípios de Direito do Trabalho. Tradução Wagner D. Giglio. São Paulo: LTr, 1978;

[12] Art. 444. (…)

Parágrafo único.  A livre estipulação a que se refere o caput deste artigo aplica-se às hipóteses previstas no art. 611-A desta Consolidação, com a mesma eficácia legal e preponderância sobre os instrumentos coletivos, no caso de empregado portador de diploma de nível superior e que perceba salário mensal igual ou superior a duas vezes o limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social.

[13]  Art. 59-A.  Em exceção ao disposto no art. 59 desta Consolidação, é facultado às partes, mediante acordo individual escrito, convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho, estabelecer horário de trabalho de doze horas seguidas por trinta e seis horas ininterruptas de descanso, observados ou indenizados os intervalos para repouso e alimentação.

[14] Art. 59 (…)

§ 5º  O banco de horas de que trata o § 2o deste artigo poderá ser pactuado por acordo individual escrito, desde que a compensação ocorra no período máximo de seis meses.

[15] Art. 443 (…)

§ 3o  Considera-se como intermitente o contrato de trabalho no qual a prestação de serviços, com subordinação, não é contínua, ocorrendo com alternância de períodos de prestação de serviços e de inatividade, determinados em horas, dias ou meses, independentemente do tipo de atividade do empregado e do empregador, exceto para os aeronautas, regidos por legislação própria.

[16] Art. 75-C.  A prestação de serviços na modalidade de teletrabalho deverá constar expressamente do contrato individual de trabalho, que especificará as atividades que serão realizadas pelo empregado. § 1º  Poderá ser realizada a alteração entre regime presencial e de teletrabalho desde que haja mútuo acordo entre as partes, registrado em aditivo contratual.                   § 2º  Poderá ser realizada a alteração do regime de teletrabalho para o presencial por determinação do empregador, garantido prazo de transição mínimo de quinze dias, com correspondente registro em aditivo contratual.

[17] Art. 442-B.  A contratação do autônomo, cumpridas por este todas as formalidades legais, com ou sem exclusividade, de forma contínua ou não, afasta a qualidade de empregado prevista no art. 3o desta Consolidação.

[18]  Art. 58-A.  Considera-se trabalho em regime de tempo parcial aquele cuja duração não exceda a trinta horas semanais, sem a possibilidade de horas suplementares semanais, ou, ainda, aquele cuja duração não exceda a vinte e seis horas semanais, com a possibilidade de acréscimo de até seis horas suplementares semanais.

[19] Art. 4o-A.  Considera-se prestação de serviços a terceiros a transferência feita pela contratante da execução de quaisquer de suas atividades, inclusive sua atividade principal, à pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviços que possua capacidade econômica compatível com a sua execução.   (Redação dada pela Lei nº 13.467, de 2017)

[20] FERREIRA, A. C. Sociedade da austeridade: e direito do trabalho de exceção. Vida Económica: Ebook.

[21] LÓPEZ, E. S.; PASCUAL, A. S. Precarización e individualización del trabajo: claves para entender y transformar la realidad laboral. Barcelona: Editorial UOC, 2016, p. 24-25.

[22] STANDING, G. The Precariat: The New Dangerous Class. London: Bloomsbury, 2011, p. 5.

[23] Disponível em:

https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/709e5e53abd490f9831bb6d482041106.pdf, acesso em 30. Maio. 2020.

[24]Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/07182068b89dcffa9ffde7c6aa5c18ff.pdf, acesso em 30. Maio. 2020.

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Por que refletir e debater sobre a importância da segurança pública para a democracia? Como a esquerda trata o tema e de que maneira a segurança deve figurar na agenda do campo progressista? Quais devem ser as ações futuras? A violência, o crime e a regressão de direitos são temas locais. A construção da paz e da democracia deve ser encarada como um desafio transnacional, continental e o Sul global deve ser protagonista na construção dessa utopia. Todas estas questões trazem inquietude e precisam ser analisadas. Com esta preocupação, o Instituto Novos Paradigmas reuniu algumas das principais referências sul-americanas no campo progressista, no Seminário Democracia, Segurança Pública e Integração: uma perspectiva latino-americana, realizado em Montevidéu, no dia 12 de outubro de 2023. Um momento rico em debates e no compartilhamento de experiências, considerando a necessidade da integração regional. Este documentário traz uma síntese do que foi discutido e levanta aspectos que não podem ser perdidos de vista frente às ameaças do crescimento da direita e da extrema direita no mundo e principalmente na América do Sul.
Video do site My News Pesquisa levada a cabo por pesquisadores da Faculdade de Saúde Pública da USP, Centro de Estudos de Direito Sanitário e Conectas explica porque o Brasil não chegou à toa ao caos no enfrentamento da pandemia da COVID 19 Assista a Professor Deise Ventura, uma das coordenadoras da pesquisa.
O ex-ministro da Justiça Tarso Genro aborda as novas relações de trabalho no Congresso Virtual da ABDT.
O ex-ministro da Justiça do Governo Lula participou de um debate ao vivo na CNN com o ex-presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, desembargador Ivan Sartori. O tema foi a decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello de tornar pública a reunião ministerial do dia 22 de abril, apontada por Sérgio Moro como prova da interferência do presidente na Polícia Federal. Tarso Genro considera acertada a decisão de Celso de Mello.
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