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A questão da legitimidade no Estado Social de Direito Instituição da Ordem

Tarso Genro

Advogado. Ex Ministro da Justiça, da Educação e das Relações Institucionais. Ex Governador do Rio Grande do Sul.

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Nada mais fácil para uma compreensão do Estado Social de Direito do que recorrer à concepção naturalista de Hobbes. Ela parte de uma suposta constatação empírica pela qual as “faculdades” humanas do espírito e do corpo são iguais em todos os seres humanos, porém, atenção: para Hobbes precisamente esta igualdade é que gera a desconfiança e a guerra, bloqueando uma sociabilidade civilizatória pautada pela igualdade.

Para Hobbes “essa igualdade de capacidade gera igualdade de desejos e esperanças em atingi-los e quando dois homens desejam a mesma coisa e não podem usufrui-la, simultaneamente, tornam-se inimigos e esforçam-se para destruir ou subjugar, um ao outro”.[1] A “subjugação”, que elimina esta disputa, seria  –para Hobbes– a base da ordem estável e o destino natural das pessoas derrotadas na disputa pelos seus desejos, cuja subjugação seria determinada pela imposição da força e pela astúcia do subjugador.

O Estado de Direito –como oposto da ordem hobbesiana– seria, portanto, uma montagem normativa “antinatural”, baseada em relações de solidariedade com subjugação, que integrará –nos fundamentos da dominação social– os acordos possíveis e os consensos construídos. Desta forma, o uso da força consentida e limitada –já dentro do Estado Social de Direito– seria regularizada, para que o uso da “astúcia” dominadora fosse contida. Assim instaurada, a ordem do Estado Social promoveria uma relação de sociabilidade mais humanizada, que colocaria limites na dominação pelo do mais forte.

Instituir uma ordem eficaz requer, preliminarmente, ter poder para tanto. Em segundo lugar, para que o poder que institui a ordem obtenha um consenso entre os destinatários da ordem, os seus instituidores precisam da aquiescência dos que são “ordenados”, a saber, que eles reconheçam –no Poder que organiza a ordem– uma força exercida com finalidades lícitas. No auge da formalização jurídica do Estado Moderno a integração entre direito e política atinge o seu ponto máximo, no qual se acentua o ativismo do Poder Judiciário. É quando a “atividade” extraordinária deste poder deixa de ser uma “deformidade” ou “anomalia” e se torna uma nova característica do seu ser concreto.

Este ativismo em expansão, porém, não se move em especial para dar efetividade aos direitos do Estado Social. Este aspecto “social” e possível do Estado, só começa integrar de forma predominante a vida comum –regrada no Estado de Direito do século passado–  quando for hegemônica uma sociabilidade política que impulsione a solidariedade como prática de Estado. É o período que se abrirá quando for superado, politicamente, “o consenso entorpecente, o politicamente correto dos comunicadores televisivos e das elites partidárias e universitárias sobre a justiça”, que tem transformado as decisões da mídia em uma primeira e última instância “parajudicial”, nas quais o Estado onipotente “lava a honra” da sociedade em crise.

No período atual, não raramente o Poder Judiciário vem se permitindo prolatar decisões que levam ao absurdo os privilégios da desigualdade, reavivando na esfera pública “uma forte tendência a (aceitar) a atuação governamental e legislativa fragmentadora do estoque constitucional de direitos e garantias trabalhistas”[2]. Trata-se de um processo de inovação decadente e prematura do Estado Social de Direito .

Não se trata apenas, no caso, de maus consensos ou de um ataque premeditado à democracia, mas de um novo modo de ser na produção da Justiça, sustentado na midiatização do jurídico como elemento da reprodução social capitalista. É um movimento, tanto espontâneo como induzido, mas sempre apoiado numa hermenêutica incompatível com o sistema de normas que organiza a vida comum no Estado Social.

Este contraditório, entre a Justiça (tornada ideologia do conforto midiático) e a efetividade dos direitos fundamentais (como conduto de afirmação do Estado Social de Direito), deve ser tratado com atenção. Ele versa sobre “os conteúdos, as ideias fundadoras  –a igualdade perante a alei e o direito do acesso à Justiça em condições de igualdade, agrego– não as suas lateralidades e as suas evasivas formalidades (…) e esse contraditório (da parte  do Estado Social) na essência, (se) assenta em querer melhorar o que está –a partir do Direito– para dar um futuro à Justiça sem se conformar com o que está a ser produzido pelo cotidiano”,[3] manipulado no mercado de ideias da obsolescência doutrinária programada.

Vejamos de maneira esquemática como se dá, em regra, a formalização de ordem jurídica democrático-liberal, utilizando para tanto a parábola de uma mesa de refeição: alguém que “põe a mesa” na sua casa –para um jantar entre convidados aleatórios– precisa instituir uma ordem, pois o evento que está sendo composto por indivíduos de diferentes posições sociais e origens, deve assumir uma determinada conformação. E deve ser previsível.

A mesa –de mogno ou de plástico– os pratos, de porcelana ou chineses; os talheres, de prata ou de ferro fundido; a toalha de linho– os guardanapos, as refeições e todo o ambiente acondicionam a mesa para o desfrute dos convidados. Os lugares das pessoas na mesa, já com os instrumentos de uso postos à disposição, dizem muito a respeito do que será o jantar. Se ele é uma simples celebração formal, se vai ser servido com mais (ou menos) hierarquia; se as pessoas que estão na mesa, pelos lugares que ocupam –mesmo em condições só formais de igualdade– estarão mais próximas ou mais distantes daquele sujeito com “poder” que convocou o acontecimento.

A parábola da mesa é a parábola da instituição de uma ordem. Ela é pretendida, mas nem sempre realizada na vida real como foi prevista. O seu ideal concebido é –entre outros fatores– também condicionado pelo comportamento e as expectativas dos comensais, o que implica que a “ordem” –como resultado–  nunca será exatamente como quis o seu poder “instituidor”. Aquele espaço regulado, todavia, vai se organizar dentro de alguns marcos projetados pelo anfitrião, cuja capacidade convocatória foi aceita sem restrições ou foi consensuada.

Os sentidos que resultam de uma ordem são orientados pelas normas emitidas pelo poder que a instituiu, mas estes sentidos também adquirem vida própria, mesmo que sejam estáveis por um certo tempo. O processo de configuração dos sentidos da ordem tensiona os seus limites para um objetivo pressuposto, que nunca é revelado totalmente na norma, mas que esteve presente no processo político em que ela foi construída. Exemplos críticos destes limites: os convidados poderiam por vontade própria “trocar de lugar” – independentemente da permissão do anfitrião– sem que a ordem desmoronasse? Alguma normatização poderia (ou deveria) prever que –dentro da ordem– milhares poderiam morrer de fome ao lado dos abastados e dos ricos?

Estes parâmetros da ordem são claros ou ocultos –supostos ou induzidos–  mas necessariamente traçam limites. Suas linhas de resguardo, de um lado evitam a dissolução anômica do compartilhamento (ali proporcionado) e de outro mantém o convívio (previamente organizado) entre os circunstantes. O grau de acolhimento desta ordem permite, portanto, pelas suas formas de recepção legitima, que mesmo aqueles que não tenham as suas expectativas atendidas mantenham os compromissos que os levaram até ali.

A definição do “sentido” que a ordem  jurídica na sociedade contemporânea adquire, como ordem concreta, é frequentemente “judicializada” e é possível constatar nos Tribunais Constitucionais, tanto decisões que fazem as harmonizações destes sentidos, coerentes com o Estado Social de Direito, bem como decisões que levam a sua desarticulação, pela resistência dos mesmos Tribunais a ajustar-se ao conteúdo do Estado Social.

Os prolatores de tais decisões trazem para a “ordem concreta” a leitura que fazem da ordem normativa, posta pelo Constituinte na Lei Constitucional, sempre em uma destas das suas possibilidades. O conceito de Estado Social contido no Preâmbulo da Constituição do Estado Social, todavia, obriga uma nova hermenêutica que “dê vazão” às possibilidades de igualdade e de solidariedade, já que é nele –Preâmbulo– que o Direito e a Política constituinte estão harmonizados e concentrados.

Tomemos debate sobre o direito de greve como exemplar para melhor compreender o sentido das limitações ao direito de greve, em casos concretos (como nos “serviços essenciais”) a partir de decisão do Tribunal Constitucional Espanhol. A referida decisão indica uma alternativa de interpretação da lei de forma coerente com o sentido do Estado Social, ao examinar uma greve deflagrada num serviço essencial. E ela “modula” a essencialidade desta forma: “não há razão neste momento (de limitar) o direito de greve, (pois) a técnica de conciliação entre ambos os direitos (…) no caso de greve nos meios de comunicação, desdobrando o momento temporal do exercício do direito”, permite a “determinação concreta do conteúdo de serviços mínimos”, registra com maestria Antonio Baylos [4].

Imaginar uma eventual mudança de “posição nas relações de poder”, que interferem no sentido das normas produzidas na “mesa” constituinte ajuda, de um lado, a compreensão normativa do Direito no Estado Social e, de outro, a compreender que o sistema fixa sua legitimidade por dentro do contexto histórico-político da época, moldando aqueles sentidos possíveis, já expressos nas leis positivas.

Estas normas diretamente positivadas são um dever ser formal, “se é que ainda se pode manter a ideia de norma jurídica, pois alguns preferem falar em regras e princípios, (sendo a) hermenêutica uma tentativa de se manter a estrutura normativa, ampliando as suas fontes de produção de sentido”.[5] Independentemente de qual seja este sentido, porém, o processo hermenêutico está lá para conciliar as fontes da produção dos sentidos, já que o direito moderno fundado nas abstrações filosóficas iluministas organiza uma trama normativa que possibilite o máximo de coerência formal  para àquelas abstrações.

 

 Ordem e Legitimidade

No seu clássico “Critica da Modernidade”[6]  Alain Touraine, depois de salientar a oposição de Rosseau (defensor da soberania popular como soberania política a serviço da razão) a Voltaire (defensor de que a modernidade conduziria  –por si mesma– a uma ordem social racional), Touraine defende que a concepção iluminista “não é uma filosofia do progresso, –mas quase o contrário–  uma filosofia da ordem”[7]. Ele percebe que a estrutura de poder como ordem, designa as formas legítimas do Governo soberano no Estado Nacional Moderno. Sem estas formas não haveria a previsão de direitos nem o exercício de prerrogativas. Nem se abririam espaços de legitimação para a resistência ao arbítrio.

A legitimidade da ordem jurídica do Estado Social de Direito, tem sido alvo de inúmeras concepções que se propõem mostrar –através dos juízos sobre o seu desenvolvimento prático– qual é o sentido da ordem. Aqueles juízos formam-se tanto na jurisprudência –que diz o sentido conjuntural das normas– como nascem pelo preenchimento dos seus silêncios normativos, a partir da autoridade do Estado pela “exceção” (ou pelo acordado como interpretação) entre as visões de mundo concorrentes nos espaços de decisão.

O consenso, portanto, é um dos elementos da legitimidade, tanto do Estado como do seu Governo. Já a organização das suas formas jurídicas é tanto necessidade como consciência: menos a consciência da razão abstrata e mais a racionalidade concreta imposta pela vida. Os consensos, em qualquer Estado realmente instituído, aliás, “nunca (foram) (nem são) livres; ao contrário sempre são (e foram) pelo menos em parte forçados e manipulados”[8]. Os seus aspectos forçados dizem da cogência das leis e os seus fundamentos manipulatórios dizem da natureza da política democrática, pelo exercício da inteligência e uso da força.

As mediações políticas que legitimam a força constituinte vão compondo, então, processualmente sua materialidade, pois, como diz Müller, “quando o termo “povo” aparece em textos de normas, sobretudo em documentos constitucionais, deve ser compreendido como parte integrante com pretensão de (força material) plenamente vigente da formulação, na prescrição jurídica (do tipo legal), (que) deve ser levado a sério como conceito jurídico e ser interpretado “lege artis”.”[9]

O nascimento dos regimes representativos, fruto das grandes revoluções políticas modernas, criou condições para uma substancial juridificação da política (…)[10] e fundiu, provavelmente por um longo período, direito e política, na democracia liberal representativa. A discussão do Estado de Direito então, que fez avançar a ideia de soberania –oposta à tradição “fechada” de castas e corporações da Idade Média– parte agora de novos fundamentos, pois neles estão os sentidos possíveis da ordem   concreta, tal qual possibilita o Estado Social.

O Estado Social, formatado em países como o Brasil, é produto da expansão do constitucionalismo moderno, que transitou desde a eliminação das ordens jurídicas que aceitaram e “naturalizaram” o escravismo até os dias de hoje. Esta expansão veio através do Direito Público, pela via do direito administrativo, do direito civil como regulador das relações da família e propriedade na democracia  –pela via do direito do trabalho como direito social básico– e agora, fortemente, como expressão de um direito penal internacional: neste, o “fenômeno de globalização marca a passagem de um modelo de Sociedade Industrial clássica para um modelo de sociedade de risco, provocado pelo avanço tecnológico e pelo poder econômico”[11], através dos quais determinados padrões de criminalidade se universalizaram.

No Estado de Direito possível como Estado Social, fica indicado “um valor (que) alude só a uma direção para a organização do Estado como Estado Social, mas não encerra, em si mesmo, consequências precisas. Este valor, na sua trama normativa, é a eliminação da arbitrariedade no âmbito da atividade estatal que afeta aos cidadãos”[12]  e as suas incidências na vida das pessoas  –no Estado Social de Direito– será marcada pelo grau de efetividade dos direitos fundamentais, dentre eles os direitos sociais.

Mas nesta mesma vida “os direitos sociais, porém, se conformaram  –como diz Pisarello– como direitos de “tutela debilitada”, ou praticamente como direitos “não fundamentais”, a saber, direitos “menos sérios” que os demais, em primeiro lugar e, em segundo lugar, porque (outrora) fixados como direitos justiciáveis, (…) não podem ser invocados ante um Tribunal, mais ou menos independente, com o objetivo de que este estabeleça medidas de reparação antes de sua violação (…)”.[13] A denominada “reserva do possível”, usada pelos Tribunais, para não deferir as postulações vinculadas aos direitos fundamentais, é a base doutrinária da “práxis” que nega sua a efetividade.

O Estado de Direito –ora “social de direito”– “composto por diversas culturas jurídicas que atravessam a era moderna” (já jurídificada plenamente) “nasce no momento em que a ideia do Governo das Leis interage com a ideia da soberania do Estado Nacional Moderno”.[14] A questão é saber se o resultado da nova interação normativa do Direito com o capitalismo, (tal qual está sendo “ordenada” pelo sistema material e formal do capital financeiro) é um ponto de partida válido para aferir o grau de legitimidade, tanto dos Estados como dos governos, na sociedade democrática da etapa do Estado Social.

A metodológica que constrói uma dogmática capaz de promover os direitos sociais como “justiciáveis”, deve ser coerente com a etapa da modernidade na qual o Estado de Direito é Estado Social. Este (Estado Social) –abriu aquele– (Estado moderno de Direito) para as novas produções de sentido, que imputam um novo sentido ao Estado moderno. Ele não pode mais absorver reformas regressivas ou acolher uma dogmática que ignore a orientação do Preâmbulo que rejeita, de forma radical –por exemplo–  tanto o fascismo como o ultraliberalismo.

A conformação do Estado de Direito como Estado Social, dentro das reais relações de poder, firmou-se com normas jurídicas vinculadas ao Preâmbulo da Constituição[15], pois é nele que a política realizou o Estado de Direito, independentemente do grau de efetividade que o Estado Social já materializou nas promessas dos direitos fundamentais.

 Esta conclusão vem na esteira da própria evolução do constitucionalismo moderno, pois o seu “cerne”, no texto da Constituição, é formado “num primeiro momento, por textos de normas; uma Constituição enquanto diploma só pode conter textos de normas (artigo 79, inciso III, alínea I e artigo 20da LF). Mas já que estes textos de normas devem fornecer o critério de aferição de legitimidade, eles legitimam somente à medida que a práxis constitucional se a coaduna realmente com eles”.[16]

 

Os trânsitos de legitimidade dentro da ordem

O Estado moderno não gera mecanicamente um constitucionalismo social, pois o absolutismo “na emergente ordem estatal dos inícios da modernidade não admite, ainda, a diferenciação funcional entre política e direito”, mais tarde unificados para serem separados, quando necessário, com vistas a reforçar ou debilitar o Estado Social: “não obstante, o que surgia como nova, era a tendência à superação dos fundamentos sacros do poder, a dessacralização do direito. Dessa tensão entre instrumentalidade e indisponibilidade do direito surge como evidente[17] que a política radica o Direito, não mais de forma mediata, mas imediatamente, pela sua conformação constituinte. O Estado Social do Direito reconheceu plenamente a pluralidade classista do Direito, regrado na Constituição e assim chancelou normativamente esta pluralidade, dando a ela um sentido de solidariedade e equilíbrio social.

É recorrente no constitucionalismo moderno o convívio entre uma ordem legítima e um governo ilegítimo, assim como são possíveis longos períodos de convívio entre uma ordem legítima governos ilegítimos. Onde existe uma coincidência permanente, todavia, entre governo ilegítimo e ordem ilegítima o direito desaparece. No caso, o Estado transforma-se em máquina de poder sem direito, dotada de regulações para o exercício criminoso da força. Carl Schmitt é quem teoriza e tenta dar dignidade à ordem nazista, que se realiza quando o Estado absorve e elimina a cidadania da vida política do Estado Moderno e assim monopoliza o crime.

Na crítica da cidadania contemporânea de Juan Ramon Capella fica anotada a dissolução de poder que a cidadania sofre (inclusive na esfera de política democrática do Estado Social) pois, segundo Capella, ao “delegar integralmente ao Estado a tutela dos seus direitos”, ela se esvai e pode chegar a aceitar majoritariamente, num momento de crise extrema, o convívio com o nazifascismo ou regimes assemelhados.

Hoje este cenário é promovido pelo deslocamento da força normativa da Constituição para o poder que o capital financeiro exerce para forçar negação do Estado Social. Este poder do capital financeiro tende a substituir a força normativa da Constituição e também dilui  –gradativamente–  a energia da política para promover o exercício de direitos fundamentais do Estado Social. Na democracia liberal, ao tolerar uma democratização “falsa e insuficiente”, que não impede o poder político privado de modelar a “vontade estatal” (e) facilitar o crescimento, supraestatal e extraestatal deste poder privado, a renúncia aos direitos cidadãos se completa.”[18]

Lembremo-nos que o conceito totalitário de cidadania, foi integrado nas experiências fascistas já durante o período da  ascensão nazi, no qual o “estado normativo” e o “estado discricionário” conviveram em conflito. O avanço totalitário sobre a cidadania, em Weimar, já iniciara antes da edição das normas ditatoriais impostas por Hitler, apoiado nas ações violentas dos grupos paramilitares e do próprio aparato administrativo do Reich. Estas possibilidades de deformação, ainda que com formas jurídicas adaptadas, não estão eliminadas na crise atual do sistema democrático-representativo. Basta conferir as posições defendidas pelo Presidente Bolsonaro na reunião Ministerial do dia 23 de maio, na qual ele defendeu abertamente –na presença do seu Ministro da Justiça emudecido–  a criação de milícias armadas para neutralizar os adversários do seu demente projeto de Governo.

Não há na história um ascenso linear de “vitórias” nas lutas coletivas ou individuais contra a opressão econômica e social. O mais visível é que os avanços não são cumulativos e apenas revelam “a crescente consciência dos direitos que afrontam perigos cada vez maiores nas sociedades complexas”,[19] inclusive porque os direitos não permanecem fixados na vida comum do povo concretoA crise global do “coronavírus” leva este afrontamento aos píncaros do drama universal.

O conceito de cidadania, expresso no artigo 2.1 da “Lei da Cidadania” do Reich” nazista, é exemplar para explicitar o trânsito da legalidade do Estado–Governo para a norma, desta para a coerção plena e, após, para o assentamento dos consensos manipulados. Tal artigo diz que o “cidadão do Reich” é o súdito do Estado, “de sangue alemão ou similar, o qual, através de sua conduta demonstra, que está disposto e é capaz de servir com lealdade ao povo e ao Reich alemão”.[20]

Ernst Fraenkel, no seu clássico “O Estado Dual” observa que no nazismointegrado no “Estado legal” (estado normativo) esteve sempre presente um “estado discricionário” (âmbitos de atuação do complexo poder do nazi) do qual emergia a mais absoluta autoridade (…) “que estava governada exclusivamente por critérios de oportunidade e conveniência, para a conservação dos fins políticos e ideológicos da liderança nazi”.[21]

O “Estado Social”, como totalidade normativa com finalidades vinculadas aos direitos fundamentais, formaliza na norma  jurídica os conteúdos que alicerçam sua legitimidade, mas –mesmo neste Estado–  estes direitos competem com um sentido discricionário oculto, anterior, que permaneceu impregnado na ordem do Estado Moderno absolutista, transformado em Estado Moderno de Direito.

Impressiona a elaboração de Niklas Luhmann, (“A Nova Teoria dos Sistemas”) para quem “a diferenciação funcional na sociedade moderna, cada vez mais complexa, marca a principal diferença com relação às sociedades arcaicas, cuja característica era a segmentação, e das sociedades antigas estratificadas a partir de ordens superiores/inferiores ou camadas médias, baixas e altas “(…); mas a sociedade moderna é (todavia) narrada não mais por hierarquias (classes, camadas) (mas) por funções diferenciadas”.[22] Certamente, para Luhmann, é a partir destas “funções”, entendidas como núcleo do desvendamento da complexidade, que a cidadania vai ter maior (ou menor) potência para o exercício dos seus direitos.

Luhmann desenvolve –inteligente e meticulosamente– a tese que “paralelamente ao aumento da complexidade das sociedades é preciso desenvolver instrumentos que permitam reduzir esta complexidade”[23] até encontrar –acrescento– o núcleo da sociedade complexa: a função. Penso que Luhmann faz uma simplificação forçada (para a reduzir a “complexidade” à “função”), pois seu método não permite compreender a sociedade atual na sua dimensão econômica e jurídica real. Assim, a totalidade econômico-social e cultural fica fragmentada nas funções, como se elas não fossem destinadas e constituídas para determinados fins, segundo uma hierarquia já presente na estrutura das suas classes sociais.

Ora, nestes “fins” (como teleologia dos seus “sentidos”) os interesses pessoais, interesses de grupos, interesses de classe, regulam e limitam as “funções”, através de normas jurídicas que se vinculam formalmente entre si, mas também materialmente (porque respondem às necessidades econômicas concretas) integrantes da “complexidade” da formação social. A redução da complexidade social às “funções”, na verdade é uma simplificação metodológica para busca, do “complexo” que, se permite que o “simples” apareça, o faz somente como construção especulativa.

 

O Limite do Regime Liberal Democrático no Estado Dual

Os instrumentos formais que realizam a democracia representativa, não estão desgastados somente pelos controles que as forças do mercado imprimem aos processos de delegação eleitoral. Trata-se, também, do cansaço dos metais. O desgaste se revela na pouca agilidade dos Governos de quaisquer sendas ideológicas, em responder os graves desequilíbrios sociais, ambientais, as desigualdades materiais e ainda pela incapacidade dos Estados proverem as demandas individuais ou coletivas, que se amparam nos direitos fundamentais. A judicialização destes direitos, retirados da sua órbita política de raiz, é também consequência deste desgaste.

A transição dos “estados sociais” erigidos a partir de Weimar, para os “estados mínimos” (ou minimizados), tendo como ponto inicial a revolução tatcherista dos anos 70, fez com que “a proteção efetiva dos princípios e valores democráticos terminassem, cada vez mais frequentemente (nos tempos atuais), com a remissão quase exclusiva  às normas de direito e à lógica puramente formal dos serviços jurídicos”.[24] A fusão acabada do direito com a política instituída no Estado Social, portanto, (que não provisiona recursos e formas técnicas para a concretização dos direitos fundamentais) satura o Poder Judiciário, também já assediado pelo controle ideológico da cultura ultraliberal.

A lógica contratual socialdemocrata que ocupava o espaço público reservado ao contrato social começado em 1789, foi substituída –como consequência– pela dialética das demandas jurídicas, originarias da falta de prestações do Estado e pela midiatização espetacular da Justiça. Estas demandas, tornadas “espetáculo”, passaram a chancelar “a legitimidade da ordem social, excluída do âmbito da intervenção da ação política e subtraída dos dispositivos de representação, ancoradas quase em sua totalidade dentro do espaço jurídico.”[25]

Neste processo as “funções” apontadas por Luhmann –particularmente no âmbito do Estado– podem adquirir força persuasiva, na mecânica de legitimação do Estado, como forma de estabilizar a ordem no Estado de Direito. No tocante ao funcionamento do Poder Judiciário, Boaventura de Souza Santos no seu já clássico “Para uma Revolução Democrática da Justiça” [26] opõe à absorção conservadora dos conflitos, presente no Sistema de Justiça, às possibilidades positivas de decisões emancipatórias.

Após lembrar os movimentos camponeses e da agricultura familiar, que acedem ao Judiciário para assegurar determinadas conquistas, Boaventura celebra as possibilidades das classes populares (…), em face da própria “politização” do Judiciário, terem um acolhimento protetor de direitos emancipatórios, o que é verificável, mas –como ele mesmo entende–  não é o que ocorre ordinariamente.

A “judicialização” da política no nível em que se encontra hoje  –como se percebe– já estava inscrita na Constituição pelo colegiado constituinte, quando este consagrou o Estado Social. E ela veio para ficar: deixou de ser anomalia para se transformar em válvula reguladora (e de resistência) do Estado de Direito, vulnerabilizado pela desconstrução da representação política, promovida não gratuitamente. Seu sentido predominante nos momentos de crise tem sido sempre o de liberar –na ordem concreta– o exercício da força normativa do capital financeiro, cuja tendência dominante é eliminar a força normativa da constituição social, para frear os gastos sociais e tratar da solvência da dívida pública.

Os juristas do Estado Social, na área do Direito Constitucional e do Direito do Trabalho, percebem claramente esta dupla racionalidade do Estado de Direito, que vem por dentro do racionalismo ilustrado, ora como “Estado Dual” –naquela opção de Fraenkel– ora como disputa filosófica entre barbárie e civilização, na esfera do racionalismo clássico. O racionalismo regressivo (oculto) transparece quando se torna “racionalidade neoliberal” e –em relação aos direitos sociais– passa a desqualificar a “priorização do trabalho (celebrando) a fragilidade da proteção social como solução ao desemprego atual”[27]. É o momento em que o racionalismo  regressivo já adquiriu força política suficiente para esvaziar os direitos fundamentais, integrantes da Constituição Social, forçando  –aos que se avocam como dotados de direitos subjetivos de natureza pública– buscarem um derradeiro “socorro” no Poder Judiciário.

Embora sem apontar a importância que teve, a opção do Constituinte pelo Estado Social, (que estruturou o arcabouço jurídico que levou a política para os embates permanentes no STF) a constatação de Oscar Vilhena Vieira é correta: “Supremacia é o poder sem precedentes conferido ao Supremo Tribunal Federal para dar a última palavra sobre as decisões formadas pelos demais poderes em relação a um extenso elenco de temas políticos, econômicos, morais e sociais, inclusive quando essas decisões forem veiculadas por emendas à Constituição. A supremacia é uma consequência da desconfiança na política e da hiperconstitucionalização da vida brasileira. Sua arquitetura está baseada na concentração de três funções jurisdicionais nas mãos de uma única corte, assim como na criação de canais de acesso direto aos atores políticos para provocar a jurisdição do Tribunal.”[28]

Agrego outro aspecto ao estudo brilhante de Vilhena, porque entendo que uma compreensão mais adequada do fenômeno exige concebê-lo como uma “subsunção”, que o Supremo realiza da política, que já está contida no Preâmbulo Constitucional, que ilumina toda a política Social e se irradia para o conjunto da Constituição. Vilhena diz, a seguir, que o fenômeno é do avanço do direito “em detrimento da política”, ressecando assim o seu juízo sobre o tema, pois não vincula a teleologia da judicialização dada pela unidade hoje essencial entre a política e direito, que fundamentou o atual Estado Social, com o conteúdo normativo do Preâmbulo.

Mauro Menezes, em vários estudos publicados sobre o tema da crise do Direito Laboral flagra esta “unidade essencial”, entre direito e política, quando defende a “articulação sistêmica da matéria trabalhista no texto constitucional, (pois) não há como supor (…) que a enumeração de direitos dos trabalhadores tenha na Constituição uma função estanque, voltada tão somente declará-los e a preservá-los, isoladamente, de derrogações legais ou negociadas”[29]. A articulação sistêmica, fundida como Direito e Política no Preâmbulo da Carta de 88, percorre de maneira fluente todo o sistema Constitucional.

Assim como a Constituição de Weimar (1919) pode ter sido mitificada como o primeiro documento do Estado Social de Direito, nossa Constituição de 88 pode estar sendo supervalorizada como “fundadora” do Estado Social brasileiro, mas não resta dúvida que ela é uma Constituição socialdemocrata, mesmo que tardia, originária da conciliação negociada entre classes e grupos de interesse no âmbito da democratização pós regime militar, dotada de instituições político-sociais inovadoras.

A situação histórica em que ambas as constituições emergiram –a de Weimar e a de 88–  envolveu um compromisso de forças díspares, mas num quadro histórico diverso, com vistas a resolver aquelas questões “(promessas) que no declinante Império”[30] (na Alemanha), tinham caraterísticas diferentes das promessas originárias dos acordos na declinante ditadura (no Brasil).

As forças em confronto ou em concertação, carregavam representatividades políticas e promessas diversas que, em ambos os casos –depois da guerra ou da ditadura– “não tinham conseguido ser cumpridas”, como solução para o que deveria ser regulado, com vistas a instaurar uma ordem nova com um “sentido” democrático e social dominante .

A diferença entre ambos os processos é que a “costura” do Estado Social feita em Weimar, (configurada depois da IIª Guerra) era pressionada pela força da revolução comunista e da luta reformista socialdemocrata, travada na Alemanha, e a tessitura de 88 –no Brasil–  foi conscientemente acordada já na instalação do corpo deliberativo constituinte, como conciliação dos opostos, com vistas a um regime de liberdades, pela via da democracia liberal-representativa.

A forma desembaraçada com que o bolsonarismo transita entre estas duas possibilidades –luta de classes aberta em Weimar e conciliação vencedora em 88–  é estimulada por um novo fenômeno, que hoje é levado ao paroxismo: a jurisprudência dos Tribunais não se constrói mais –nas questões constitucionais de fundo–  com a tendência a aproximar a ordem normativa escrita da ordem concreta em vivência, mas ela se forma a partir da intensidade afirmativa da mídia tradicional, que diz a Constituição ao seu modo, segundo as suas preferências políticas. É a jurisprudência midiática que, quando conclui (como concluiu na disputa entre Haddad e Bolsonaro) que  ambos eram iguais em valor para a democracia, convenceram o eleitorado que nas eleições não estavam em disputa os  fundamentos da Constituição que dão base à vida democrática, nem o sentido da Carta de 88, mas era uma disputa de “políticos” iguais.

O que impulsionou à Constituição de 88 à constitucionalização social e democrática do País, foram os elementos de radicalização transacionados para uma saída pacífica da ditadura. Esta transação permitiu que seu corpo constituinte construísse uma couraça normativa de proteção, tanto da natureza do Estado Social com sua teleologia (afinada no Preâmbulo), como dos vínculos dos direitos sociais com direitos fundamentais –presentes os direitos dos trabalhadores– como direitos “não estanques”, como disse Mauro Menezes, conforme o Preâmbulo da própria norma Constitucional a do seu art. 7º [31].

Este processo político transformado em direito objetivo, promoveu uma “noção do direito subjetivo (que) corresponde a uma relação normativa (Rechtsverhältnis) entre duas ou mais pessoas, de tal modo que uma (a portadora do direito subjetivo) pode exigir da outra (a portadora da obrigação) a realização ou não a realização de uma conduta. Geralmente, a figura jurídica do direito subjetivo está atrelada a uma relação jurídica de direito privado. No entanto, pode-se também acolher um direito público subjetivo, no qual a relação jurídica se estabelece entre pessoa e Estado. Em termos analíticos, não existe diferença formal entre essas duas modalidades do direito subjetivo.”[32]

É estranho finalizar este texto com a conclusão (acima), de um penalista brilhante, cuja obra maior busca resgatar –nestes tempos mórbidos– a dignidade democrática do “direto ao devido processo penal”, cujos pressupostos mínimos estão instaurados, –como formulação doutrinária– lá no século de Beccaria (1738-1794).

A opção por este final –todavia– não é inexplicável. Ela é inspirada no momento “antisocial” que vivemos, no qual os Direitos do mundo do trabalho  –como Direitos Sociais– passam a ser apontados como uma espécie de direito social do inimigo: os trabalhadores como inimigos e mendigos da história, que afrontam a busca da “estabilidade financeira”, perseguida pela razão ultraliberal

Neste contexto é que o governo ilegítimo atual -instaurado numa ordem legitima- pode defender que os prestadores da força de trabalho saiam às ruas para vender sua energia vital e exponham-se à morte, pois – se não o fizerem– não merecem respeito político nem proteção social decente do Estado, para compartilharem a vida comum segundo o Direito, na luta contra a pandemia com mais chances de viver um futuro melhor.

 

[1] VEIGA, Eduardo de Lima. “Terrorismo e direito penal do inimigo: Contornos e legitimidade à Luz do direito Internacional”. Rio de janeiro, 2019, p.121.

[2] MENEZES, Mauro de Azevedo.  Justiça do Trabalho sob Ameaça de Morte. Roteiro para uma Reação Socialmente Afirmativa. In: Resistência II. Defesa e crítica da Justiça do Trabalho. São Paulo: Expressão Popular, 2018, p.118.

[3] PINTO, Eduardo Vera-Cruz. “O futuro da Justiça”. Lisboa: Ed. Nova Veja, 2015,p.8.

[4] GRAU, Antonio Baylos, Servicios esenciales, servicios mínimos y derecho de huelga”. 1ª Ed. Albacete: Editorial Bomarzo, 2018, p. 94.

[5] ROCHALeonel Severo. “Da epistemologia jurídica normativista ao construtivismo sistêmico.” Universidade de Coimbra. Editora: COIMBRA. p. 1042.

[6] TOURAINE, Alain.” A Crítica da Modernidade. Petrópolis”: Ed. Vozes, p. 30.

[7] Idem. p. 31.

[8] BOBBIO, Norberto, METTEUCCI, Nicola e PASQUINO, Gianfranco; tradução Carmem C. Varrialle… [et. AL]; coordenação da tradução João Ferreira. “Dicionário de Política”. Brasília: Editora UNB, 2007, vol 2, p 675, verbete “legitimidade” Lúcio Levi.

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