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A exploração das mulheres para a reprodução do capital: trabalho produtivo e reprodutivo

Júlia Borges da Costa*

Economista formada pela Universidade Federal Fluminense. Aluna do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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O trágico momento vivido globalmente com a pandemia do Coronavírus acentua a importância de destrinchar a relação contraditória entre lucro e vida sob o capitalismo. Enquanto o vírus em si já causou mais de 3 milhões de mortes, expondo tragicamente a necessidade de salvar e sustentar a vida, o capitalismo se orienta, segundo a lógica econômica, no sentido de salvar e sustentar o aumento dos lucros. No Brasil, a suposta “dicotomia” entre salvar vidas ou salvar a economia regeu as políticas de enfrentamento às crises sanitária e econômica. Ao fim, no entanto, acabamos com perdas irreparáveis de centenas de milhares de vidas e entranhados em uma recessão que certamente aumentará esses números.

Nesse cenário pandêmico, de isolamento social e home office, dois aspectos dessa dicotomia recaíram principalmente sobre as mulheres, intermediados pelo trabalho. Os trabalhos reprodutivo e produtivo, ora realizados entre o lar e a empresa, passaram a ser, para muitas mulheres, realizados apenas em casa, sem horário de início ou de término. Além disso, uma crise de tamanha magnitude na saúde trouxe para o centro do debate a importância do trabalho de cuidados “familiares”, realizado majoritariamente pelas mulheres.

Diante desse quadro, coloca-se a importância de investigar a exploração à qual as mulheres estão submetidas no sistema capitalista e o modo como seu trabalho é apropriado. Além disso, nos leva a pensar em que medida, historicamente, o movimento feminista foi capaz de colocar em evidência a questão do trabalho em suas reivindicações. Essa relação entre lucro e vida é o foco da chamada Teoria da Reprodução Social, perspectiva que inspira o olhar analítico construído e adotado neste texto.

Percebe-se a existência de um duplo caráter da exploração do trabalho feminino, não decorrente apenas da questão conjuntural, que traz o tema à tona, mas também como algo estruturante do modo de produção capitalista desde seus primórdios. A teórica feminista Silvia Federici, disse recentemente (2020)[1] que o trabalho doméstico é o mais importante no modo de produção capitalista, porque “produz os próprios trabalhadores, sem os quais não há trabalho”.

Com o objetivo de contribuir para o debate do trabalho reprodutivo, doméstico ou não-remunerado, a Teoria da Reprodução Social utiliza o materialismo histórico-dialético como método de análise. A teoria marxiana do valor-trabalho[2], por sua vez, nos serve para explicar as principais categorias utilizadas pelo feminismo marxista e, especialmente, pela Teoria da Reprodução Social, tais como força de trabalho, reprodução da força de trabalho e trabalhos produtivo e reprodutivo.

Partimos desse referencial teórico e da restauração do trabalho como fonte crucial de valor no capitalismo e, inclusive, como a expressão da vida social da humanidade, tão fundamental para esta análise da exploração das mulheres. Espera-se alcançar, com essa delimitação, uma reiteração de como a produção e reprodução da força de trabalho são fundantes para a produção de mercadorias; e como o trabalho doméstico, realidade material decorrente desta fundação, deve ser abordado. Ressaltando que se trata de um método materialista e histórico, priorizamos, com estas bases, um olhar estrutural sobre os atos da classe trabalhadora para atender às suas próprias necessidades.

É importante, portanto, demonstrar que historicamente essas tarefas, tão relevantes para a manutenção do modo de produção capitalista e para sua expansão, são realizadas majoritariamente por mulheres, que não são remuneradas por isso. Além disso, essa não é a única maneira pela qual o capitalismo se apropria do trabalho feminino: as mulheres estão presentes, também, na esfera produtiva. Portanto, a relação entre trabalho doméstico, trabalho assalariado e produção de mais-valor é íntima no conjunto do modo de produção capitalista.

Assim, chegamos à principal constatação das teóricas da reprodução social: a de que há, no capitalismo, uma integração entre as esferas da reprodução e da produção. Essa união as leva a conclamar todas as mulheres e todos os movimentos radicais a unirem-se em um feminismo principalmente anticapitalista, mas também antirracista, anti-imperialista, ecossocialista, internacionalista e sexualmente libertário.

      

O TRABALHO REPRODUTIVO DAS MULHERES NA PERSPECTIVA DA TEORIA DA REPRODUÇÃO SOCIAL

A economista Heidi Hartmann publicou, em 1979, “O casamento infeliz entre marxismo e feminismo”, ensaio onde fala sobre a teoria do sistema dual: o capitalismo e o patriarcado, dois sistemas distintos que se interseccionam eventualmente[3], para os quais marxismo e feminismo servem à análise, separadamente. Essa visão foi motivada pelo próprio abandono do feminismo feito pelos marxistas. Engels, em “A origem da família, da propriedade privada e do Estado”, coloca que a produção e a reprodução da vida se constituíram pela produção dos meios de existência e dos seres humanos em si, mas não volta a teorizar sobre o assunto depois desta obra.

Nancy Fraser, em seu livro “Justiça Interrompida” (1997), aventa diferenciar as injustiças econômicas “puras” e as sociais como, por exemplo, a opressão de classe e a opressão a LGBT’s[4], respectivamente. A primeira geraria demandas por redistribuição enquanto a segunda, demandas por reconhecimento. A distinção, porém, não desmerece sua correlação. Fraser ressalta ainda que tanto a opressão às mulheres quanto a racial têm origem na economia e determinam a divisão de trabalho, além de também possuírem um aspecto cultural intrínseco, exigindo, portanto, tanto justiça redistributiva quanto reconhecimento (ARRUZZA, 2019).

A cientista política Iris Young, por sua vez, faz críticas às duas teóricas supracitadas. Young traça um paralelo entre o patriarcado e a exploração e divisão de classe: se nenhuma dessas categorias surge com o capitalismo, ou seja, se são todos constituídos nos modos de produção escravista e feudal, por que tratar de forma diferente o patriarcado e a divisão de classe? Por serem anteriores ao modo de produção capitalista, essas estruturas devem ser analisadas à parte?

A autora defende que uma teoria de sistema dual permite ao marxismo seguir olhando apenas para as categorias puramente econômicas e deixando a análise do patriarcado para o feminismo. Para Young, as categorias da crítica cultural também devem ser atribuídas ao marxismo, já que as esferas cultural e econômica não se contrapõem. Portanto, Young sugere uma teoria de divisão do trabalho por gênero, já que a divisão de trabalho na família, assim como a hierarquia na esfera produtiva, são diferenciações por gênero do trabalho na sociedade.

A filósofa italiana Cinzia Arruzza defende que Nancy Fraser, ao elencar a separação das esferas cultural e econômica, tinha como objetivo superá-la e “elaborar um arcabouço teórico capaz de apontar como estes dois campos se entrelaçam” (ARRUZZA, 2019, pp 131). Para ela, Fraser já caminha em direção a uma teoria unitária da análise do trabalho feminino, que articula o patriarcado e o capitalismo; o feminismo e o marxismo; a crítica cultural e a crítica econômica.

Cinzia Arruzza, junto a Tithi Bhattacharya e Nancy Fraser, são responsáveis pelo manifesto “Feminismo para os 99%” (2018)[5], onde conclamam as mulheres e todos os movimentos radicais a unirem-se em um feminismo anticapitalista, antirracista, anti-imperialista, ecossocialista, internacionalista e sexualmente libertário. Com escritos anteriores seus e de outras pensadoras marxistas e culminando no Manifesto, avançam rumo a uma teoria unitária da reprodução social. A Teoria da Reprodução Social (TRS) é hoje objeto de estudo de marxistas em todo o mundo.

Em “O Capital”, Marx identifica a força de trabalho como uma mercadoria especial, que tem a propriedade de gerar valor. A apropriação do trabalho excedente, por sua vez, gera mais-valor. Diante disso, há uma lacuna deixada por Marx, a respeito de quem ou o que produz a força de trabalho.

Pesquisadoras marxistas posteriores como Lise Vogel, Martha Gimenez, Johanna Brenner e, mais recentemente, Susan Ferguson e David McNally se aproveitaram da transformadora, ainda que incompleta, percepção de Marx e a desenvolveram (…) Olhando “O Capital” de Marx de perto, esses pesquisadores argumentam que a chave do sistema, nossa força de trabalho, é, na verdade ela mesma produzida e reproduzida fora da produção capitalista, num local “baseado em laços de parentesco” chamado família. (Bhattacharya, 2019, pp102)[6]

A teoria da reprodução social debruça-se, portanto, sobre o processo integrado que envolve a produção da vida e a produção de bens e serviços. As pessoas que produzem os bens e serviços, ou seja, a força de trabalho, são produzidas fora do âmbito da economia formal, são produzidas em suas casas por suas famílias, principalmente pelas mulheres, o que gera baixo custo para o capital. Sobre isso, uma passagem de Vogel explicita o principal argumento da TRS:

A luta de classes pelas condições de produção representa a dinâmica central do desenvolvimento social nas sociedades caracterizadas pela exploração. Nessas sociedades, o trabalho excedente é apropriado por uma classe dominante e uma condição essencial para a produção é a (…) renovação de uma classe subordinada de produtores diretos empenhados no processo de trabalho. De modo geral, a reposição geracional fornece a maioria dos novos trabalhadores necessários para reabastecer essa classe e a capacidade das mulheres de gerar filhos desempenha um papel crucial na sociedade de classes (…) Nas classes proprietárias (…) a opressão às mulheres advém de seu papel na manutenção e herança da propriedade (…) Nas classes subordinadas (…) a opressão feminina (…) deriva do envolvimento das mulheres nos processos que renovam os produtores diretos, assim com seu envolvimento na produção. (VOGEL, 1983, p. 129. Grifos de BHATTACHARYA, 2019, p.103)

Segundo Tithi Bhattacharya, são três os principais processos interconectados da reprodução da força de trabalho. O mais imediato e evidente é a reprodução em si, ou seja, engravidar e parir. Outro processo é o das atividades relacionadas ao cuidado das crianças, dos idosos, das pessoas com deficiência e até mesmo dos desempregados, ou seja, a manutenção e regeneração dos futuros ou antigos trabalhadores. O terceiro diz respeito às atividades que permitem ao trabalhador retornar ao processo de produção, isto é, a regeneração através da alimentação, do conforto de um lar e a manutenção física e psicológica de um ser humano. Essas atividades, além de serem realizadas gratuitamente pelas pessoas para o sistema, recaem majoritariamente sobre as mulheres.

Dessa forma, a TRS constata que o capitalismo integra a esfera da reprodução e da produção, mesmo que em diferentes medidas, sendo um sistema unitário. Um exemplo da unidade entre as esferas é que uma crise econômica, com cortes neoliberais e queda nos salários reais pode afetar diretamente a vida familiar, com despejos e violência doméstica (BHATTACHARYA, 2019). Essa constatação é relevante na medida em que permite um entendimento de quem é trabalhador(a) e como lutar contra o sistema. Há substância histórica real que nos evidencia que conquistas das mulheres, seja no espaço da produção ou da reprodução, não permanecem, porque é da base desse sistema que as mulheres sejam duplamente exploradas.

O fato de as mulheres produzirem majoritariamente o suporte necessário ao capitalismo fora do local do trabalho remunerado não significa que elas não estejam nesse local e que as questões da produção não as digam respeito. Em 2019, as mulheres representaram 43,2% da população que efetivamente trabalha no Brasil, segundo dados da PNAD Contínua (IBGE)[7], isto é, são parte significativa da mão-de-obra do país. Muitas são, inclusive, as principais responsáveis pela renda de suas famílias. Portanto, as questões femininas dizem respeito ao que ocorre no âmbito da reprodução (violência sexual, cuidados, saúde reprodutiva etc.) e na esfera da produção, como organização sindical, luta por benefícios e aumentos salariais, condições de trabalho, entre outras.

Por estarem completamente imersas nas duas esferas, de produção e reprodução, as questões relacionadas ao local de trabalho afetam ainda mais as mulheres: se os filhos ficam doentes, as mulheres terão que faltar ao trabalho; se a sua jornada de trabalho aumenta ou precisam fazer horas extras para completar a renda, quem prepara o jantar, ajuda na lição, cuida dos idosos?

O momento apresenta duas tendências radicalmente contraditórias: de um lado, a crise responsável pela pauperização e deslocamento ao trabalho informal de milhões de mulheres no mundo; de outro, “o surgimento de um grupo de mulheres da classe dominante incrivelmente próspero e multiétnico” (BHATTACHARYA, 2019). O feminismo liberal e corporativo, ainda que diga respeito à inserção das mulheres no momento da produção e ao seu trabalho remunerado, por estar separado da questão de classe, não defende o interesse de todas as mulheres. Para as teóricas da Reprodução Social, apenas políticas que cortam os lucros do capitalismo como modo de produção promovem de fato os interesses daquelas que necessitam.

Essas políticas podem não estar relacionadas diretamente às demandas de gênero. A defesa de um sistema público de saúde, por exemplo, pode reduzir drasticamente a quantidade de trabalho não-remunerado realizado por uma mulher no cuidado dos doentes, idosos, pessoas com deficiência e mesmo diminuir sua dependência em relação ao homem. Porém, do outro lado deste “campo de batalha” estão as multibilionárias empresas da indústria médica e farmacêutica, muitas lideradas por mulheres executivas, “magnatas” do feminismo corporativo.

A mensagem que vem dessa geração de CEOs feministas é de que basta trabalhar duro para alcançar os postos que elas alcançaram. E, de fato, a independência financeira das mulheres é um avanço, um direito e algo a ser defendido – por isso, as primeiras marxistas, como Krupskaya, enfatizaram a importância da participação das mulheres no processo produtivo. Mas não há espaço no topo para todas as mulheres e esse é o intuito do feminismo corporativo que serve ao modelo neoliberal: evitar mudanças institucionais profundas que transformariam a relação das mulheres com o trabalho (NUSSBAUM, 2007)[8]. Então, apesar das pelejas de gênero não serem exatamente as mesmas que as de classe, a luta de classes configura a dinâmica do desenvolvimento social. O capitalismo se reorganiza de forma a prevenir mudanças significativas nas relações de gênero “porque mudanças reais vão, em última instância, afetar os lucros” (BHATTACHARYA, 2019).

Na esfera da produção, a melhor forma de lutar pelos diretos femininos é por meio das organizações sindicais e trabalhistas. “Mas a classe trabalhadora não trabalha só no seu local de trabalho” (BHATTACHARYA, 2019). Fora da esfera da produção é onde substanciais funções da reprodução da classe trabalhadora acontecem. Ainda segundo Tithi Bhattacharya (2019), o capitalismo assimila bem esse processo e, por isso, ataca a reprodução social “para ganhar a batalha no âmbito da produção”.

O desmantelamento dos serviços públicos, sempre justificado por uma suposta “responsabilidade fiscal”, objetiva, na realidade, vulnerabilizar a classe trabalhadora, que fica menos capaz de resistir aos ataques no local de trabalho. É necessário um entendimento dialético do capitalismo e da sua maneira contraditória de se reproduzir a si mesmo para compreender esse processo na totalidade. Por isso, as teóricas da Reprodução Social evocam o marxismo revolucionário como o vínculo entre a esfera da produção (onde há luta por melhores condições e salários) e a esfera da reprodução (onde a luta será contra o fechamento de escolas, os ataques à seguridade social, a destruição do meio-ambiente, a violência doméstica etc.).

Tanto a revolução francesa quanto a revolução russa, duas das mais importantes do mundo moderno, iniciaram-se na forma de revoltas por condições básicas de sobrevivência, lideradas por mulheres. Isto é, a classe trabalhadora pode lutar na esfera da reprodução – mas, só pode vencer na esfera da produção. Portanto, desenvolver esse vínculo é, ao mesmo tempo, visitar a análise de uma perspectiva de sistema único pela teoria marxista e atuar “como uma tribuna das oprimidas e oprimidos, particularmente quando a luta não se generalizou até o local de trabalho” (BHATTACHARYA, 2019).

Ao compreender o capitalismo como um sistema integrado, onde a reprodução social sustenta a produção, a TRS vislumbra a necessidade de unificar as lutas políticas em ambas as áreas. Na atual crise neoliberal, o gênero é também uma arma da luta de classes pelo capital. O sistema, quando incapaz de resolver a crise facilmente na esfera produtiva, estende os ataques à vida dos trabalhadores em seu próprio lar. A luta de classes, nesse caso, não é apenas a luta da economia formal, mas também está ligada àquelas que estão fora dela: as lutas por direitos reprodutivos, por cotas raciais, por educação pública, por lazer e por direito à saúde, por exemplo.

Todos os meios da vida humana, da produção e da reprodução social são perpassados pelo trabalho, geridos pelo capitalismo e utilizados constantemente por este com o objetivo de aumentar lucros e expandir o capital. O trabalho feminino, seja doméstico ou remunerado, não-pago ou pago, reprodutivo ou produtivo, é explorado intensamente e, mais do que isso, é insubstituível para este sistema. Historicamente, a organização das mulheres estorva a continuidade desembaraçada dessa expansão. Para que a luta feminista não seja, assim como o trabalho reprodutivo, apropriada e utilizada à serviço do capital, a conjunção desta com a luta de classes é imprescindível.

 

O TRABALHO REPRODUTIVO NA LUTA DE CLASSES

Quando falamos sobre a forma como, no modo de produção capitalista, o trabalho produtivo e reprodutivo realizado pelas mulheres é apropriado, diversos elementos precisam ser levados em consideração. Há que se considerar, dialeticamente, os componentes objetivos e subjetivos das condições às quais foram submetidas as mulheres desde a consolidação desse modo de produção.

No capitalismo, onde, para Marx, o trabalho é a substância do valor, a capacidade de trabalho, ou seja, a força de trabalho passa a ser vendida, em larga escala, como mercadoria. Ao se configurar como uma mercadoria em si, que será vendida pelo trabalhador e dispendida no processo de produção de outras mercadorias, a força de trabalho necessita ser produzida e restaurada. Para que isto ocorra, requisitos de subsistência são garantidos fora do local de trabalho, no âmbito doméstico e social.

A maneira pela qual os movimentos feministas tratam dessa estreita relação entre as formas de trabalho realizadas pelas mulheres evidencia as conquistas que esse movimento alcançou ao longo de décadas de lutas. O direito ao voto feminino, ao divórcio, à propriedade privada, à representação política, o acesso à educação, dentre outros direitos básicos, são exemplos de pautas reivindicatórias advindas da organização de certos segmentos do movimento de mulheres, incluindo agendas do feminismo liberal, que ganharam corpo ao longo do século XX.

O feminismo emergente com as revoluções burguesas do século XIX foi, a rigor, transformador; porém, teve dificuldade de incluir em suas pautas as reivindicações das mulheres que, além de sofrerem as dificuldades impostas pelo patriarcado, eram atingidas ainda pela fome, pela miséria, pelo desemprego e outras questões econômicas estruturais do capitalismo, que as alijava da categoria cristalina de trabalhador, no sentido estrito de sujeito que vende sua força de trabalho, que é remunerado pecuniariamente pelo seu trabalho.

Mais recentemente, com as mudanças no modo de produção capitalista, o feminismo liberal/corporativista tornou-se um instrumento da ideologia neoliberal, por não abraçar os aspectos de classe e raça e individualizar a ascensão das mulheres na sociedade. Esta corrente não demonstra preocupação com a reprodução da força de trabalho, realizada no âmbito doméstico por meio do empenho e energia vital de mulheres invisibilizadas. Nem tampouco se constrange diante da usurpação feita por mulheres profissionais da dedicação às tarefas domésticas das mulheres pobres, mal-remuneradas ou escravizadas. Interessa-lhes resguardar sua ascensão de qualquer atraso na sua escalada ao topo das mulheres bem-sucedidas. O feminismo liberal respalda a precarização da vida e, por consequência, as políticas neoliberais.

Os outros feminismos não marxistas, sejam eles correntes teóricas ou movimentos sociais, são também responsáveis por ações entendidas como de emancipação feminina. Entendem como conquistas o afrouxamento das amarras do trabalho doméstico, o exercício de direitos políticos, a ascensão feminina no mercado de trabalho. Entendem que transformações de representatividade significaram materialmente melhorias na qualidade de vida de muitas mulheres. Isso não os exime da possibilidade de serem, como foram em diversos momentos da história, apropriados e instrumentalizados pela ideologia da classe dominante.

Portanto, a história do movimento feminista nos mostra que quando não coloca em seu horizonte a libertação de todos os seres humanos do sistema capitalista, o feminismo pode incorrer nas armadilhas e tropeçar nos buracos colocados pelo capital, crise após crise, quando o sistema precisa se reestruturar. Apesar da estrutura patriarcal ser anterior ao capitalismo, este apropria-se daquela para oprimir as mulheres, principalmente através do trabalho não categorizado como tal, ou seja, o trabalho doméstico ou não-remunerado.

Os momentos de efervescência social, particularmente férteis para o surgimento de ideias radicais e emancipatórias, foram de suma importância não apenas para o feminismo burguês, mas para o próprio feminismo operário, que surgia concomitante. Porém, as mulheres operárias, além de terem a burguesia como algoz, encontravam também resistência interna entre os operários e teóricos de esquerda, desconfiados daquelas ideias que viam eclodir em ambas as classes, de formas diferentes.

Ainda assim, as feministas marxistas tiveram papel importantíssimo nas revoluções, quando seus apelos por pão e paz se desenvolveram em revoltas basilares para os processos revolucionários. Fica evidente, então, a possibilidade de luta da classe trabalhadora na esfera da reprodução. Porém, segundo as teóricas da Reprodução Social, a vitória de classe só ocorre na esfera da produção. Esse vínculo faz do capitalismo um sistema único, que deve ser visitado pela teoria marxista como tal.

A reprodução social, quando compreendemos o capitalismo como um sistema integrado, sustenta a produção. Por conseguinte, a TRS reforça a necessidade de unificar as lutas que ocorreram paralelamente nessas duas áreas durante décadas. A atual crise econômica descortinou a esfera da reprodução como um campo de batalha da luta de classes, quando os ataques à vida dos trabalhadores e trabalhadoras não cessam na esfera produtiva. Normalmente fantasiados de responsabilidade fiscal, os ajustes econômicos para “sair” da crise, que cortam orçamento de saúde pública, educação, habitação, saneamento, cultura e ciência, por exemplo, afetam diretamente a capacidade de trabalho dos seres humanos. Quanto menos do que é fundamental para a reprodução social é realizado pelo Estado, mais recai no colo da trabalhadora reprodutiva.

A luta de classes não será, então, apenas a luta da economia formal, senão a própria luta por uma gama de direitos que, na sua aparência, diz respeito apenas à esfera reprodutiva. Todas essas frentes onde os interesses das classes colidem são perpassadas pelo trabalho. Os meios da vida humana, da produção e da reprodução são geridos pelo capitalismo, a fim de aumentar lucros e expandir-se indefinidamente.

Em uma atmosfera de intensa exploração do trabalho humano, o sistema oprime ainda mais as mulheres, através da apropriação do seu trabalho reprodutivo, que é insubstituível para o capitalismo. Consequentemente, a luta feminista deve caminhar lado a lado com a luta de classes, como respostas a um mesmo problema e perseguindo um mesmo objetivo: a libertação da mulher e da classe trabalhadora.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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___________; GUTTING, Gary. Em <https://opinionator.blogs.nytimes.com/2015/10/15/a-feminism-where-leaning-in-means-leaning-on-others/?_r=1>, acesso em 02/10/2020.

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SCHNEIDER, Graziela. A revolução das mulheres. São Paulo: Boitempo Editorial, 2017.

VOGEL, L. Marxism and The Oppression of Women. Boston: Rutger University Press, 1983.

[1] Entrevista disponível em

<https://www.youtube.com/playlist?list=PLHiE8QPap5vTWhp68auvWdnYRrREtCg7->, acesso em 25/09/2020.

[2] Quando falamos da teoria marxiana do valor-trabalho, referimo-nos à análise, realizada por Karl Marx em “O Capital”, do trabalho como a substância do valor.

[3] Sobre a teoria do sistema dual de Hartmann, Cinzia Arruzza desenvolve em detalhes no capítulo 4 de “Ligações perigosas: casamentos e divórcios entre marxismo e feminismo.”

[4] Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais.

[5] ARRUZZA, C. BHATTACHARYA, T. FRASER, N. Feminismo para os 99%: Um Manifesto. São Paulo: Boitempo, 2018.

[6] BHATTACHARYA, Tithi. O que é a teoria da reprodução social? Revista Outubro, n.32, 1º semestre de 2019.

[7] Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua. Mais sobre a pesquisa e seus resultados em  <https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/9171-pesquisa-nacional-por-amostra-de-domicilios-continua-mensal.html?=&t=o-que-e>, acesso em 01/05/2021.

[8] Nussbaum, K. Working women’s insurgent consciousness. In: Cobble, Dorothy Sue (org.). The Sex of Class: Women Transforming American Labor. Ithaca: Cornell University Press, 2007.

 

*Júlia Borges da Costa é Economista formada pela Universidade Federal Fluminense. Aluna do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Analista de Orçamento & Finanças Públicas na Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Colaboradora do Fórum Popular do Orçamento

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