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A carta não chegou a tempo para 300 mil vidas

Maria Regina Paiva Duarte

Presidenta do Instituto Justiça Fiscal, auditora fiscal da Receita Federal aposentada, integrante do coletivo Auditores-Fiscais pela Democracia

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Em carta aberta à sociedade, ao governo (e ao mercado), um grupo de mais de 1.500 pessoas, entre empresários, economistas, acadêmicos, ex-ministros, ex-presidentes do Banco Central e banqueiros, exigem respeito. Intitulado “O país exige respeito; a vida necessita da ciência e do bom governo – carta aberta à sociedade referente a medidas de combate à pandemia”, o documento faz uma série de considerações sobre a situação sanitária e econômica no Brasil, e aponta medidas urgentes e necessárias para combater a pandemia. “Não é razoável esperar a recuperação da atividade econômica em uma epidemia descontrolada”, diz acertadamente o manifesto emitido no fim de semana.

A carta apresenta dados e considerações muito boas. Mas chegou atrasada e incompleta. Levou tempo e quase 300 mil mortes para essa reação. Falta de medicamentos e de leitos em UTI, de coordenação nacional, de vacinas e de um plano eficaz de vacinação. Tudo isso deve ter colaborado para que esse manifesto pudesse circular. Impossível ficar inerte ao negacionismo e ao descalabro deste governo.

Mas observemos: antes mesmo da pandemia, o Teto de Gastos, defendido por muitos signatários da carta, já fazia seus estragos. Retirar recursos da saúde e educação e limitar seus gastos, prejudica a população que mais necessita dos recursos e do atendimento do Estado. Não houve carta na ocasião! Nem durante os efeitos desta limitação de recursos acentuaram, contabilizando desemprego e pobreza.

Quando passaram as reformas previdenciária e trabalhista, houve um silêncio grande desses mesmos remetentes. Argumentavam que as reformas eram necessárias para passar confiança aos mercados, retomar empregos, dinamizar o país. Ou seja, medidas de corte de gastos e austeridade eram apoiadas, mesmo com a crise econômica e a recessão instalada.

A carta faz menção à redução de 4,1% no Produto Interno Bruto (PIB) em 2020, ao desemprego (subestimado) de 14% e uma queda na força de trabalho de 5,5 milhões de pessoas no ano passado. “Esta recessão, assim como suas consequências sociais nefastas, foi causada pela pandemia e não será superada enquanto a pandemia não for controlada por uma atuação competente do governo federal”, diz mais um trecho.

Novamente curioso. A recessão é de agora? Não! A recessão, de fato, vem de antes. Instalada a crise, ao invés de promover medidas anticíclicas, investir na economia produtiva, fazer uma política fiscal distributiva e gastar com a população, os dois últimos governos foram pródigos em medidas de austeridade, aprofundando a recessão.

Se antes já estava complicado, mais ainda deveria ter sido investido no combate à pandemia e na recuperação econômica. Países ao redor do mundo estão gastando, comprando vacinas, insumos, equipamentos hospitalares. E não é pouco o que estão gastando em pacotes de auxílio, inclusive na aquisição das vacinas.  Nos EUA, o valor gasto é o maior da história. O endividamento público tem níveis importantes no Japão (269,62%), Itália (162,30%), Espanha (121,74%), França (116,35%), Reino Unido (108,08%) e Canadá (109,72%).

Até o final de 2020, o Brasil havia gasto R$ 508,3 bilhões com a pandemia, significando 11,2% do PIB, enquanto o Japão, por exemplo, chegou a 63% do seu PIB. Os países referidos na carta como avançados na vacinação, Turquia e Chile, estão entre os que mais gastaram. E não são países do centro, mas periféricos.

A carta não faz estas referências aos gastos com a pandemia feitos por estes países. Cita-os apenas como mais avançados na vacinação, o que é correto, mas incompleto.

O Brasil gastou R$ 528 bilhões no enfrentamento à pandemia e na mitigação da deteriorada situação econômica, conforme o texto da carta. É insuficiente e as evidências são muitas, o que nos leva a pensar que no caso brasileiro, não se trata “apenas” de uma gestão desastrosa no controle da pandemia e de seus efeitos sociais e econômicos, mas também de falta de investimento, de gasto público.

Não há dúvidas que a volta do crescimento econômico e da recuperação do país não ocorrerá sem a vacinação em massa.  É falso o dilema entre salvar vidas e recuperar economia, como bem diz a manifesto. Mas o governo afirma não estar convencido disso ainda!

No final do ano passado, fez o último pagamento do auxílio emergencial no valor de R$ 600,00 e agora propôs o valor de R$ 250,00, muito abaixo do que poderia e deveria pagar. Além de possibilitar sobrevivência a muitas pessoas e ajudar na diminuição do contágio da doença, permitindo que as pessoas ficassem em casa, foi importante para manter a atividade econômica.

Os dados mostram que esse dinheiro, na mão de quem mais precisa, será gasto, consumido, o que faz girar a roda da economia. É preciso ter para quem vender, ou melhor, é preciso ter quem possa comprar produtos e serviços. Sem renda, isso não é possível.

Ao mesmo tempo em que cobram do governo atuação mais vigorosa, racional e baseada em dados, os banqueiros, economistas, e pessoas influentes no meio político e econômico, defendem aceleração no ritmo da vacinação, incentivo ao uso de máscaras, implementação de medidas de distanciamento social, criação de mecanismo de coordenação de combate à pandemia, todas medidas necessárias e importantes.

Segundo o documento, “é fundamental que a partir de agora as políticas públicas sejam alicerçadas em dados, informações confiáveis e evidência científica. Não há mais tempo para perder em debates estéreis e notícias falsas. Precisamos nos guiar pelas experiências bem-sucedidas, por ações de baixo custo e alto impacto, por iniciativas que possam reverter de fato a situação sem precedentes que o país vive”’.

É perfeitamente razoável e correto. Mas, com relação à abertura das escolas, embora o fechamento prolongado seja um problema sério e que provavelmente deixará marcas negativas nas crianças, adolescentes e nas famílias, é difícil encontrar concordância. A menos que estejam falando de escolas privadas, com estrutura e, ainda assim, duvidoso. Como enviar crianças para escolas que sequer têm produtos básicos de limpeza e estrutura para fazer a devida higienização? Mensagens em celulares para agilizar comunicação? Essas medidas não se encontram com a realidade da grande maioria das escolas brasileiras. Melhorar essa situação também não estava nos planos, pois o governo vetou o projeto que dava acesso à internet às escolas e aos alunos da rede básica de educação.

Claro que as escolas deveriam ter preferência na abertura. Antes escolas abertas do que bares. Ou melhor mesmo teria sido decretar um lockdown, como muitos países fizeram. Fechar no momento certo, abrir também no momento certo. Mas, e aí não há como discordar da carta, o governo federal não mostrou capacidade de coordenação e foi péssimo condutor das ações no combate à pandemia: “O desdenho à ciência, o apelo a tratamentos sem evidência de eficácia, o estímulo à aglomeração, e o flerte com o movimento antivacina, caracterizou a liderança política maior no país”.

E ao final, a carta nos diz que precisamos de uma agenda responsável, de seriedade com a coisa pública e que o Brasil exige respeito. Muito bom, do ponto de vista comportamental. É isso mesmo que queremos, respeito, seriedade. É um excelente primeiro passo, já tardio nessa altura da pandemia.

Mas ao procurar na carta algo além da responsabilidade social, da mudança de conduta, da coordenação de esforços, não esse encontra a defesa do fim do teto de gastos, nem a tributação dos super-ricos. *Não há qualquer proposta de mudança estrutural da desigualdade histórica, na qual poderiam e deveriam dar sua participação se houvesse preocupação com a injustiça fiscal que faz do país campeão em concentração de renda*.

Os nobres signatários, entretanto, defendem a criação de um Programa de Responsabilidade Social, aos moldes do patrocinado pelo Centro de Debate de Políticas Públicas, no Congresso Nacional desde o ano passado.

Segundo os autores, a proposta é unir programas considerados não efetivos na redução da pobreza e desigualdade ao Bolsa Família. Com isso, manter atendidos os beneficiários e incluir outros, ampliando e atendendo mais pessoas vulneráveis. Interessante, e pode servir como alento em períodos como esse. Afinal, a fome tem pressa.

Porém, não altera essencialmente o que seria mais efetivo do ponto de vista econômico e social.  Tão somente redesenha a estrutura de benefícios, sem orçamento adicional. É similar às políticas focalizadas de séculos atrás, que visavam colocar um verniz de civilidade e mantinham a situação igual, não resolvendo a questão estrutural da pobreza e a desigualdade. E é outra vez curioso, embora seja defensável tendo em vista a premência em ajudar os mais necessitados.

Curioso porque dá a impressão que bastaria deslocar certos gastos não efetivos ou inúteis que se encontraria solução para os problemas, inclusive dinheiro para aquisição de vacinas, tão urgentes e necessárias.

Precisamos de mais recursos, ampliar orçamento e não cortar. Sabemos que a tributação sobre os mais ricos é efetiva e reduz desigualdade e concentração de renda. Estudo recente da Universidade de São Paulo (Made-USP) – “Como a redistribuição de renda pode ajudar na recuperação da economia? Os efeitos multiplicadores da tributação dos mais ricos para transferência aos mais pobres”-, mostrou que a cada R$ 100,00 transferidos do 1% mais rico para os 30% mais pobres é gerada uma expansão de R$ 106,70 na economia. Tributar os super-ricos não é questão de moda, ou nova onda. É fundamental e estrutural no combate à desigualdade.

A campanha “Tributar os Super-Ricos”, integrada por mais de 70 entidades, visa a implementar um conjunto de medidas para enfrentar a crise econômica, agravada pela pandemia do Covid-19, com o aumento dos tributos sobre as altas rendas, grandes patrimônios e redução para as baixas rendas e pequenas empresas. São oito propostas de leis que podem gerar arrecadação anual estimada de aproximadamente R$ 300 bilhões ao ano, onerando apenas os 0,3% mais ricos do país. Estes projetos de lei foram apresentados ao Congresso Nacional em agosto de 2020, e na fase atual da Campanha, as entidades pressionam por sua tramitação no Congresso Nacional.

Esta é uma fonte de onde podem vir os recursos de que precisamos para investir e o Estado cumprir seu papel. O Estado deve gastar, em títulos ou emissão de moeda, mas precisa também de outras medidas, pois somente essas são insuficientes. Não dá para propor, atualmente, soluções que sejam mais do mesmo, ficar realocando recursos, unindo benefícios, reunindo tributos como se nos faltasse apenas racionalidade.

Um exemplo claro disso é a própria vacina. O Brasil produz vacinas contra a Covid-19, tanto no Butantã como na Fiocruz, porque há anos essas instituições públicas recebem recursos públicos para atuar, modernizar, investir na sua produção de fármacos e vacinas.

Não seria possível produzir as vacinas contra o coronavírus se antes já não houvesse produção de vacinas contra a gripe e outras doenças. Ainda que os insumos sejam majoritariamente importados, existe produção nacional e isso está garantindo vacinas contra a Covid-19, insuficientes para o momento, mas há vacinas. O que precisamos, além de pedir por mais agilidade na aquisição e na aplicação da vacina, é garantir que ela seja de acesso universal e gratuito, um bem público.

Em um país que há muitos anos tratava a vacina como indispensável e não havia questionamento significativo sobre tomar ou não vacina, o que estamos vivenciando hoje, com a pandemia do Covid-19, não parece ser definitivo ou mesmo único. Outras epidemias e pandemias deverão aparecer e as instituições nacionais precisam estar preparadas para enfrentá-las. Investir na saúde é fundamental, assim como nas pessoas, nos setores produtivos, nos pequenos negócios. Enfim, investir em projeto de país, soberano e menos desigual.

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