Introdução
Falar em uma economia justa é pensar em um sistema capaz de reduzir as desigualdades. Relações econômicas que se organizem visando o bem viver da sociedade e sua continuidade. Uma economia que se desenvolva para o bem estar de todos.
Falar em questões fundiárias no Brasil é falar em desigualdade e violência, que resultam da forma injusta como o a economia se organizou no país, impedindo o acesso à terra àqueles que dependem dela para sobreviver.
O acesso à terra e a desconcentração fundiária são reconhecidos pela Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) como condição importante para erradicar a pobreza. Condição fundamental para que direitos humanos como alimentação e moradia sejam obtidos.
No entanto no Brasil a concentração fundiária se expande mesmo depois de implementados importantes avanços na criação de novos projetos de assentamentos de reforma agrária, criação de unidades de conservação, demarcação de terras indígenas e titulação de territórios quilombolas. O Censo agropecuário de 2017 aponta que quase a metade (47%) de toda área agrícola do país é ocupada por apenas 1% das propriedades brasileiras. Enquanto a concentração fundiária brasileira se agrava crescem juntos a violência no campo e a desigualdade social.[1]
A luta pela reforma agrária no Brasil desembocou na criação do Estatuto da Terra e na instituição do Imposto sobre Propriedade Territorial Rural (ITR) visando ter um instrumento fiscal capaz de desestimular o uso inadequado do solo e assim garantir que a terra cumprisse sua função social.
Este artigo pretende mostrar que a justa tributação no campo pode ser um indutor da democratização do acesso à terra no campo. Dito de outra forma: o ITR tem potencial para reduzir a concentração fundiária, apoiar a preservação ambiental e ser um impulsionador do desenvolvimento social e econômico visando solidariamente o bem comum.
Para tratar do tema desigualdade x tributação da terra faremos um entrelaçamento entre política e economia nos primórdios de nossa constituição enquanto sociedade civil.
- Liberais na imaginação e escravocratas na realidade
Para entender porque chegamos ao patamar de desigualdade brasileira é preciso entrelaçar política e economia, passando por clássico da ciência política como Rosseau e nossa história escravocrata.
Quem fez essa inusitada conexão foi Caio Prado Jr em sua obra Evolução Política do Brasil [2]. Nossa classe dominante, a despeito de ser escravocrata, admirava o liberalismo e se esforçou ao máximo para se inserir nas ideias liberais europeias, sobretudo na ideia de Rosseau do Contrato Social.
Acreditava o filósofo suiço que seria preciso instituir a justiça e a paz para submeter igualmente o poderoso e o fraco, buscando a concórdia eterna entre as pessoas que viviam em sociedade. Imaginem essa ideia sendo disseminada muito antes da revolução francesa. Mesmo com ideias tão revolucionarias, o autor era admirado pela classe dominante brasileira.
Rousseau dizia que era possível estabelecer a soberania da sociedade por meio da vontade geral, pelo povo. Inevitável a pergunta: onde entraria a vontade do escravo? Caio Prado responde: no projeto de lei da Constituição de 1823, a qual, em seu art. 265 constava: “A Constituição reconhece os contratos entre os senhores e escravos, o governo vigiará sobre sua manutenção”.
Parece uma anedota, mas não é, trata-se de nossa história. Pouco importava que liberdade e mão de obra escrava fossem diametralmente conflitantes, o que importava era estar em consonância com os ideais em voga.
Continuemos com Rosseau e sua reflexão sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Rousseau alertava que, sem um mínimo de igualdade social, a liberdade civil seria impossível. Para Rousseau, o homem nasce naturalmente bom. Os homens, quando viviam no Estado de natureza, eram felizes, livres e iguais em direitos porque a propriedade não existia. A desigualdade surgiu quando:
“o primeiro que cercou um terreno, advertindo: ‘Este é meu’, e encontrando gente muito simples que acreditou, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Que crimes, guerras, assassinatos, misérias e horrores teria poupado ao gênero humano aquele que (…) tivesse gritado a seus semelhantes: ‘Não escutem este impostor; vocês estarão perdidos se esquecerem que os frutos são de todos, que a terra não é de ninguém’” (Rousseau, 1991 [1755], p. 106[3]).
Bela reflexão: a terra não é de ninguém. Mas, entre a filosofia e o caminhar da humanidade, há uma enorme separação.
Feita essa digressão, vamos entender como se constituiu no Brasil a regulamentação da terra. A lei nº 601 de 18 de setembro de 1850, conhecida como A lei de terras, tinha como finalidade o legislar sobre as formas de aquisição de terras devolutas no Brasil. Seus efeitos são vistos até hoje, já que foi essa lei que possibilitou a concentração de terras.
O ano de criação da lei de terras coincide com a da lei Eusébio de Queirós, que proibiu o tráfico negreiro. Esta última possibilitou o uso da mão de obra assalariada dos imigrantes italianos, alemães, espanhóis.
Ocorre que, se por um lado a lei possibilitava a aquisição de terras para todos os cidadãos, inclusive escravos alforriados e imigrantes, por outro lado havia a miséria dos que não podiam comprar.
Os únicos que conseguiram adquirir as terras devolutas eram os membros da classe dominante, enquanto os cidadãos assalariados conseguiriam, no máximo, tornar-se um pequeno ou médio proprietário.
Segundo o Professor de História pela Universidade Federal de São Carlos, Vitor Amorim de Ângelo, grande parte das sesmarias e das posses não foi legalizada; as terras do Império continuaram a ser ocupadas de forma ilegal e sistemática; boa parte das propriedades nunca foi medida nem demarcada; as multas, quando aplicadas, poucas vezes foram pagas (Angelo, 2007)[4].
Portanto, a Lei da Terra é parte seminal de nossa história de exclusão social. Itamar Vieira Jr. em uma passagem de seu livro Torto Arado[5] mostra bem o que isso representou na vida dos brasileiros que dependiam da terra para sobreviver:
“… chegou o branco colonizador e recebeu dádiva do reino. Chegou outro homem branco com nome e sobrenome e foram dividindo tudo entre eles. Os índios foram sendo afastados, mortos ou obrigados a trabalhar para esses donos da terra. Depois chegaram os negros, de muito longe, para trabalhar no lugar dos indíos. Nosso povo, que não sabia o caminho de volta para sua terra, foi ficando. Quando as fazendas foram deixando de produzir porque os donos já estavam velhos e os filhos já não se interessavam pelo trabalho da roça, porque ganhavam muito mais dinheiro como doutores na cidade, e nos procuravam cercando terras pelas extremidades da fazenda, dizíamos que éramos índios. Porque sabíamos que, mesmo que não fosse respeitada, havia lei que proibia tirar terra de índio. E também porque eles se misturam conosco, indo e voltando de seu canto, perdidos de suas aldeias”. (p.176/177)
2 – O direito a terra como um direito humano
O papel de lutar pelo acesso à terra no Brasil coube historicamente aos movimentos sociais camponeses, aos povos indígenas e às comunidades tradicionais que durante a década de 70 contou com o importante apoio da Igreja Católica progressista, por meio da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
A conexão entre a luta pela terra e os direitos humanos foi construída no Brasil a partir da reação violenta do Estado autoritário contra os camponeses no Brasil quando os conflitos rurais passaram a ser identificados como atentados aos direitos humanos. Ao longo dos anos 80 a violência no campo, denunciada sobretudo pela CPT e pelo Cimi, atraiu a atenção de grupos transnacionais, tais como a Anistia Internacional e a Human Rights Watch.
A proposta de reforma agrária desenvolvida pela Igreja católica tem como base a ideia de que a “terra é dom de Deus” e defende a posse da terra para os que nela trabalham. A partir desse posicionamento da Igreja católica, a posse da terra passou a ser defendida pelos movimentos sociais como um direito humano.
Com o passar dos anos a luta pela terra se consolida como um direito à medida que crescem os apoios internacionais e ganha mais relevância quando se aliam aos grupos de direitos humanos os grupos ambientalistas.[6]
Segundo apontam Canuto e Gorsdorf no relatório do Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais (Ceris), de 2007, sobre a situação dos direitos humanos no Brasil, a terra é um direito humano assim como outros direitos e princípios garantidos em convenções ou tratados internacionais e ou Constituições Nacionais, como direito à vida e à dignidade da pessoa humana, ao território, à alimentação e à moradia.[7] Para os autores existe uma forte relação entre a posse da terra e o gozo de outros direitos humanos.
3 – A justa tributação da terra como apoio ao direito a terra
Em 1964, diante da forte pressão dos movimentos camponeses por uma reforma agrária ampla e radical e pressão internacional da FAO, o governo militar promulgou o Estatuto da Terra como forma de frear as reivindicações populares e dá uma resposta às pressões internacionais.
O Estatuto tentava conciliar as pressões sociais no campo e ao mesmo tempo tranquilizar os proprietários de terra, promovendo o desenvolvimento econômico, razão pela qual apresentava uma dupla face: uma distributivista de democratização da propriedade fundiária, incentivo à propriedade familiar e penalização do latifúndio; e outra produtivista de concentração da terra, capital e trabalho, com a consolidação da grande empresa capitalista. [8]
Prevaleceu a aplicação do Estatuto visando apenas a promoção da política agrícola por meio da estruturação modernizante da propriedade rural. Uma modernização baseada na concentração fundiária em parceria com setores industriais e agroindustriais.
O Estatuto da Terra estabeleceu as formas de governança da propriedade e do uso das terras em solo brasileiro, centralizada no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Instituiu os condicionantes do direito da propriedade: o princípio múltiplo da função social, eficácia produtiva da propriedade e reforma agrária; e a tributação sobre a propriedade terra.
O ITR nasce com o objetivo de ser o braço fiscal do Estatuto da Terra com uma função extra fiscal a desempenhar e um desafio importante: ser instrumento da função social da propriedade, desestimular a existência de áreas improdutivas ou ociosas.
Dispositivos legais não faltaram para tal, uma vez que o Estatuto fixou competência ao ITR para fins de induzir a redução de áreas improdutivas ou ociosas ao estabelecer critérios fiscais de progressividade e regressividade (Art. 49 e 50) no uso da propriedade rural, levando em conta os seguintes fatores: valor da terra nua; grau de utilização da terra na exploração (agrícola; pecuária e florestal); grau de eficiência da exploração; área total de imóveis rural de um mesmo proprietário. E impôs função extrafiscal: instrumento da função social da propriedade.
O ITR poderia ter sido um instrumento de modificação do nível de concentração fundiária no país. No entanto, pelas condições políticas e sociais em que surge, se tornou mais uma lei pouco efetiva por vários motivos. O principal deles, que embala muitas questões aparentemente técnicas, é o fato de haver forte pressão política contra a democratização do acesso à terra. As dificuldades operacionais em sua administração (cadastros desatualizados, dificuldade de acesso a informação de preço de terra, dentre outras) que dificultaram o cumprimento do caráter extrafiscal do ITR, são em maior medida resultado da inexistência de determinação política e gerencial de reforçar o controle e fiscalização do tributo, em parte alimentada por sua inexpressiva performance arrecadatória.
4 – A tributação da terra no Brasil não penaliza a terra improdutiva
A Constituição de 1988 reafirma o Estatuto da Terra[9] ao decretar que a propriedade rural somente é um direito quando observa o dever de cumprir o princípio múltiplo da função social. Em 1993 a Lei nº 8.629 reiterou a ideia de função social da terra, atrelando-o à necessidade de equilíbrio entre a exploração racional da terra, a gestão ambiental e o bem-estar social.
Em 1994, para evitar subavaliação das terras na declaração do ITR foi aprovado a Lei nº 8847, incumbindo a Receita Federal de estabelecer o Valor da Terra Nua mínimo (VTNm) no âmbito municipal, com base em levantamentos de preços de mercado. O VTNm funcionava como um parâmetro que impedia valores declarados abaixo do preço de mercado. Esse ato fez com que o ITR registrasse um valor expressivo no lançamento do ITR/95 o que causou uma grande insatisfação nos meios ruralistas, que alegavam erros nos valores de terra. Pressionada, a Receita Federal sobrestou o lançamento e alterou os valores que passaram de R$ 1,9 bilhão para ínfimos R$ 300 milhões. Pelo quadro a seguir se percebe que esse patamar arrecadatório ficou estagnado por anos.
ANO | Arrecadação Federal
(R$ milhões) |
Arrecadação do ITR
(R$ milhões) |
ITR/Arrecadação Federal
(%) |
2020 | 1.479.000 | 1.888 | 0,12 |
2019 | 1.537.079 | 1.758 | 0,11 |
2018 | 1.457.114 | 1.509 | 0,10 |
2017 | 1.342.408 | 1.365 | 0,10 |
2016 | 1.289.904 | 1.225 | 0,10 |
2015 | 1.221.546 | 1.169 | 0,09 |
2014 | 1.187.950 | 964 | 0,08 |
2013 | 1.138.326 | 820 | 0,07 |
2012 | 1.029.260 | 657 | 0,06 |
2011 | 969.907 | 600 | 0,06 |
2010 | 805.708 | 525 | 0,06 |
2009 | 698.289 | 474 | 0,07 |
2008 | 685.675 | 470 | 0,07 |
2007 | 602.793 | 379 | 0,06 |
2006 | 392.542 | 342 | 0,09 |
2005 | 364.136 | 323 | 0,09 |
2004 | 322.555 | 291 | 0,09 |
2003 | 273.358 | 296 | 0,10 |
2002 | 243.005 | 256 | 0,10 |
2001 | 196.757 | 242 | 0,12 |
2000 | 176.020 | 279 | 0,16 |
1999 | 151.516 | 273 | 0,18 |
1998 | 133.143 | 224 | 0,17 |
1997 | 112.689 | 209 | 0,18 |
1996 | 95.096 | 262 | 0,27 |
1995 | 84.005 | 104 | 0,12 |
Fonte: Elaborado pela autora, com dados da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil.
No mesmo ano, 1996, uma nova lei do ITR foi sancionada, o VTNm fixado pela Receita Federal é extinto, retornando o VTN ao seu caráter puramente declaratório. (Lei no 9.393, de 19 de dezembro de 1996). Também foi extinto o mecanismo da progressividade no tempo que agravava a alíquota se nos anos consecutivos o imóvel permanecesse com baixa utilização do solo. Tal mecanismo entraria em vigor no lançamento 1997, ano-base 1996. Essa alteração na legislação prejudicou a eficácia do ITR e aliviou a tributação da terra improdutiva.
No mais, a Lei nº 9.393/96 manteve o caráter extrafiscal e a progressividade do ITR: incentivo à propriedade produtiva e desestimulo a improdutividade ou ociosidade da terra. Os imóveis deveriam ter alíquotas fixadas progressivamente em razão do uso e de suas áreas totais. Também abriu a possibilidade de criar um cadastro que unificasse as informações fundiárias e ambientais, possibilitando que RFB, Incra, Ibama e Funai atuassem em colaboração corrigindo falhas cadastrais. Seria razoável que passados 25 anos a União pudesse contar com um cadastro fundiário, fiscal e ambiental confiável. Lamentavelmente não alcançamos ainda esse objetivo que é fundamental para eficácia da fiscalização do tributo.
Quando instituída a Lei nº 9393, o governo anunciou que a arrecadação do ITR atingiria a cifra de 1,6 bilhão de reais no primeiro ano de vigência da nova lei. Muito distante do previsto, a arrecadação do ITR permaneceu por uma década (1996 a 2006) no patamar de 300 milhões, somente em 2018, arrecada em torno do previsto para 1996 (R$ 1,5 bilhão). Em 2020 o ITR continua representando apenas 0,12% da arrecadação federal e 0,02% do PIB. A tributação da propriedade no Brasil (ITR e IPTU) é inexpressiva e não passa de 0,5% do PIB, bem distante de números como os 3% da França e Itália, os 4,5% do Chile, os 5% dos EUA e do Canadá ou os 6% arrecadados no Uruguai.
Vamos falar agora de superação. O derradeiro item desse artigo traz algumas propostas concretas para avançar na tributação rural em busca de uma economia justa.
5 – Os problemas do ITR e sua superação
A finalidade precípua do ITR era desestimular a expansão de latifúndios improdutivos e terras ociosas – função extrafiscal, além do aspecto arrecadatório. Ao longo dos anos o tributo sofreu várias mudanças legais, desde alterações que influenciavam na base de cálculo até aspectos que interferiam em sua governança.
Entretanto, algumas fragilidades permaneceram ao longo dos anos: sua natureza declaratória, a falta de fiscalização no meio rural e a ausência de um sistema cadastral consistente de registros escriturais que permitisse atuação integrada dos órgãos intervenientes como Incra e Ibama. Nunca é demais lembrar que a função do ITR não sendo cumprida, deixa o Estado sem instrumentos fiscais capazes de conter o movimento especulativo da terra, propiciando a manutenção de grandes propriedades improdutivas.
Sem uma fiscalização adequada e o devido controle do imposto às informações declaradas pelo contribuinte resultam em áreas tributáveis menores e em graus de utilização maiores o que reduz o valor do imposto. O estudo de Silva e Barreto (2014) [10], por exemplo, constatou grandes defasagens nas informações declaradas, algumas gerando um imposto a pagar de ITR superior a 12 mil vezes o valor que foi recolhido.
Além desse ponto existem lacunas legais na abordagem fundiária e ambiental. Por exemplo, faltam na legislação do ITR mecanismos para mensurar a produtividade das atividades agrícolas relacionando a utilização do solo a tais índices como ocorrem com a pecuária e alguns produtos vegetais. Na questão ambiental, o ITR e o Código Florestal não atuam harmonicamente no sentido de punir o descumpridor da legislação ambiental. Se uma propriedade rural desmatar além do permitido no Código Florestal (não respeitando as exigências de constituição de APP e RL [11]) e se a parcela irregularmente desmatada for ocupada de forma produtiva pelo proprietário, então não haverá qualquer penalidade na apuração do imposto.
Outro ponto crucial é a subavaliação do valor da terra nua declarado pelo contribuinte sobretudo com a extinção do VTNm em 1996. Em 2019, visando coibir essa subavaliação a Receita Federal publicou a IN 1.877 estabelecendo novos critérios para apuração do VTN em propriedades rurais. O objetivo é o de obter parâmetros mais próximos aos de mercado no cálculo do VTN e do ITR. Vale ressaltar que há 25 anos a Lei 9393 previu que o fisco criasse valores para arbitramento de forma a evitar a subavaliação e a fraude. Mas como tudo no ITR é de difícil implementação, até hoje, não temos um sistema de preços, em forma de malha fiscal, para conter os valores declarados abaixo do valor devido.
E como último exemplo do que pode ser melhorado/atualizado, trago a defasagem nos índices fixados no ITR. No final de 2020, o TCU provocado pelo Instituto Escolhas, determinou à Receita Federal a imediata atualização dos “índices de rendimentos mínimos para a pecuária”, valor base para a cobrança do tributo. Esses índices são os mesmos há 40 anos e sua atualização elevaria a arrecadação do ITR para R$ 14,3 bilhões ao ano – quase 10 vezes mais do que a obtida em 2018, de apenas R$ 1,5 bilhão.[12]
De uma forma mais geral para melhorar seu desempenho e garantir uma tributação justa no campo, o ITR precisa [13]:
1 – Manter na Constituição Federal o princípio múltiplo da Função Social da Propriedade[14], protegendo a sociedade da desigualdade fundiária, a natureza da dilapidação e as relações de trabalho das tendências regressivas.
2 – Atuar de forma cooperativa na fiscalização do tributo com as instituições que trabalham no setor (Incra, Ibama, RFB, Anvisa e MT) superando as várias legislações e competências administrativas que fragmentam o imposto.
3 – Concluir a constituição de um Cadastro Nacional de Imóveis Rurais, permitindo a gestão da malha fundiária e a governança do território; a promovendo o saneamento do Sistema de Registro Público de Imóveis Rurais, garantindo a segurança jurídica da propriedade da terra; e o controle Social na constituição de cadastros georreferenciados.
4 – Atualizar a legislação do ITR em consonância com o Código Florestal e criar um parâmetro fiscal de preço de terras capaz de impedir a subavaliação do valor da terra nua declarado.
Ao longo do século passado, várias reformas agrárias aconteceram [15] e foram a via fundamental para o desenvolvimento econômico de alguns países. O milagre chinês, por exemplo, tem sua origem nas reformas rurais da China, fundamental para o desenvolvimento industrial do país que viria ocorrer a partir da década de 80.
O modelo agrícola nacional assentado nos latifúndios monocultores e na extração de recursos naturais em alta escala, excluem do desenvolvimento as populações do campo e agrava a desigualdade. Uma economia injusta que não produz as condições necessárias para a nossa sobrevivência enquanto sociedade.
Com as mudanças propostas, sem grandes alterações na legislação[16], a arrecadação do ITR poderia alcançar patamares internacionais e o imposto poderia cumprir finalmente seu papel de estimular o adequado uso da terra.
Mas como disse no início, a ineficácia do ITR nunca se deveu a inexistências de soluções técnicas. Sempre existiram, de forma até abundante, propostas para melhorar seu desempenho arrecadatório, fundiário e ambiental. A ausência de vontade política e determinação gerencial é que impedem o ITR de dá frutos. No entanto, existe uma tenaz pressão social para melhorar sua a gestão, o que de certa forma se reflete nos recentes movimentos envolvendo o TCU e a Receita Federal.
Os preceitos rousseaunianos de igualdade e liberdade jamais vingaram em qualquer sociedade do planeta, mas cabe a nós não desistirmos da possibilidade de lutar, com os instrumentos que dispomos, pela diminuição das desigualdades sociais, reequilibrando a disputa pela terra e fazendo de sua utilização uma forma de vida mais justa, ecológica e economicamente sustentável.
Sim, o ITR pode ser um caminho para uma economia justa nas relações fundiárias e ambientais. Basta atiçá-lo.
[1] Segundo levantamento da Comissão Pastoral da Terra (CPT) o Brasil registrou 1.833 conflitos no campo em 2019, o número mais alto dos últimos cinco anos e que representa um aumento de 23% em relação ao ano anterior.
[2] PRADO JUNIOR, Caio. Evolução Política do Brasil – Colônia e Império [1933]. Editora Brasiliense 1999, pag. 57
[3] ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens.[1755], Tradução por Lourdes Santos Machado. 5. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991.
[4] DE ANGELO, Vitor Amorim. Lei de Terras: Lei de 1850 contribuiu para manter concentração fundiária; UOL educação: Pesquisa escolar. Disponível em <https://educacao.uol.com.br/disciplinas/historia-brasil/lei-de-terras-lei-de-1850-contribuiu-para-ma…. Acesso em 22 de abril de 2021.
[5] VIERA JUNIOR, Itamar. Torto Arado. São Paulo: Todavia, Iª ed., 2019, 264 páginas
[6] Rosana Rocha Reis, O direito à terra como um direito humano: a luta pela reforma agrária e o movimento de direitos humanos no Brasil, Lua Nova nº 86, São Paulo 2012, https://doi.org/10.1590/S0102-64452012000200004
[7] Canuto, A.; Gorsdorf, L. 2007. “Direito humano à terra: a construção de um marco de resistência às violações. In: RECH, D. (coord.) Direitos humanos no Brasil 2: diagnósticos e perspectivas. Rio de Janeiro: Ceris; Mahuad
[8] Reforma Tributária Necessária – Premissas e Diagnósticos – Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural – p399
[9] Art. 5º §1º inciso XXIII (Título dos Direitos e Garantias Fundamentais),
[10] O potencial do Imposto Territorial Rural contra o desmatamento especulativo na Amazônia / Daniel Silva; Paulo Barreto. – Belém, PA: IMAZON, 2014
[11] Área de Preservação Permante e Reserva Legal
[12] Instituto Escolhas – https://www.escolhas.org/escolhas-pede-que-tcu-mande-receita-federal-atualizar-cobranca-do-imposto-da-propriedade-rural-itr/
[13] Reforma Tributária Necessária – Premissas e Diagnósticos – Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural – p 408/409.
[14] Cf. Art. 5º, item XXIII, combinado com Art. 186 da Constituição Brasileira
[15] Na União Soviética, na República Popular da China, na Europa (central, oriental e meridional), na Índia, nas ex-colônias da antiga Indochina francesa, na América latina ou na África recém-descolonizada.
[16] O instituto Escolhas recentemente apresentou uma proposta de alteração na legislação do ITR mais profunda que merece ser estudada e avaliada pelas áreas envolvidas.