No crítico intercurso da sindemia Covid no país, as iniciativas de ajuizamento ao Supremo Tribunal Federal (STF) de Ações Diretas de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) implicam importantes tensionamentos normativos que interpõem as salvaguardas de princípios constitucionais perante determinadas posturas governamentais de negligência, de omissão e de incompetência para se proteger vidas em situações de risco social e epidemiológico. Particularmente o teor e o trâmite inicial da ADO-65, ajuizada por dois partidos políticos (PCdoB e PSOL) e que já conta com voto favorável do seu relator no STF (ministro Marco Aurélio Mello) consubstanciam o tensionamento normativo de responsabilidade intergovernamental solidária na adoção de estratégias sociais e institucionais, sanitárias e econômicas, além das decorrentes medidas imprescindíveis para se lidar com a atual crise. Além do pacto federativo constitucional, o Sistema Único de Saúde (SUS) também estabelece princípios éticos-sociais e estratégias intergovernamentais que requerem responsabilidade e proatividade intergovernamental.
O pacto federativo do Estado brasileiro está constituído por ethos interinstitucional que integra dialeticamente os princípios de interdependência, de cooperação, de concorrência e complementaridade de competências, de solidariedade, de subsidiariedade, de integralidade e de sinergia; cuja viabilidade depende primordialmente de iniciativas, de instâncias e de modos de governança cooperativa sob autoridade coordenada. Algo imprescindível, notadamente em tempos de crise. No caso da direcionalidade federativa e da condução intergovernamental de políticas públicas de saúde gradualmente foi constituído um inovador arranjo estratégico, já testado por três décadas e com resultados promissores: a partir de processos decisórios estabelecidos nas Comissões Intergestores do SUS.
Todavia, mesmo com muitas dificuldades e limitações nos processos de intergestão do SUS, inclusive em outras conjunturas adversas, nunca tinha ocorrido a tentativa de um ente governamental justificar suas negligências, incompetências e omissões letais a partir uma versão enviesada e autoritária acerca do pacto federativo. O governo Bolsonaro tem se escudado em uma decisão do STF, que reitera a constitucionalidade da concorrência e da complementaridade de competências e ações governamentais (acerca da MP-926/2020), para justificar a sua inoperância e pendor necropolítico na condução da crise atual.
O sentido necropolítico imputado ao governo Bolsonaro pode ser estabelecido por dolo direto de consequências, caracterizado por negligências intencionais com o propósito anunciado de indiferença sistêmica para garantir a permanência da “normalidade econômica”. A decorrente aposta estratégica de uma imunização “de rebanho”, provocada pelo próprio agente viral, se preponderante teria levado ao colapso dos sistemas de serviços de saúde e ocasionada o triplo da mortalidade atual (cenário projetado por estimativas comparativas). Entretanto, mesmo não tendo ocorrido esse pior cenário, ainda assim ocorreram milhares de óbitos evitáveis em função da inoperância, da imprevidência, da improvidência e da falta de coordenação do governo federal para as necessárias medidas epidemiológicas de mitigação, de controle das cadeias de transmissibilidade viral, de proteção da população e de imunização por vacinas. Ocorreram inúmeras decorrências e derivações microeconômicas deletérias, também evitáveis, pela mesma disfunção.
O governo Bolsonaro também pode ser responsabilizado por omissões criminosas estabelecidas pelo Código Penal. Crimes contra a Saúde Pública que podem ser mais bem caracterizados pelo estabelecimento apropriado de nexos causais e evidências epidemiológicas sobre decorrências letais, tais como: charlatanismo por inculcações e anúncio de curas infalíveis (Art. 263°); infrações de medidas sanitárias preventivas (Art. 268°) e exposição da vida ou da saúde a perigo direto e iminente (Art. 132°). A partir da comprovação de insuficientes e extemporâneas respostas em função de determinadas condições emergenciais (como no caso da falta de oxigênio no Amazonas), também se torna necessária a responsabilização nos termos de uma omissão de socorro, não para casos individuais, mas para casos coletivos.
Especificamente, configura em capítulo a parte, as posturas intencionalmente negligentes e as omissões no planejamento e na antecipação dos recursos e iniciativas para a obtenção e disponibilização de insumos vacinais. Inclusive, tal particularidade incrementou sobremaneira as projeções de óbitos que poderiam ter sido evitados a partir de antecipações e ações governamentais.
Há muitas décadas já foram estabelecidas premissas de legislação e estratégias institucionais para a condução de crises. Existem dispositivos legais para a mobilização e disponibilização ágil de recursos críticos, existem tecnologias e dispositivos para o monitoramento eficaz de informações estratégicas, existem instâncias vocacionadas para processos decisórios e estratégias comunicativas orientadas para grupos específicos (redes, comitês, gabinetes de crise etc.). No entanto, lamentavelmente o que constatamos ao longo da crise ocasionada pela Covid foram as improvisações governamentais como via de regra e, no caso específico do governo federal, mais uma omissão injustificável. A essa altura, causa espécie que numa ADO conste a exigência de que o governo Bolsonaro deva instituir uma comissão autônoma para a gestão da atual crise, algo alarmante e sintomático sobre o grau de degradação institucional em curso no plano federal.
Desde o início do ano passado no Brasil, muitos cientistas, autoridades sanitárias e profissionais de saúde têm se esforçado em estabelecer algumas estratégias sociais e interinstitucionais viáveis para o monitoramento e a condução da crise, notadamente com recomendações sobre medidas epidemiológicas, assistenciais e de suporte logístico (Testagens, Vigilância epidemiológica, regulação do rigor de medidas restritivas e protetivas etc.). Embora, geralmente com função coadjuvante na maior parte dos comitês, comissões e gabinetes de crises, inclusive de governos estaduais e municipais. Nos processos decisórios dessas instâncias, os verdadeiros protagonistas têm sido os interesses empresariais de curto prazo, pautados em indiferença sistêmica e amparados em margens “toleráveis” para óbitos evitáveis.
Resta ainda o necessário tensionamento normativo e o enfrentamento político diante das omissões de governos estaduais e municipais, que se encontram subsumidas ou tendem a se tornar toleráveis quando comparadas com as flagrantes perversidades e posturas necropolíticas do governo Bolsonaro.