A educação no Brasil vive hoje a mais severa e grave crise de sua história e por uma razão simples e até simplória: o ódio do governo à educação, que se expressa de diferentes maneiras: na forma absurdamente desrespeitosas do Ministro da Educação aos se dirigir aos brasileiros em geral, aos estudantes e aos professores; nos radicais cortes orçamentários para a educação, para a ciência e tecnologia; na falta absoluta de qualquer política para educação depois de um ano de governo, à exceção das assustadoras escolas cívico-militares.
Este desprezo também se expressa nas escolhas dos secretários de cultura antes um nazista, agora uma atriz decadente de extrema direita; nas formas que a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, lida com as questões concernentes a sua pasta, nos absurdos projetos de deputados governistas na Câmara Federal. Soma-se a isto, o desprezo aos livros didáticos, que o Presidente da República expõe com orgulho no portão de sua residência oficial ou na atitude de governos de estado, que se auto designaram censores da literatura disponibilizada nas escolas públicas e outros órgãos da administração. O governador do estado de Rondônia quis censurar nas escolas os clássicos da literatura, entre os brasileiros “Memórias Póstumas de Brás Cubras”, de Machado de Assis, “Os Sertões” de Euclides da Cunha, além de obras Caio Fernando Abreu, Heitor Cony e Rubens Fonseca. Entre estrangeiros proibiu os clássicos Kafka e Edgar Allan Poe. Em São Paulo, órgãos do governo estão impedindo que presidiários de leam Padura, Garcia Marques e Camus.
Poderia continuar por páginas a discorrer sobre esta obtusa forma de se relacionar com a educação do governo Bolsonaro. E não estaria errada se concluísse que estamos frente a uma catástrofe de grandes proporções. O propósito deste pequeno artigo é buscar entender o porque deste ataque frontal à educação e, posteriormente, pensar nossas responsabilidades em enfrentá-lo: Vou dividir a exposição em duas partes: na primeira estabelecerei algumas premissas do que eu entendo como os princípios do pacto que rege o capitalismo financeiro globalizado, que politicamente está deixando claro que o regime democrático , mesmo com suas limitações, já não serve aos seus interesses. Na segunda parte, farei uma reflexão, que parte da velha, e nunca respondida questão, “o que fazer”? Vou trabalhar com o conceito de responsabilidade e desta forma pretendo contribuir, a partir de uma perspectiva teórica, para pensar a questão da educação na atual crise da democracia brasileira.
I
Acompanhando o pensamento da cientista estadunidense Wendy Brown (2015) parto de uma premissa geral que no atual momento do capitalismo financeiro, o neoliberalismo ultrapassa um programa econômico, pois, não se trata somente de desregulamentar a economia, vender os ativos públicos, abrir as portas ao capital internacional, sem nenhuma proteção. É muito mais do que isto, é colocar o estado a serviço exclusivamente dos interesses do capital, o que implica em desresponsabilizá-lo por qualquer política que promova o bem viver do conjunto dos cidadãos de um país. É nas palavras de Brown “regular a sociedade pelo mercado”. E neste cenário uma política de educação para todos não tem lugar.
O projeto em curso no chamado ocidente e suas franjas é um projeto de morte e não de vida. É um projeto onde a vida de cada um de nós e, principalmente, dos mais pobres, dos mais vulneráveis, não tem valor. No Brasil atual, pouco interessa ao governo se pobres morrem nas filas sem atendimento médico, ou que as escolas e universidades sejam para poucos. Pouco importa que o país seja um dos mais violentos dos mundo, com mortes violentas só comparáveis a países em guerra civil. Afinal, os que estão nas filas do SUS, os que não entram na universidade e os que morrem vítimas da violência são sempre os mesmos; são os pobres, são os negros, são as mulheres, são os desvalidos de toda sorte. São os descartáveis.
Achille Mbembe, o brilhante antropólogo camaronense, ao concluir seu ensaio sobre a necropolítica traça um quadro muito claro deste cenário:
“a noção de necropolítica e de necropoder dá conta das várias maneiras pelas quais, em nosso mundo contemporâneo, as armas de fogo são dispostas com o objetivo de provocar a destruição máxima de pessoas e criar “mundos de morte” formas únicas e novas de existência social, nas quais vastas populações são submetidas a condições de vida que lhes conferem o estatuto de “mortos- vivos”. (Mbembe, 2018, p.71)
No processo de (des) democratização todos perdem, mas perdem mais as populações consideradas desprezíveis. Judith Butler é muito enfática a este respeito, quando se refere às vidas que não são consideradas vidas, as chamadas populações perdíveis:
“populações perdíveis, ou que podem ser sacrificadas, são assim chamadas precisamente porque foram enquadradas como já tendo sido perdidas ou sacrificadas; são consideradas como ameaças à vida humana como a conhecemos, e não como populações vivas que necessitam de proteção contra a violência ilegítima do Estado, a fome e as epidemias. Consequentemente, quando essas vidas são perdidas, não são objeto de lamentação, uma vez que, na lógica distorcida que racionaliza sua morte, a perda dessas populações é considerada necessária para proteger a vida dos “vivo” (Butler, 2015, p.53)
Este alijamento é necessário no processo de (des) democratização no atual momento do capitalismo globalizado neoliberal e constitui um continuo desrespeito, que desqualifica a política como espaço de discussão, de resolução de problemas e destrói o sujeito político popular demandante.
As democracias, por mais precárias que sejam, abrem possibilidades, maiores ou menores, de acolhimento de demandas, de lutas por direitos. Quando estas democracias precárias se encontram com necessidades específicas do capitalismo, sobram vidas, que precisam ser simplesmente descartadas. Há, também nestes momentos, uma maior visibilidade daqueles que nunca foram considerados vidas, que são responsabilizados pelos índices de violência simplesmente porque são pobre, ou porque são imigrantes, ou porque são refugiados, ou marcados por pertencerem a regiões específicas no planeta. Todos são tratados como não humanos. Em suma, parte destas pessoas nunca foram vistas como vidas, sempre estiveram à margem, principalmente em países pautados por profunda desigualdade social, como é o caso do Brasil.
As democracias, mais, ou menos robustas do pós guerra, somadas a ebulição de movimentos sociais nas últimas décadas do século passado, que se alastraram pelo mundo, chegando até regiões com regimes autoritários, autocráticos e mesmo teocráticos, formaram um caldo de cultura para o surgimento de diversificados sujeitos sociais, que se expressaram através de seus pertencimentos de classe, através de suas identidades organizadas em movimentos feministas, em movimentos negros , nos movimentos LGTBI. Estes diferentes operadores mesmo atuando no âmbito do capitalismo expandiram direitos e ameaçaram os arranjos políticos, os privilégios econômicos e sociais da burguesia e da alta classe média, essencialmente garantidos nas democracias liberais
Mas, neste momento, há um assustador retrocesso. No fim da segunda década do século 21 estamos vivendo um aprofundamento das políticas de exclusão. Nunca o ocidente, após a II Guerra Mundial esteve-se tão próximo da (des) democratização autorizada. Nunca no Brasil, desde o processo de redemocratização, que derrotou o regime civil-militar ditatorial, se esteve tão perto da derrocada dos direitos civis, políticos e sociais, conquistados na luta política e garantidos pelo estado democrático. A ordem neoliberal não admite direitos, nem os mais corriqueiros, aqueles quase de senso comum. Para se realizar, esta ordem necessita de uma constante política de exclusão, de eliminação dos indesejáveis, de uma necropolítica.
A Constituição brasileira de 1988 veio a título de consagrar o retorno do Brasil ao regime democrático. É a Constituição mais democrática e a que mais incluiu na história do país. O trabalhador deixa de ser só o trabalhador e passa ser o trabalhador urbano, o rural, o doméstico ou o desempregado involuntário. Cada um com seus próprios direitos; o cidadão tem direitos claros mesmo quando cumprindo pena, e mesmo aí tem diferenciação de sexo — a mulher presidiária tem direitos como mãe e como membro de uma família; independente de sua condição, os cidadãos votam e têm direitos universais à saúde e à educação; este cidadão é homem, mulher, indígena, criança, adolescente, filho adotado, idoso, carente, inválido, deficiente físico, mãe, pai.
Esta é, pois, a primeira Constituição que nomeia e, portanto, reconhece a marginalização. É a Constituição que vê criticamente as inclusões e exclusões ocorridas ao longo da história do país. Ao contrário de todas as anteriores, começa não pela organização do Estado, mas pelos princípios fundamentais e pelos direitos e garantias. No Art. 3, onde são estabelecidos os objetivos fundamentais da República Federativa, lê-se no inciso III: “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”; e no inciso IV: “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Lendo esse artigo à luz da noção de inclusão, vê-se o reconhecimento da pobreza e, mais, a ideia da inclusão através da transformação, algo novo nas constituições brasileiras.
De 1988 até 2016 o Brasil viveu um círculo virtuoso de democracia, mesmo com os percalços do primeiro presidente eleito diretamente, Collor de Mello. A partir da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso até o impeachement de Dilma Rousseff, o país viveu a mais forte experiência democrática de sua história. Não só pelas garantias das liberdades fundamentais, mas pela execução continuada de políticas públicas nas áreas da saúde, habitação, educação, ciência, erradicação da pobreza absoluta, direitos diferenciados para populações historicamente excluídas. Durante este período também as instituições funcionaram sem interferências indevidas. A partir do primeiro governo Lula a Polícia Federal e o Ministério Público passaram a agir com total independência.
Amparados na Constituição, os governos do Partido dos Trabalhadores, no âmbito federal, estadual e municipal propiciaram experiências importantes de democracia participativa através de conselhos, conferências sobre temas centrais da cidadania, do orçamento participativo. De outra forma, foram implementadas, mesmo que timidamente, políticas de redistribuição de renda que tiraram o país do mapa da fome e elevaram o salário mínimo e a renda geral dos trabalhadores. Na sociedade civil, os movimentos feministas puseram em xeque o arranjo patriarcal, a moral burguesa, e a pobreza das mulheres e foram ativos na pressão para a construção de políticas públicas, mormente referentes a questão do combate a violência contra a mulher e de sua saúde reprodutiva. O racismo deu sinais de arrefecimento com vitórias dos movimentos negros que o transformou em crime e provocou leis compensatórias como a de cotas raciais nas universidades, entre outras. O movimento ambientalista construiu durante este período uma importante consciência ecológica na população.
Mas o círculo virtuoso se esgotou. O Brasil enfrenta neste momento a face mais dura da (des ) democratização, que adéqua o país às necessidades do neoliberalismo global, da forma mais perversa possível. Se o círculo virtuoso tentou a política do “todos ganham’, no atual momento não há nenhum pudor ao deixar claro quem deve ganhar, quem são os eleitos à vida, à vida digna, quem se salvará da necropolítica, que no Brasil definitivamente não é uma metáfora.
Mas a necropolítica não para aqui. Quando um governo não tem políticas públicas, quando um governo desestrutura a educação do país, corta políticas que garantiam médicos às populações pobres, tenta mentir sobre o número desempregados, e aprova uma reforma previdenciária que fará os mais pobres trabalharem até a morte, está destruindo a democracia, está decidindo quem viverá e quem morrerá. Está aprofundando o abismo entre a elite privilegiada e a maioria desvalida. Está tratando de apagar os ganhos da cidadania dos últimos 25 anos e colocando de volta o país na trilha oligárquica, aberta pelo escravismo colonial, reproduzida secularmente pelas classes dominantes.
O Brasil está se adaptando às necessidades de um capitalismo que não consegue mais sobreviver com a democracia, necessita matar, necessita marginalizar, tirar direitos, mentir sempre. Não há projeto de futuro, porque para o neoliberalismo antidemocrático o futuro já chegou.
Frente a este quadro a pergunta que se impõe é o que fazer? E esta pergunta ganha ainda mais relevância quando estamos frente ao desmonte da educação no país.
II
A cientista política e feminista estadunidense, Iris Young deixou uma obra póstuma de grande valor para pensarmos o primado da responsabilidade. O livro não traduzido para o português tem o título de “Responsability for Justice”( 2011) Nele Young se afasta com veemência do conceito de culpa, pois é fácil e cômodo se colocar na posição de culpados que paralisa as reações. Afirma que só alguns de nós somos realmente culpados, mas todos somos responsáveis e isto faz toda a diferença. Young identifica três tipos de relação dos indivíduos com a responsabilidade. A primeira delas, e a responsabilidade dos que se omitem. Grande parte da população alemã sabia o que estava se passando durante o nazismo, a maioria, possivelmente, não participou de nenhum ato oficial, nem pertenceu ao partido, mas viveu como se o que estava acontecendo não tivesse nada a ver consigo. Também as ditaduras latino-americanas oferecem bons exemplos desse tipo de relação dos indivíduos com governos que torturaram e mataram, para não falar em parte significativa dos eleitores de Bolsonaro.
O segundo tipo de responsabilidade refere-se aos indivíduos que não se omitem completamente e tratam de prevenir que o mal atinja alguns, os mais próximos, os conhecidos, ou mesmo pessoas desconhecidas. Muitas pessoas na América Latina, durante as ditaduras militares, deram guarida a perseguidos políticos, mesmo sem concordarem com suas ideias ou os conhecerem. Esse tipo de responsabilidade, identificada por Young, está muito próximo do princípio liberal de solidariedade e pressupõe questões morais que provocam ações de caridade, trabalho voluntário ou outros mais nobres, como proteger pessoas ameaçadas de morte devido suas ideias.
O terceiro tipo refere-se àqueles que tomam responsabilidade coletiva, ou seja, assumem responsabilidade política. Young exemplifica a responsabilidade política, com a conhecida ação coletiva dos dinamarqueses na II Guerra, para encontrar todos os judeus no país e colocá-los a salvo, levando-os para a Suécia. Neste momento no Brasil, talvez tanto quanto durante a ditadura cívil-militar, os desmandos do governo, as ameaças a democracia chamam todos os democratas à responsabilidade coletiva.
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Para concluir gostaria de levantar algumas questões para que possamos discutir a nossas responsabilidades frente a educação, a responsabilidade de enfrentarmos no Brasil políticas de extermínio da educação e da cultura e com elas a impossibilidade de uma viva justa, uma vida vivível para as próximas gerações, principalmente para as crianças e para os jovens das classes populares.
Apesar de seus problemas a universidade pública e gratuita tem sido um espaço central de ensino, de pesquisa e de extensão. Tem sido a grande formadora de professores com espírito critico, que se espalham pelas escolas públicas do país e que apesar das humilhantes condições de trabalho, têm garantido o ensino para os que não estão na ponta privilegiada da pirâmide social, para os que não são os escolhidos para terem uma vida vivível. Isto aparece como um grande e assustador problema para os gestores do neoliberalismo brasileiro. Os projetos de Escola sem Partido que se espalham pelos legislativos federal, estaduais e municipais mostram o quanto a prática destes professores é assustadora. E eles estão simplesmente ensinando.
Controlar o ensino, quer seja ele fundamental, médio ou superior é fundamental para o necro projeto de (des) democratização do país. Porque a luta pela educação é muito ameaçadora: a luta a quer pública, quando a desrazão neoliberal a quer privada; a quer gratuita quando a desrazão neoliberal a quer paga; a quer inclusiva quando a desrazão neoliberal a quer com exclusidade para as elites. Enfim, as escolas, as universidades são locais abertos aos desafios da saudável desobediência dos jovens, abertos aos debates artísticos, científico, filosóficos e políticos, enquanto a desrazão neoliberal esforça-se para impor fundamentalismos religiosos, superstições e o anticientificismos como forma de afastar o povo do saber.
Portanto, é frente a este cenário que temos de nos posicionar, é frente a ameaça de destruição da educação que temos de assumir responsabilidade. Responsabilidade que não pode ser apenas efeito de escolha individual, mas um imperativo coletivo, político.
Qualquer atitude em relação a educação, não pode se furtar de entender o momento de grave ameaça aos princípios civilizatórios básicos, que estamos vivendo. Não pode se furtar de encarar de frente o processo de (des) democratização em andamento. Não pode deixar de enfrentar os ataques aos brasileiros pobres, aos direitos humanos e sociais ameaçados. A responsabilidade de todos que se envolvem no debate público, trabalhando ou não com a educação, é gigantesca, porque é a responsabilidade de lutar pela própria sobrevivência da democracia e, por consequência, da educação e da cultura no país. E esta luta é política, se constrói no debate público, nos movimentos sociais, nos partidos políticos na busca de um novo projeto democrático para o país. A reponsabilidade neste momento no Brasil envolve, antes de tudo. tirar da linha de tiro, os que neste necrogoverno, são os indesejáveis, os descartáveis, os que não merecem viver uma vida vivível, os que não merecem educação, porque não importam.
Referências
BROWN, Wendy. Undoing Democracy. New York: Zone Boooks, 2015.
BUTLER, Judith, Quadros de Guerra, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2015.
MBEMBE, Achille,. Necropolítica. São Paulo: N-1 Edições, 2018.
YOUNG, Iris, “Responsability for justice” New York: Oxford Universty Press, 2011.