Diante do colapso evidente de suas próprias estruturas, o modelo capitalista vigente aposta não na revisão crítica a reformulação do sistema, mas na confirmação e reiteração do seu método de acumulação e de concentração de riqueza por meio do esgotamento dos recursos naturais, precarização do trabalho, ampliação da exclusão social e aprofundamento da desigualdade.
Ao contrário do discurso construído pelo liberalismo atual e repercutido à exaustão pela mídia, a expansão do capitalismo e o recrudescimento de regimes autoritários não são fenômenos antagônicos e nem excludentes, mas lógicas de poder que se integram e combinam para garantir mais lucros e mais submissão, por meio de leis regressivas ou, se necessário, pela ação coercitiva direta do aparato repressivo do Estado.
Aplicadas em diferentes formatos, no Brasil e em muitos países do mundo, as recentes reformas laborais que se anunciaram como estratégias modernizadoras das relações de trabalho foram na verdade realizadas afrontando os princípios e direitos fundamentais consagrados nas Constituições dos Estados Democráticos ao longo do Século XX e, via de regra, caminharam no sentido da supressão de direitos historicamente conquistados pelos trabalhadores, redundando em ainda maior precarização e empobrecimento do trabalho.
O “direito” que as reformas oferecem à classe trabalhadora é o de trabalhar mais horas, em situação mais precária, com proteção reduzida ou inexistente, ganhando menos. O motorista de aplicativo que fica mais horas dentro do carro do que em casa com a família; a trabalhadora doméstica que, durante a pandemia, foi sumariamente descartada ou precisou se submeter a passar a semana toda dentro da casa do patrão; o entregador de fast food que dorme na praça, usando o isopor como travesseiro nos intervalos de uma jornada sem fim. Todos são testemunhos, impossíveis de ignorar, de leis que não protegem e de uma tecnologia que não liberta, senão abre margem para novas modalidades de exploração.
Nessa partilha desigual, o quinhão que cabe ao empregado é o da exaustão, escassez e alienação. Como buscar a realização como pessoa e a plenitude da cidadania quando a batalha diária é para não passar fome, não ser despejado, não atrasar as contas um mês a mais? Estas são certamente razões suficientes para defendermos que as lutas por trabalho decente e vida digna, travadas pelos sindicatos e pelos trabalhadores, não só permanecem atuais, como devem ser intensificadas e estar conectadas com as lutas democráticas mais gerais da sociedade.
Não é possível falar em liberdade e dignidade, diante das transformações brutais que atingem o trabalho na contemporaneidade, sem assumir claramente o enfrentamento das novas formas de espoliação, também e especialmente no terreno das ideias. É urgente debater nos sindicatos e nas universidades, nos tribunais e meios de comunicação, na sociedade, formas de resistir ao avanço do processo de desmonte do sistema protetivo, de restabelecer direitos sonegados pelas reformas recentes, de produzir e dar efetividade a novos direitos, compatíveis com as necessidades que emergem do impacto da revolução tecnológica, na perspectiva de construir um novo marco legal efetivamente democrático e protetivo do trabalho. Para tanto, é necessário refletir criticamente sobre as reformas laborais regressivas impostas aos trabalhadores em vários países, mas também conhecer e compreender as experiências recentes de repactuação, como a da Espanha, que são referências importantes para debater sobre o presente e o futuro do mundo do trabalho.
Nesta edição, desenvolvida numa parceria por Democracia e Mundo do Trabalho em Debate – DMT e Democracia e Direitos Fundamentais – DDF, reunimos artigos de estudiosas e de estudiosos que, reconhecidos pelas suas contribuições teóricas para a compreensão do universo do trabalho, no Brasil e do exterior, trazem agora novos elementos para que possamos bem interpretar as transformações em curso e melhor definir os desafios do nosso tempo.
Boa leitura!