Apresentação
“Texto denso. Instigante. Um diagnóstico dos tempos atuais. Explica Bolsonaro. A metáfora da natureza a ser tomada (Espinosa). A morte da filosofia. O fracasso do estado democrático . Enfim, esse trecho é lapidar: A pretensão metafísica de constitucionalização do estado como Estado Constitucional é, na verdade, irreal como força originária da liberdade vinda do espírito, pois a fragmentação da legalidade e o surgimento de novas problemáticas que não estavam contempladas nas visões do Direito e do Estado originárias do século passado, sobrepõem-se à vocação do Estado Constitucional. Esta vem sendo derrotada, ora por reformas específicas que fragmentam cada vez mais o sistema legal, ora pelo avanço da “ação que enterrou a filosofia”, dos movimentos autoritários fascistas, que destroem o Direito e a frágil identidade subjetiva da cidadania democrática”. (Lenio Streck, professor da Unisinos e Unesa e Procurador de Justiça aposentado)
Razão e liberdade na ideia da democracia e no reino da mercadoria
Em um primeiro momento, o tema deste texto, sobre o qual fui suscitado a debater, pareceu-me fora do tempo. Em seguida, melhor compreendendo o objetivo, conclui que o desafio era pertinente e que a sua teleologia implicava em buscar um “rumo” para a crítica do presente. Quando se questiona sobre “o porquê da filosofia”, em qualquer tempo, o que se pretende é buscar respostas universais que só a filosofia pode oferecer em cada passo da História, remetendo para uma situação histórica viva definida por Lukàcs como “centralidade ontológica do presente” .
Althusser provavelmente pensava nisso quando dizia que Spinoza (1632-1677) era o único “ancestral direto de Marx”, aduzindo que até hoje ninguém conseguira explicar a verdadeira natureza de Deus, porque ele era explicado como um ser à nossa imagem e semelhança. Hegel (1770-1831) afirmava aceitar a existência de Deus porque entendia que sem Ele a nossa capacidade de pensar seria bloqueada. Marx, no jogo (invertido) da dialética hegeliana argumentava, pela via da lógica materialista, o contrário: com Deus seria impossível pensar o mundo de forma cientifica e livre. Spinoza, Hegel e Marx, produtores de ideias mestras da modernidade foram arquitetos da inteligência, centrados no seu presente histórico.
Antonio Gramsci (1891-1937) pensava que o reinado da “ideia” (a produção da subjetividade humana acolhida pela “práxis”) iria vencer quando as lutas sequenciais dos operários permitissem “um devir”, no rumo da unificação “concreta e universal” entre os humanos. O pensador sardo considerava a “ideia”, não um “pressuposto” da construção da liberdade, mas como seu corolário, no movimento de reconciliação da humanidade consigo mesma, obtida conscientemente na História.
Na marcha sobre Roma, Mussolini anunciou: “A ação enterrou a filosofia.” A ação, portanto – para Mussolini – demitiria a filosofia do tempo presente, com a sua senilidade sendo reconhecida e superada pela imposição da barbárie. Dei-me conta do desafio que motiva este texto quando pensei nessa fala de Benito Mussolini: ele proferira uma sentença extraordinária para enfrentar, na prática, a crise da modernidade como crise efetiva da democracia liberal, cujos prolegômenos estavam presentes até mesmo antes da eclosão da 1ª Guerra Mundial.
Na visão de Mussolini, a ação enterraria os grandes “questionamentos” humanistas, tomando o lugar das indagações que vêm de Platão e Aristóteles, passando por toda a filosofia moderna. Seu “movimento” prático superaria as ideias da Revolução Francesa: a nação faria imperar a força do instinto e das trevas sobre a luz da razão. E então as tradicionais indagações de natureza especulativa e essencial — “O que é o homem”? “O que eu estou fazendo aqui”? “O que eu quero da vida”? “Os deuses existem”? — não teriam respostas no terreno da filosofia e, pela fórmula de Mussolini, passariam a ser respondidas pela ação prática e a violência pura.
Quando a ação enterra a filosofia o “espírito” entra em decomposição e este, então, bloqueia tanto as perguntas como as respostas elaboradas pelos humanos. As pessoas, isoladas ou “agrupadas” nas universidades, no trabalho, nas instituições e nas comunidades da sociedade civil, nas empresas e em todos os demais lugares do mundo, não podem mais, portanto, questionar sobre o “porquê estou aqui?”
As necessidades que levam os indivíduos a formularem estas indagações, todavia, fazem com que eles encarem a totalidade do mundo humano, no qual, ou o humano submerge sem mudar a vida, ou se ergue para pensar além de si mesmo, para superar-se e ir além das automaticidades do cotidiano como imediatidades manipuladas. O comunicar-se como cotidiano da política – por exemplo – nos termos do “funcionamento” do Estado, do viver numa comunidade concreta, faz as relações de vizinhança – como disputas, fraternidade e dominação – inteligíveis para atribuir sentido à vida social, considerando-a como movimento perpétuo.
Vou tentar responder à indagação do “porquê?” da filosofia, primeiro através de duas grandes figuras da filosofia moderna. A primeira delas vinculada a uma fase essencial da constituição da cultura política da modernidade (Kant); a segunda, a partir de respostas dadas por um filósofo e político moderno (Gramsci). Falarei deles a partir de Hegel (1770/1831). Sobre Kant (1724/1804) e Antônio Gramsci (1881/1937), o farei para discutir as “ideias”, projetadas nas figurações do Moderno contemporâneo e como elas se constituem no plano das subjetividades coletivas, como emancipação e liberdade.
Lenin fez uma cunhagem admirável para a abordagem da política moderna, com uma observação do panorama histórico-filosófico da sua época, quando disse: “Eu prefiro o idealismo inteligente ao materialismo burro”. Para ele, o materialismo burro eliminava a filosofia, o idealismo inteligente a valorizava. Lenin dizia isso a partir da sua leitura de Hegel, para sustentar que os pontos críticos dos duelos filosóficos não estavam na oposição entre o idealismo e materialismo, mas sim entre racionalismo e irracionalismo, como Lukács fundamentou, depois de Lenin.
A “ideia” – “o espírito” – na concepção hegeliana é tratada pelos pósteros de Hegel com muito respeito, em oposição frontal à frase posta por Mussolini, que não era filósofo, mas dirigente político e polemista, cujas proposições tiveram, à época, grande repercussão, não só para interpretar a Revolução Russa e criticar a Democracia Liberal, mas também para ordenar um sistema pragmático de pensar a história imediata, para promover a derrota da razão.
Quando Hegel se despedia da vida, em 1831, os seus amigos e discípulos próximos tentavam consolá-lo na hora da morte, dizendo-lhe: “— Mestre, fique tranquilo, vá embora feliz porque os seus discípulos estão aqui para defender o seu legado”, ao que Hegel lhes respondeu: “— Nenhum dos meus discípulos me compreendeu, menos um, que me compreendeu mal.” A insatisfação de um dos grandes filósofos de todos os tempos com o seu próprio produto intelectual, concebendo-o como sistema incompleto, transforma a dúvida em um pressuposto metodológico. Lenin, baseado neste entendimento, defendeu que quando se colocava materialismo e idealismo em contradição “absoluta” estar-se-ia adotando uma opção metodológica mecanicista, que descartava – sem rigor – as descobertas dos grandes filósofos não materialistas dos últimos séculos.
Hegel estruturava a sua filosofia dizendo que era a “ideia” (“espírito”) que fazia o tempo e a história: sem a “ideia”, o tempo e a história não existiriam. Depois Hegel deu outros passos, sustentando que a história se movimentava através das mutações que o espírito universal (a ideia universal) sofria no tempo. Com os movimentos no tempo, o “espírito” assumia – em cada época – um papel constituinte da realidade: as instituições, as relações entre os grupos e entre as pessoas, as relações da sociedade civil com o Estado, existiriam fundamentalmente pelos “movimentos” da ideia.
Hegel foi mais adiante à busca de um sistema filosófico completo, mas ao final, sentiu-se desentendido. Bloquear a filosofia, como fez Mussolini, seria um recurso primitivo, mas forte, para fixar o mundo na sua imediatidade, fazendo as pessoas desistirem da busca de qualquer sistema que, ainda que incompleto, poderia obter sucessivas aproximações com a verdade. Hegel dizia que, quando a ideia se movia e mudava, ela seria a expressão da razão e que, como os seres humanos são racionais, eles compunham as suas “ideias” a partir do presente histórico. Estas ideias se projetariam nas relações sociais e no tempo histórico informadas pela razão, que assim se identificaria com o próprio progresso da liberdade.
Então, para Hegel, a razão fazia a projeção da ideia universal no tempo e – nas suas mutações – perseguia e, ao mesmo tempo, desenvolvia o progresso da liberdade. É muito importante guardar essa ideia hegeliana – da razão como impulso ao progresso da liberdade – pois, por ela, veremos como a ideia se processa e interage com outros fatores de “base”, com a sociedade burguesa industrial-mercantil, que se torna moderna de “mãos dadas” com o pensamento hegeliano.
A filosofia de Hegel, todavia, pretendeu identificar a realidade com o conceito, o que estabeleceria uma identidade do real com o próprio conceito, desta forma, secundarizando a “práxis” como força decisiva para constituir o real. Um episódio na vida de Hegel ilustra esta formulação da razão como movimento predominante da ideia para a construção da liberdade. Quando em Jena o filósofo vê Napoleão atravessando uma ponte para visitar a cidade ocupada, ele escreve uma série de fragmentos, em um deles condensado no seguinte: “Eu vi o imperador a cavalo, eu vi a razão do cavalo!”. A sentença literal é a seguinte: “Vi o imperador, esta alma do mundo – cavalgar através da cidade para fazer seu reconhecimento: é realmente um sentimento maravilhoso a vista de tal indivíduo que, concentrado aqui num ponto, sentado sobre um cavalo, abraça o mundo e o domina”.
O “espírito” universal que já estaria entranhado, fortemente, numa parte mais evoluída da sociedade europeia, encontraria em Napoleão a sua melhor síntese. Quem atravessava aquela ponte, em Jena, a cavalo, era o espírito universal no tempo, através da figura individual de Napoleão, o líder que gerou, pela guerra, as bases de legitimação do Estado do Direito Moderno que vai compor a sociedade europeia.
O período hegeliano de “reconciliação com a realidade”, todavia, ocorre quando o filósofo capitula da sua complexa abordagem do mundo, em face da objetividade histórica do Estado Burguês concreto, concluindo que ali estava – em si mesma – a razão em sentido pleno: a razão chegaria ao sentido final do progresso já como máximo de liberdade. Trata-se do que Fukuyama, em certo sentido, como filósofo do Departamento de Estado dos EEUU – portanto, com outros interesses e compromissos – vai apontar nos anos 80 como o “fim da História”.
Gramsci é um filósofo da ação política, mas não um assassino da razão que enterra a filosofia, como Mussolini, um “idealista” no sentido contrário ao idealismo de Hegel. Gramsci é um filósofo de “partido”, que pensou a história italiana e o proletariado moderno e suas raízes culturais a partir do Renascimento, atento à complexidade da formação Estado Unitário na Itália que se afirmaria na 2ª Revolução Industrial.
Gramsci, durante os mais de 10 anos na prisão, onde escreveu suas famosas “Cartas do Cárcere”, examinou as questões mais simples e diretas da vida cotidiana e as mais complexas da cultura e da história italiana, a partir do que designava como “filosofia da práxis”. Seus textos se reportam aos camponeses, à produção e cultura capitalistas e à vida urbana. Comentou sobre as diferenças entre os pensadores modernos da política italiana e a Revolução Russa, buscou entender e separar o que designava como “senso comum” e “bom senso comum”. Gramsci buscava, na materialidade da produção e nas esferas culturais de subjetividade nacional-popular, como se promoviam, venciam e morriam as “ideias”.
Num diálogo com a filosofia de Benedetto Croce (1866-1952), que já antecipava a visão burguesa do Estado de Direito na Itália, em conformidade com aquela “reconciliação com a realidade” de Hegel, Gramsci fez uma crítica ao que se designava, à época, como “crise da ideia do progresso”. Ao se debruçar sobre a “ideia” que as classes, os indivíduos e os grupos sociais faziam de si mesmos – já com uma visão crítica ao pensamento hegeliano – Gramsci fez a seguinte formulação: “A crise da ideia de progresso não é uma crise autônoma, vinda de uma ideia que está simplesmente circulando na humanidade, mas é uma crise dos portadores dessa ideia”. (versão livre)
Os “portadores” da “ideia de progresso”, que estavam na vanguarda política da sustentação da ideia de “crise”, eram os modernos capitalistas italianos e europeus, que entendiam – na verdade – que as bases teóricas e práticas do progresso estavam sendo bloqueada pelas lutas dos movimentos operários e camponeses, que então ocorriam em toda a Europa. Como resposta à crise, parte deles aderiu à ideia mussoliniana de que, para derrotar o ideal democrático revolucionário – que em certo sentido e medida era herança da Revolução Burguesa-, seria preciso aceitar a sentença de que a “ação enterra a filosofia”.
Para Gramsci, a falta de consenso sobre as formas de dominação burguesa é que geravam a crise da ideia de progresso na modernidade. Pois esta crise era um artifício ideológico adotado pelos intelectuais das classes dominantes italianas, destinado a recusar uma outra “ideia de progresso”: a que estava mais além das estreitas ideias contidas nas festejadas e fumegantes chaminés das fábricas de Turim e Manchester. Segundo Gramsci, a instabilidade das formas da dominação burguesa é que bloqueava tanto a democracia, quanto o progresso.
Indo mais longe, Gramsci afirmava que aquela ideia de crise era uma ideia do bloco que exercia a hegemonia sobre o sistema do capital, que era uma espécie de natureza a ser dominada pelos portadores de uma nova ideia de progresso, através do socialismo. Os privilegiados, segundo Gramsci, não compreendiam a sua própria superação e a petrificação do sistema político em que viviam, acossados pela rebelião de outros grupos sociais considerados “inferiores”.
Neste contexto do roteiro histórico da “ideia da liberdade” outras indagações começam a ser feitas, já na perspectiva de um novo Estado Democrático de Direito, com direitos dotados de pretensão de efetividade, tanto pelo socialismo soviético, como pelo estado liberal democrático no Estado Social de Direito, este que seria o patamar mais alto do “espírito” como parteiro definitivo da liberdade na modernidade.
Na conformação do estado burguês concreto merece uma referência o legado de outra grande figura filosófica, a par da figura de Hegel. Refiro, como já apontei anteriormente, a Kant, outro grande “idealista” que diz sobre a necessidade de entender a realização da liberdade, como ideia, em dois níveis: a ideia da liberdade como “deveres”, dentro do direito; e a ideia da liberdade como virtude ética, não indiferente, mas paralela ao direito.
Assim Kant formula de maneira sistemática o seguinte: deveres como normas devem ser regrados pela lei, já os deveres éticos, que são regidos pela virtude, não aceitam a heteronomia que ordena de “fora da consciência”. Kant diz que os deveres éticos só devem responder a uma questão: qual é a sua finalidade? Assim o faz, porque os deveres da ética – para ele – são só compreensíveis pela sua teleologia, ou seja, através do que os deveres éticos orientam como finalidade. Exemplo: um cidadão comum que se aproxima do Estado para exercer – como seu servidor – aquilo que supõe ser “virtude” (cujo conceito não está regulado juridicamente). Isto é fundamentado na interioridade ética do próprio sujeito. Ao participar do funcionalismo e dos deveres estatais que lhe são próprios, o cidadão que fez a opção de ser agente público está se relacionando, com a sua opção de ser “virtuoso”, a esse serviço como finalidade, mas fazendo-o subordinado às regras do Estado. Assim, vendo nestas normas a capacidade de acolher esta finalidade: um acolhimento da virtude. Se o cidadão tem como finalidade ganhar a vida de forma virtuosa através do serviço público, esta finalidade não é regulada por ninguém. Ela vem da sua consciência, pois, se alguns se aproximam do Estado para tirar proveito pessoal (contra o interesse público), ele o faz por virtude, aceitando – a partir daí – as ordens, aliás, reguladoras que “vêm de fora”, heterônomas, portanto. A ética informa a teleologia dos seus atos, pois o seu impulso virtuoso não é regulado, só aceita uma ordem exterior por decisão da virtude, que por finalidade se comunica com a lei. Aqui, virtude e dever se entrelaçam de forma harmoniosa.
Na ideologia política que vem da Revolução Francesa e na composição jurídica da noção da cidadania – como no Estado Social – estão entrelaçados liberdades, deveres e virtudes, embora estas possam se neutralizar, reciprocamente consideradas, nos limites das formas jurídicas do Estado Moderno.
Aproximando-me, adianto: a evolução do direito e os fundamentos da “práxis” na modernidade mostram que é impossível separar ética e ideologia, virtude e interesse. A ideologia contém um sistema de valores que organiza uma constelação axiológica, que influencia os atos humanos não automáticos, já que a ética não é “retratada” diretamente no dia dia-a-dia da vida comum, mas é vulgarizada na sociedade como moralidade dominante, construída a partir das vigências fáticas: relações interindividuais e relações entre classes e grupos sociais, compostas por indivíduos “livres”, que vão formando o modo de ser subjetivo do indivíduo na comunidade, a partir das suas pulsões e necessidades.
O ser subjetivo da cabeça de um trabalhador fabril está orientado pela teleologia do trabalho na fábrica, que incide sobre ele como força heterônoma; já a cabeça do acionista daquela mesma fábrica está orientada, teleologicamente, pelo máximo proveito a ser tirado de um recurso investido no negócio da empresa, que ele constituiu a partir de certa previsibilidade de rendimento, dentro de um ideal comum de vida moral, no espaço social ao qual pertence.
São “cabeças” com ideologias diferentes entre si, que se formam partir de facticidades diferentes, cujos interesses e pulsões são mediadas por relações sociais e por infinitos fatores exteriores, originários da vida material de todos que, para produzirem – cada qual em seu lugar (social) – certos bens e negociarem a compra e a venda da força de trabalho, integram nas suas decisões, moralidade, convicções éticas e automaticidades.
As mediações permitem que as facticidades da vida, como experiências individuais, cheguem a uma forma de consciência mais racional (ou fiquem “depositadas” no inconsciente) e assim se constituam como o “núcleo duro” dos hábitos, relações e contratos, que vão se apresentar por inteiro no direito moderno. Este processo é configurado como um conjunto de normas sociais dentro da sociabilidade espontânea, ou declarado como sistema de normas jurídicas, que no seu conjunto vão moldar o sentido da vida comum.
A base fática que força os movimentos da “razão” em direção à liberdade efetiva no capitalismo moderno, encontra seus limites nas normas que sujeitam a capacidade de intercâmbio entre os proprietários e as pessoas livres da servidão. Para a compra da força de trabalho, no exercício das liberdades subjetivas de cada um, a opção do trabalhador por alternativas contratuais que aumentem seu grau de liberdade é reduzidíssima.
As relações de compra e a venda modernas vão adquirindo, assim, mais complexidade e autonomia, separando-se da base de acumulação material geradora de riquezas, tornando-se uma parte significativa que Hegel tratou quase misticamente como (agora novo) espírito universal no tempo. O dinheiro, então, se desloca dessa relação de intercâmbio mais simples, no cotidiano, e se afasta da realidade da vida econômica até se tornar uma força heterônoma, “de fora”, a coagir a vontade livre dos indivíduos.
O momento superior dessa alienação é o desaparecimento material da moeda, como sinalizador das trocas, que se transmuda em sinais eletrônicos de uma inteligência artificial. É quando o dinheiro abstrato começa a gerar formas de acumulação próprias, voltadas a alterar aquela facticidade originária, que impulsionava a evolução da liberdade, concebida por Hegel, especificada na economia política clássica: a identidade dos sujeitos das relações de produção passa a ser configurada nas relações do mercado total, subsumida no domínio totalitário do capital financeiro.
Como entender isso sem a filosofia? O sistema do capital precisa da liberdade de contratar e do reconhecimento recíproco entre os sujeitos, como facilitador dos contratos, que só funcionam porque protegidos e garantidos pelo sistema normativo inspirado na ordem constitucional. O próprio Estado Social que emergiu como uma força normativa superior, originária do Preâmbulo da Constituição, neste processo, foge da influência do poder constituinte – cuja racionalidade estava contida no progresso “liberal” da liberdade – para se transformar numa segunda natureza do “espírito universal no tempo”. Nesta “segunda natureza” está a nova racionalidade neoliberal da jurisprudência do sistema jurídico democrático, já sob o controle do capital financeiro.
A movimentação da “ideia” na História é forjada na subjetividade social difusa, a partir do que a vida material informa a toda a vida comum: das profissões, das relações comerciais, da vida cotidiana em geral, da vida amorosa virtual do mercado dos afetos, da vida dos cartões de crédito e dos pagamentos dos juros: a vida por inteiro começa a girar em torno da constelação do dinheiro, que passa a comandar e a limitar todas as condições para viver o “dia a dia”, com pouca efetividade das liberdades concretas.
Este reconhecimento dos sujeitos livres para contratar, como característica central das liberdades “liberais”, todavia, não pode ser depreciado. Em determinadas formulações mais economicistas e mecânicas da interpretação da realidade social e do direito, esta realidade subjetiva é tratada como se fosse simplesmente uma “escravidão” assalariada. Não é vista, também, como uma “tendência” que pode ser revertida e redirecionada, segundo os impulsos dos sujeitos políticos contratantes, (nas relações de mercado e nas relações da política) que vão “tratando” da vida comum, de forma agrupada ou individualizada. Só o fascismo, com a perversão da filosofia em teoria pura da ação (pregado no empirismo da violência contínua) pretende tornar a “tendência” um destino absoluto.
Quando os direitos da cidadania são direitos só do cidadão que tem condições de participar das classes orgânicas da dominação, como trabalhadores “formais”– sobretudo a partir do impulso dos seus movimentos organizados – ele pode passar a dizer o seguinte: “eu sou cidadão até chegar à porta da fábrica, mas se eu passo o portão, então deixo de ser cidadão; porque vendi a minha força de trabalho, por força de um contrato; e, por isso, estou submetido à automaticidade do processo produtivo, pelo qual a minha vontade subjetiva não é mais nada: não sou um cidadão lá dentro, sou apenas uma peça do sistema de produção.”
A partir desse impasse a democracia liberal está numa encruzilhada, cultural e política, e seus epígonos mais intelectualizados transformam a necessidade da produção capitalista, na era dominante do capital financeiro, em virtude. Como? Criam a doutrina ilusória da liberdade de contratar, construindo a teoria do “empregado de si mesmo”. Ali – se cativado –, o trabalhador concreto volta-se para o economicismo da social-democracia neoliberal ou parte para buscar a reinvenção de outro modo de vida social: outra ideia de social-democracia que, para vingar como ideia coletiva, deve gerar outras formas imaginaria de emancipação.
Este cidadão, que tem uma grande importância como produtor de mercadorias, é obrigado – como milhares – a sacrificar-se e se alienar nos protocolos “automáticos” do processo de produção capitalista da 2ª revolução industrial, que lhe domina pela rotina e pela doutrina do capital nos espaços culturais que ele frequenta: o mercado da mercadoria material e o mercado imaterial da informação. Mas o que ele aprende nos espasmos de consciência que a vida lhe traz, pode se voltar contra as limitações da alienação na sua cidadania mercantil programada “de fora”, como se estar no mercado fosse a “virtude”.
Na República de Weimar tivemos experiências análogas importantes, destas perdas e ganhos mais contemporâneos, bem como nos movimentos de maio de 68, que foram considerados movimentos revolucionários na ótica de um grande contingente de intelectuais do século passado e dos estudantes, seus principais protagonistas, mas não na ótica dos trabalhadores.
Quando em maio de 68 os estudantes chamavam os operários para a “revolução”, estes respondiam o seguinte: “Olha, o nosso problema aqui é mais concreto, nós queremos participar dos grupos gerenciais e ter comissões de fábrica, porque não somos nem cidadãos aqui dentro.”. Este fato histórico é um exemplo emblemático de como a efetivação da liberdade, como suposto desdobramento da liberdade pela razão, consegue criar modulações, no funcionamento do sistema do capital e entranhar normas, dentro de um sistema constitucional mais abrangente, como no Estado Social.
A crise do Estado Social, portanto, é também a crise do sistema democrático-liberal representativo, pois as “coisas” já não “combinam” mais. O sistema liberal representativo já está modulado, em última instância, não pelas intenções da liberdade buscada pelo espírito, mas pela força do dinheiro universal, emitido já sem riqueza material que lhe dê sustentação. De outra parte, a democracia liberal resiste no sistema constitucional moderno, nas doutrinas constitucionais e nos seus Preâmbulos, mas a sua trama normativa está cada vez mais fragmentada e contraditória, com anomalias genéticas que podem levar à implosão da democracia política contemporânea.
Passemos a verificar como é que se alteram essas relações, entre os sujeitos negociadores, dentro das classes trabalhadoras que formam um dos polos fundamentais da sociedade democrática. Ao contrário do que ocorre com a força de trabalho em abstrato, a força de trabalho concreta é formalmente uma mercadoria e o seu preço está relacionado com a possibilidade da compra mais rentável, por parte dos donos dos meios de produção; e igualmente relacionada à venda mais favorável, por parte dos “donos” da força de trabalho, os trabalhadores por conta alheia.
As relações fáticas que determinam estas contratualidades, sejam mais (ou menos) avançadas, mais (ou menos) conciliadas, estão sempre presentes para o trabalhador concreto, individualizado, que começa a querer se negar como mercadoria, quando reage a essa “liberdade contratual”. É o momento em que ele se apresenta perante os tomadores dos seus serviços com a vontade subjetiva de derrogar a “naturalidade” das leis da oferta e da procura. Assim, ele diz o seguinte, por meio dos seus representantes sindicais: ” — Olha, esse salário é insuficiente e eu quero que os meus direitos de cidadania entrem fábrica à dentro; para isso precisamos estabelecer negociações coletivas que afirmem direito superiores aos que são reconhecidos pela lei”.
Assim se instala a diferenciação das pulsões -imprimidas pela automaticidade da vida cotidiana-, entre trabalho abstrato e trabalho concreto, como ideias potenciais que produzem mais liberdade. O trabalho abstrato é a massa de trabalho prestado por uma comunidade universal de prestadores que não tem identidade interna formal; o trabalho concreto é prestado por indivíduos ou comunidades identificáveis, em determinados ramos da produção ou de serviços, que podem adquirir consciência unitária das suas necessidades e que, portanto, começam a impugnar a ordem jurídica que os reconhece apenas a partir do “progresso (ideal) da liberdade”, que vem de Hegel.
O direito da sociedade industrial burguesa reconhece a liberdade dos contratantes para comprar e vender uma mercadoria. O movimento de negação do trabalhador, que quer deixar de ser “pura mercadoria”, vem da sua força física e intelectual na relação de trabalho da qual participa. É quando ele já está, ali, consciente de que é uma mercadoria (e quer negar-se como tal) e então rejeita a imediatidade passiva, para dizer: “quero uma sobrevalorização desse trabalho, porque sou um ser humano e tenho vontade de progredir, tenho vontade de consumir mais, tenho vontade de contemplar mais as minhas necessidades”. Isto não é pouco. Comparemos o trabalhador concreto, dentro da fábrica concreta da 1ª revolução industrial inglesa, com os trabalhadores de hoje e veremos que há, entre eles, uma diferença abissal no exercício da contratualização regulada do trabalho.
Hoje, todavia, já no fim da supremacia do mundo do trabalho industrial, os avanços desta regulação – de lá até os anos 70 do Século passado – são corroídos e substituídos por um conjunto de relações interempresariais, relações de cooperação em rede (entre empresas) e relações transversais entre categorias profissionais, que vão diluindo a sua força política e sindical. Tal fato histórico universal é uma decorrência necessária das próprias transformações tecnológicas que fazem a substituição do ser humano como produtor direto, pela inteligência artificial conectada em redes (para a produção das mercadorias em série e dos protótipos) em volumes superiores, mas de qualidade duvidosa no que refere aos bens de consumo duráveis.
Este progresso é absorvido como lucro e renda pelo sistema do capital e, em regra, com baixa capacidade de redistribuição. Se formos examinar as conquistas científico-tecnológicas atuais, com a capacidade de produção instalada no mundo, veremos que – pela primeira vez na história – poderíamos pôr fim à carência de pessoas e sociedades. Estas conquistas, todavia, foram apropriadas, novamente, de cima para baixo e as classes trabalhadoras e subalternas cresceram na sua pobreza relativa.
As consequências jurídicas deste processo são importantes, pois através do que elas resultarem, no plano da regulação jurídica, é que vamos perceber que ocorre, paralelamente ao processo de especialização da legislação, uma fragmentação das normas infraconstitucionais. Ela apanha desde as questões ambientais, sexuais, de gênero, relacionadas à cultura, à vizinhança, até as relacionadas com a vida comum e com os direitos subjetivos individuais. Este novo “modo de ser” do direito escrito cria, abaixo da norma constitucional, uma irracionalidade legiferante que, ao fim e ao cabo, tem pouco a ver com a própria efetividade da Constituição.
Na verdade, se as leis fossem obrigadas a se reportarem aos fundamentos da Constituição, grande parte dessa legislação seria impertinente e tenderia para a declaração da sua inconstitucionalidade. O direito fundamental ao trabalho, por exemplo, cuja tutela está sendo fragmentada por uma série de leis que não tem conexão com os direitos constitucionais do mundo do trabalho, é um exemplo do anarquismo legal do neoliberalismo.
A visão tradicional da doutrina filosófica positivista e neopositivista, de que existe uma “profunda constitucionalização” da vida social e da vida do Direito, é equívoca: ela só ocorre na cabeça dos seus doutrinadores. O que existe, na verdade, é um deslocamento da regulação das atividades humanas, das formas de relacionamento no trabalho – na exploração e na cooperação entre os homens – que estavam assentados na Constituição, para as necessidades práticas da valorização do capital, segundo as exigências da economia política clássica. O Estado Constitucional, que começa no Preâmbulo da Constituição, sofre então bloqueio intransponível: a totalidade social orgânica que ele pretendia regar, por mandato constituinte, fragiliza-se num deserto de fragmentos contraditórios.
A pretensão metafísica de constitucionalização do estado como Estado Constitucional é, na verdade, irreal como força originária da liberdade vinda do espírito, pois a fragmentação da legalidade e o surgimento de novas problemáticas que não estavam contempladas nas visões do Direito e do Estado originárias do século passado, sobrepõem-se à vocação do Estado Constitucional. Esta vem sendo derrotada, ora por reformas específicas que fragmentam cada vez mais o sistema legal, ora pelo avanço da “ação que enterrou a filosofia”, dos movimentos autoritários fascistas, que destroem o Direito e a frágil identidade subjetiva da cidadania democrática.
Essa é a crise do humanismo revolucionário originário das grandes revoluções do século passado, particularmente, como a Revolução Francesa, que erige a razão – em última análise – à condição de fio condutor da composição da liberdade. Ela termina numa grave redução da liberdade contratual, com relações sociais que já são inteiramente outras. E esta é, também, toda a crise da democracia liberal do Estado liberal democrático, que asfixiou o próprio Estado social que dele derivou.
A categoria filosófica que vem de Hegel (“totalidade”) atravessa a filosofia moderna através de Marx e chega aos melhores pensadores do “porquê estar aqui?” (Para quê vivo? O que quero da vida? O que pretendo empreender no futuro? Que tipo de mundo almejo para os meus semelhantes?). Contudo, a busca das respostas não é mais uma abstração filosófica, mas sim a filosofia tornada vida política e cultural, para enterrar a “ação” que quer enterrá-la.
A ordem que nos une formalmente interrompeu o ciclo da razão como afirmação da liberdade, pois essa se congelou na liberdade contratual e, também, no bloqueio do Estado Social. Não se expandiu com o acolhimento das liberdades, que permite que as pessoas formalmente iguais em direitos possam ser iguais para buscar a felicidade dentro paz. O sentido da razão hegeliana está bloqueado pela forma adquirida pelo Estado de Direito no sistema do capital, que a crítica do constitucionalismo moderno não resolverá. Essa crise é, pois, tanto dos portadores de uma ideia da razão, ora configurada como hegemonia, como também da velha razão iluminista, enfraquecida pelo ascenso do fascismo. Este, pretendendo enterrar a filosofia, sepulta a liberdade e proclama a escravidão e a morte.
Bibliografias para estudos de apoio do presente texto:
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