A exploração de carvão no Rio Grande do Sul é um tema muito antigo. Remonta ao início do século XIX, com a vinda dos primeiros naturalistas que relataram a ocorrência de carvão mineral no sul do Brasil. Estudos para a sua mineração foram feitos desde então. Uma das primeiras minas que se tem notícia nessa região foi inaugurada pelo Conde d’Eu, casado com a Princesa Isabel. Fora determinado que a mina devesse ser subterrânea, para não gerar impactos na paisagem. Desde os trabalhos pioneiros de Eschwege, feitos em 1810, havia proposições de que esse carvão pudesse abastecer os mercados tanto do Rio de Janeiro como de Buenos Aires. Prenúncios, desde então, de um negócio bastante promissor.
Essa ideia permaneceu no imaginário sul-rio-grandense. A história da exploração de carvão está repleta de promessas não realizadas. O carvão mineral ocupou por várias vezes o carro-chefe de governos estaduais para ‘impulsionar a economia e o desenvolvimento’. Nos anos de 1980, por exemplo, além do carvão, também foi incluído o ‘xisto betuminoso’. Mas a realidade sempre se impôs às especulações mal fundamentadas. O carvão gaúcho não apresenta propriedades tecnológicas a partir das quais possa impulsionar de fato o desenvolvimento econômico que os mineradores recorrentemente anunciam. Tanto é que, ao longo do tempo, os grandes projetos não saíram do papel e a exploração hoje existente fica em torno de oito milhões de toneladas por ano (Mton/ano). Deveríamos nos perguntar: fosse realmente um negócio atrativo, por que razão até agora não decolou, em que pese os gordos orçamentos já investidos pelo Estado nesse setor?
A verdade é que a exploração de carvão recebe subsídios federais, o que torna possível manter essa mineração de carvão de baixo poder calorífico. Mais recentemente, vimos outra vez espocar nos jornais a notícia de que o carvão salvaria a crise econômica estrutural do Estado. Com essa promessa já há muito desgastada e com uma nítida face de engodo, propõem agora um projeto de abertura de uma mina de carvão no coração da região metropolitana de Porto Alegre, denominado de Projeto Mina Guaíba, para ‘salvar a crise energética’ do Estado.
Todo esse discurso encobre, na verdade, o custo dos impactos ambiental, social, econômico, além da saúde, para se instalar uma pretensa mina a 2 km do rio Jacuí, a 500m Parque Estadual Delta do Jacuí e a apenas 16 km do centro da cidade de Porto Alegre. Ao longo desse texto, pretende-se demonstrar como esse projeto, submetido aos órgãos de licenciamento ambiental pela mineradora Copelmi, é uma grande ameaça de contaminação da água de várias cidades da região metropolitana, podendo colocar em situação de emergência a capital do Estado, Porto Alegre.
Um vizinho mais do que inconveniente: agressivos impactos ao ambiente
O projeto prevê a instalação de uma mina de carvão a céu aberto em uma área de 4.373,37 ha, com cava de 110 m de profundidade, no limite dos municípios de Eldorado do Sul e Charqueadas, para explorar 166 milhões de toneladas (Mton) de carvão e 47 Mton de cascalho e areia ao longo de 23 anos. A área prevista pelo projeto é quase do tamanho de toda região norte de Porto Alegre, aproximadamente um polígono de 8 km x 4,2 km.
O carvão mineral é muito diferente do carvão vegetal, utilizado nas churrasqueiras. O carvão de pedra se forma ao longo do tempo geológico e é uma espécie de lixão químico. Pode conter nada menos de 76 elementos da tabela periódica e costuma conter, como no caso do carvão sul-rio-grandense, grande quantidade de enxofre. Por isso, uma mina de carvão impacta de forma agressiva todos os componentes do ambiente: solo, água, ar, fauna, flora e a sociedade. Essa mineração também causa impactos simultaneamente em todas as escalas: local, regional e planetária. Ela se constitui na mais agressiva mineração que se tem notícia, de sorte que, na literatura mundial, diz-se que não há mina de carvão limpa, pois é tecnicamente impossível evitar todos os danos que produz. No caso da pretensa Mina Guaíba, ela afetará três grandes patrimônios que temos na Região Metropolitana: o patrimônio hídrico, representado pela formidável confluência dos rios Jacuí, Caí, Sinos e Gravataí no Lago Guaíba, onde se acumula nada menos de um quilômetro cúbico de água doce. Um tesouro que devemos proteger com todas nossas forças. O patrimônio ecológico, representado pelo Parque Estadual do Delta do Jacuí, refúgio da fauna e flora ao lado de nossas grandes cidades. É um santuário ecológico que cumpre importantes funções ecossistêmicas e para a qualidade de vida. Por fim, o patrimônio humano e cultural, representado pelas nossas cidades metropolitanas onde vivem cerca de 4,6 milhões de pessoas.
É possível existir uma atividade que possa impactar simultaneamente todos esses patrimônios ao mesmo tempo? Sim, uma mina de carvão que pretendem situá-la a apenas 16 km do centro de Porto Alegre. Vamos aos detalhes. O carvão mineral possui muita quantidade de enxofre, que, quando exposto ao ar livre e à água da chuva, reage produzindo ácidos. A água fica tão ácida que acaba dissolvendo os metais pesados, como Pb, Be, Cd, Mn, Cu, Mg, Hg, entre outros. Assim, esses perigosos contaminantes poderão alcançar a água do Jacuí e chegar aos pontos de abastecimento de água potável das cidades metropolitanas. Além disso, esses metais pesados contaminarão as áreas alagadiças, onde há plantio de arroz e inúmeros sítios. Agora veja: o arroz tem a propriedade de ser um acumulador de cádmio. Assim, o arroz produzido nessa região poderá ficar contaminado com cádmio. Também todo santuário do Parque Estadual do Delta do Jacuí ficará contaminado, toda a fauna e flora. E essa contaminação é bioacumulativa, isso é, se agrava com o tempo.
Se isso por si só não bastasse, as condições do contexto hídrico não favorecem a diluição de efluentes contaminantes descartados no Jacuí. Esse rio aflui para o Delta do Jacuí, que, por suas características geológicas e hidrodinâmicas, é por excelência um sistema de concentração de água e decantação de argilas e poluentes. Justamente as argilas são aquelas que portam substâncias contaminantes presentes na água, como metais pesados, por sua capacidade de adsorção química. Além do Delta, também no lago Guaíba ocorre retenção e decantação de partículas sedimentares finas, concentradoras de poluentes. No primeiro sistema de concentração, o Delta do Jacuí, situa-se uma unidade de conservação da fauna e da flora e, nos canais deltaicos, há captação de água para abastecimento de cidades, entre as quais, as estações Navegantes do DMAE/PMPA e da cidade de Canoas. No outro, no lago Guaíba, também há captação de água para cidades como Porto Alegre, por meio da Estação Praia de Belas, e Guaíba (ver Figura abaixo).
Localização da Mina Guaíba e pontos de captação de água dos municípios de Porto Alegre, Canoas e Guaíba nos canais do Delta do Jacuí e no lago Guaíba. [Fonte: Possantti & Menegat, 2019.)
Impactos sociais e humanos por todos os lados
Os impactos à sociedade também são inúmeros. Primeiro devemos seriamente considerar que essa pretensa mina não se instalará em um lugar vazio. Naquela área, há agricultores que produzem grande quantidade de arroz orgânico, entre outros produtos agrícolas que abastecem a região metropolitana. Há também inúmeros sítios com belas paisagens, com rica fauna e flora e arroios. Para instalar a mina, deverão remover todas as pessoas que têm suas economias baseadas na agricultura, além de desviar dois importantes arroios. Então, a mina irá destruir economias e empregos já existentes. Em segundo lugar, haverá grande impacto à saúde dos moradores de toda a região do entorno e da Região Metropolitana. Nada menos de 4,6 milhões de habitantes. Calcula-se que o impacto na saúde de uma mina de carvão seja da ordem de 9,5 dólares por tonelada. No caso do projeto da mina Guaíba, serão explorados 166 milhões de toneladas de carvão. Então. Quem vai pagar esse custo? Poderá o já lotado sistema de saúde da região metropolitana suportar essa demanda? Evidentemente que não. O EIA-Rima do minerador, que se jacta ao afirmar que o documento tem cerca de seis mil páginas, sequer analisou seriamente esse brutal impacto na saúde.
Por fim, haverá um impacto econômico em Porto Alegre que precisa ser bem dimensionado. Na medida em que se acumulam os problemas ambientais e de saúde, as pessoas irão sair de Porto Alegre e tampouco os turistas vão querer visitá-la. Ora, Porto Alegre é uma cidade de serviços, com seu próprio charme, capaz de ser atrativa. Não por acaso, sediou jogos da Copa e anualmente se realizam inúmeros congressos e convenções, atraindo milhares de pessoas. Porto Alegre é também um dos mais importantes centros de tratamento de saúde da América do Sul, em especial em doenças respiratórias. Quem vai querer visitar uma cidade impactada pela mineração de carvão? Ninguém. Então haverá reflexos negativos na economia de Porto Alegre, principalmente aquela relacionada com as redes locais endógenas, tão importantes para a sustentabilidade. Mas, os impostos dessa pretensa mineração ficarão nos municípios de Charqueadas e Eldorado do Sul. Quem vai pagar os prejuízos que essa mina causará na Região Metropolitana?
A inconsistência técnica do EIA-Rima
O EIA-Rima apresentado pela Copelmi ao órgão ambiental do Estado, a FEPAM, contém uma série de contradições e chamou a atenção de toda comunidade técnica sul-rio-grandense, em especial da região metropolitana. Um comitê de técnicos com mais de 60 participantes debruçou-se sobre esse documento e em todas as especialidades analisadas foram demonstradas inconsistências. É um documento que não se sustenta tecnicamente. O projeto pretende instalar uma mina e lançar efluentes contaminados na água que abastece Porto Alegre, Guaíba, Eldorado do Sul e Canoas. O lançamento de efluentes acontecerá a tão somente 20 km dos pontos de captação de água. É lógico que haverá contaminação dessa água, ainda mais quando consideramos que o tempo de funcionamento previsto no projeto é de pelo menos 23 anos.
Além disso, a exploração de carvão produz muito pó, também com contaminantes, que será espalhado pelo vento sobre nossas cidades. Tecnicamente, esse pó é denominado de material particulado (em inglês, particle material, cuja sigla é PM), fica suspenso no ar agregando-se aos domos de poeira que pairam sobre as grandes cidades. No inverno, se incorpora na cerração baixa. Essas partículas são muito danosas à saúde. A Agência Internacional para a Pesquisa do Câncer (IARC – International Agency for Research on Câncer) e a OMS (Organização Mundial da Saúde) incluem o material particulado como agente cancerígeno do Grupo 1. Essas partículas, tão finas quanto 2,5 micrômetros (30 vezes mais fina que o diâmetro de um fio de cabelo), ficam suspensas no ar e, ao serem inaladas, penetram profundamente no pulmão e passam diretamente para a corrente sanguínea, ocasionando infartos, doenças respiratórias e mortes prematuras. Então, é preciso reconhecer que haverá potencial impacto à saúde da população da Região Metropolitana.
Agora vejam: no EIA-Rima desse projeto, o minerador incluiu como área de influência indireta uma região que se situa a 50 km a sul do local previsto para instalar a mina. Essa região está a montante do local da mina, quer dizer, as águas contaminadas da mina não escoarão para lá. Possíveis ventos, claro, poderão levar poeiras contaminadas, mas não água. Então, como justificar tecnicamente que uma região distante 50 km da área da pretensa mina e situada a montante do escoamento da água seja considerada área de influência indireta (e de fato é), e a região de Porto Alegre, situada a apenas 16 km a jusante do lançamento de efluentes, não seja área de influência indireta?
Então podemos perguntar: porque não querem discutir o assunto com a população da Região Metropolitana, que justamente ficará com os maiores impactos negativos? Que passará a ser vista como região carbonífera, e turistas não mais desejarão visitá-la? Agora veja que contraditório: os municípios de Charqueadas e Eldorado do Sul ficarão com os possíveis impostos decorrentes da mineração; já os municípios metropolitanos, com os prejuízos do impacto e ameaçados por enorme risco de ficarem com a água contaminada. Somente podemos concluir que a exclusão da Região Metropolitana é claramente uma manobra política grosseira, tecnicamente indefensável, própria de quem não quer enfrentar um debate técnico sério sobre o assunto.
Está mais do que evidente que a Mina Guaíba oferecerá severo risco ao abastecimento de água da Região Metropolitana. Para agravar, temos que considerar que Porto Alegre não tem, no momento, reservatórios de emergência caso venha acontecer um acidente industrial na água do Guaíba. Se isso por ventura vier a acontecer – esperamos que nunca ocorra – a Capital poderá ficar sem água para abastecer sua população. É um brutal contrassenso colocar a Capital como refém desse empreendimento e sem receber em troca nenhum centavo. Isso significaria submeter a capital a uma impensável tensão em relação ao abastecimento de água e situações de emergência.
Lembremo-nos da Borregaard dos anos 1970, cujos causticantes odores emitidos por meio de suas chaminés localizadas na margem oeste do lago Guaíba deixavam a população de Porto Alegre, na margem oposta, em permanente estado de apreensão. Pois bem: devemos reconhecer que essa pretensa mina Guaíba é dezenas de vezes mais contaminante que aquela indústria de celulose, que já era indesejável. Minas de carvão são as mais agressivas que existem, pois degradam o ambiente durante muitas décadas. Basta ver a situação do ambiente dos municípios carboníferos de Santa Catarina. Por que então apregoar que essa mineração salvaria o Rio Grande do Sul? Que interesses estão aí envolvidos?
A falácia da crise energética
A Copelmi tem insistido que o “objetivo do projeto é viabilizar a política energética do Rio Grande do Sul”. Ora, essa é uma questão interessante. Veja: se para viabilizar certa ‘política energética’ devemos ser reféns de uma mina de carvão com potencial de produzir enormes danos ao ambiente e à saúde da população, de se fazer presente em nossas casas por meio de pó e água contaminados, então é evidente que essa política está equivocada. Ela é um claro paradoxo. Países como Alemanha e Inglaterra estão eliminando o carvão de suas matrizes energéticas. Estão substituindo por energias renováveis como a eólica e a solar. Estão tratando de tornar mais eficiente o consumo de energia. Essa é a política energética do século XXI: eficiência, diminuição de consumo, fontes renováveis, descentralização de sua produção.
O carvão, portanto, inviabiliza que o Rio Grande avance para patamares superiores das boas políticas energéticas e nos empurra para um passado que de longe já está superado. Além disso, políticas energéticas com base no carvão tenderão a diminuir o valor agregado de produtos que a utilizam para serem fabricados. Consumidores em todo o mundo rejeitam cada vez mais produtos fabricados com mão-de-obra escrava e por energias poluentes fósseis. Essa é uma clara tendência que aumentará no futuro próximo, e o mercado evitará produtos que se originam de processos que utilizam energias obsoletas, que causam enorme dano ao ambiente e à saúde. Na Inglaterra, importantes veículos de imprensa, como o jornal The Guardian, sequer aceitam publicidade de empresas que produzem energia a partir de combustíveis fósseis. Uma forma de mostrar a independência desses veículos de comunicação frente aos lobbies inerentes a essa poderosa indústria.
Mais ainda: devemos considerar que o carvão é o principal vilão da atual emergência climática de nosso planeta. Porto Alegre e a Região Metropolitana, por se localizarem em terras baixas, poderão sofrer as consequências da elevação do nível do mar previsto para até o final desse século, e, com ele, também do Guaíba, devido ao aquecimento global.
O uso do carvão não viabiliza nenhuma política energética. Ao contrário, nos traz enormes problemas energéticos. Para fazer frente aos impactos locais, regionais e planetários que seu uso promove, contraditoriamente nos empurra para aumentar o consumo de energia. Algo como a metáfora do cachorro mordendo seu próprio rabo.
Outra incongruência: a instalação de um polo carboquímico
Afinal, quem vai utilizar 166 Mton de carvão de baixa qualidade? O minerador tem oscilado em relação ao destino desse carvão. Ora afirma que se trata de resolver a ‘crise energética’, ora que será utilizado em um polo carboquímico. Contudo, esta última alternativa vem obscurecer ainda mais o projeto em curso.
Primeiramente, devemos dizer que não há ainda estudos dos impactos ambientais advindos da instalação de um polo carboquímico na região metropolitana. Então, como poderia haver o licenciamento da exploração de carvão se a indústria que irá consumi-lo não está dimensionada e tampouco inventariada em termos de possíveis impactos na economia, na população e no ambiente? Trata-se de uma incabível inversão dos fatores, algo como colocar a carroça na frente dos bois.
Mas, o que é de fato um polo carboquímico? A gaseificação do carvão, embora cientificamente conhecida há mais de um século, ganhou relevo a partir da construção de plantas carboquímicas na China na década de 2000. Trata-se de um processo químico industrial cujo objetivo é a conversão do carvão em syngas (synthetic gas, CO + H2).
Por sua vez, esse gás sintético produzido em alta temperatura e pressão pode ser utilizado para um segundo nível de processamento, crescentemente sofisticado em termos industriais, que inclui três rotas: a) síntese de álcool; b) hidrocarbonetos; e c) outros compostos oxidados de carbono. Um terceiro nível incluiria o ulterior processamento de álcool metílico e produtos derivados dos alcenos (olefinas, C=C).
Essa transformação do carvão em hidrocarbonetos e possíveis produtos derivados consome muita energia elétrica e água. Além disso, o carvão deve ter as devidas especificações técnicas para cada tipo de produto gerado no processo. Para tanto, faz-se necessários estudos tecnológicos específicos quanto à composição química do carvão e ao conteúdo da fração mineral. Para o caso da jazida Guaíba, tais estudos não constam na literatura técnica disponível, a ponto de assegurar que os processos químicos de transformação sejam executáveis dentre as possíveis tecnologias carboquímicas industriais disponíveis no mercado.
Agora vejamos a questão da viabilidade econômica. Ela diz respeito a uma matriz que deve considerar: a) os custos de produção da gaseificação do carvão consoante variabilidade internacional de preços de petróleo; b) a disponibilidade de gás natural no país; c) os impactos de um polo carboquímico na cadeia econômica local. Onde se encontram esses estudos?
Além disso, por seus elevados custos, a implantação de uma planta de gaseificação a partir do carvão somente é viável caso o petróleo tenha cotações internacionais acima de sessenta dólares americanos por barril. Do contrário, economicamente, é melhor utilizar o próprio petróleo, que já é um hidrocarboneto, para produzir derivados idênticos àqueles que se obteria nos processos ulteriores da gaseificação do carvão. Como o petróleo esteve com valores muito elevados no início da década de 2010, com cotações acima de US$100.00/barril, houve proliferação de plantas carboquímicas na China. Porém, nos últimos seis anos, o preço do petróleo despencou, chegando a cotações próximas a quarenta dólares, levando muita incerteza para o setor carboquímico. Essa tendência acentuou-se com o advento da pandemia da COVID-19, cuja recuperação econômica ainda não está no horizonte.
Como vemos, a carboquímica é uma indústria altamente relacionada às oscilações do petróleo e às cotações internacionais. Sua instalação requer um sólido investimento por parte do estado ao setor, cujos orçamentos inexistem tanto em nível nacional como estadual. As consequências de uma crise financeira de um projeto de tal monta pode colocar o Estado em uma situação de total colapso financeiro. Ou seja, um setor carboquímico requer integração com os setores petroquímicos e de produção e refino de petróleo e gás natural, dentro de políticas nacionais sólidas. Esta não é a situação da presente proposta de instalação de um polo carboquímico no Rio Grande do Sul, porquanto instada apenas por fatores locais, os quais, por sua vez, sequer foram planejados conforme a complexidade que esse setor exige.
Como sabemos, os investimentos para a instalação de uma planta carboquímica são grandes e podem variar da ordem de um a quatro bilhões de dólares. Em um setor altamente competitivo como o de hidrocarbonetos, uma planta carboquímica desenvolve-se em um cenário de muita incerteza, pois os processos de refino de petróleo e gás são cientificamente e tecnicamente bem mais desenvolvidos e conhecidos, tendo a preferência de investidores.
Na China, a opção por implantação de polos carboquímicos deu-se em um cenário em que o país precisa transitar de uma matriz energética quase totalmente à base do carvão para outra em que emerge o uso de gás a partir da gaseificação daquele bem energético. No caso brasileiro, tal transição não se faz necessária, porquanto a matriz energética brasileira é fundada em fontes hidrelétricas, com reforço para fontes alternativas como a energia solar e eólica. Dessa forma, é descabida a ‘importação do modelo chinês’ para a estrutura da matriz energética brasileira, que se encontra bem mais avançada do que a daquele país quando se trata de abandonar por completo as fontes fósseis, um imperativo cada vez mais urgente.
A Cátedra Unesco-Shell para Tecnologia de Gaseificação de Carvão alerta que os riscos da indústria química de carvão são altíssimos (Unesco/Shell, 2007). Isso porque exigem muitos recursos hídricos, entre outros, e desordenam as cadeias econômicas locais. Há também riscos elevados na lucratividade, pois a taxa de recuperação do investimento é superior a cinco anos e está diretamente vinculada à flutuação internacional de preços do mercado do petróleo e do carvão em nível nacional.
Considerações finais
O projeto de mineração de carvão no coração da Região Metropolitana de Porto Alegre, chamado de Mina Guaíba, é um contrassenso em todos os sentidos. É economicamente inviável, porque não poderá pagar os prejuízos à saúde, ao ambiente e ao patrimônio dos 4,6 milhões de moradores da região metropolitana. É socialmente injusto, pois afetará diretamente uma área com indígenas e agricultores e fará com que a geração de nossos filhos e netos tenha que arcar com um passivo ambiental sem retorno. É ambientalmente condenável, deteriorando nosso patrimônio hídrico e ecológico, representado pelo sistema do delta do Jacuí e do lago Guaíba, além de colocar o Rio Grande do Sul no mapa dos locais que impactam seriamente o clima planetário.
Devemos lembrar que o Guaíba é o destino dos porto-alegrenses e metropolitanos. Nossos organismos são compostos por 70% de água, esta que bebemos do Guaíba. Nós somos, portanto, o Guaíba: ele nos constitui. O que acontecer ao Guaíba irá acontecer conosco.
A Capital do Rio Grande não pode ser refém de um empreendimento como esse. Devemos olhar para frente, para os problemas do século XXI, que exigem energias limpas, água e ar saudáveis, e agricultura ecológica. As gerações atuais não podem ir para a história como aquelas que permitiram que a Capital e a região metropolitana fossem sitiadas por uma mineração de carvão a céu aberto, que nem no século XIX a Princesa Isabel ousou autorizar.