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Neoconservadorismo e a ameaça à democracia no século XXI por meio de fake news e shitstorms

Camilo Onoda Caldas

Advogado. Professor da EPD e da USJT. Pós-doutor em Democracia e Direitos Humanos (Universidade de Coimbra). Foi relator do Grupo de Trabalho do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania para apresentação de estratégias para o enfrentamento do discurso de ódio e o extremismo no Brasil. Autor da obra Teoria Geral do Estado, pela editora Ideias & Letras.

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Estudos indicam um crescimento da extrema direita nas últimas décadas ao redor do mundo[1], movimento que geralmente vem associado à ascensão do pensamento neoconservador. Este fato tem suscitado preocupações pois, muitas vezes, ambos têm se desenvolvido a partir de uma retórica hostil a diversas minorias, portanto, associando-se comumente ao discurso de ódio, o que tem desencadeado episódios de ações violentas contra determinados grupos minoritários, além de ameaças aos avanços democráticos dos últimos séculos. Mesmo que o modelo de democracia na atualidade possa ser considerado insuficiente e incompleto[2], o discurso de ódio e as hostilidades contra minorias e a diversidade constitui um retrocesso civilizatório, portanto, coloca em risco as conquistas humanitárias dos últimos séculos.

O cenário acima tem suscitado preocupações de governos locais e organismos internacionais. No Brasil, no início de 2023, após o fim do governo Bolsonaro, o Ministérios dos Direitos Humanos e da Cidadania criou um Grupo de Trabalho para apresentação de estratégias para o enfrentamento do discurso de ódio e o extremismo no Brasil[3]. No nível mundial, a ONU, em 2022, apresentou o relatório intitulado “Ataques terroristas com base na xenofobia, no racismo e outras formas de intolerância, ou em nome da religião ou crença”, no qual menciona que houve “320% de aumento de ataques conduzidos por indivíduos afiliados ao ‘terrorismo de direita’ entre 2014 a 2018, principalmente nos estados ocidentais”[4].

Nesse contexto, abordamos nesse artigo a ascensão do novo conservadorismo, destacando seu uso estratégico de mídias digitais, fake news e big data para mobilizar apoio e influenciar resultados eleitorais. O movimento, caracterizado por uma retórica antissistema e a defesa de valores tradicionais, utiliza essas ferramentas para criar narrativas polarizadoras e segmentadas, exacerbando a desconfiança nas instituições democráticas e radicalizando eleitores. Ao final, vemos que a resposta a esses desafios inclui medidas de alfabetização midiática, transparência das plataformas digitais e uma colaboração internacional robusta para mitigar os efeitos negativos da desinformação e preservar a integridade das instituições democráticas existentes na atualidade.

 

A Emergência e Expansão do Novo Conservadorismo

 

A ascensão do novo conservadorismo é um fenômeno que tem se manifestado globalmente[5], caracterizado por uma retórica antissistema, a defesa de valores tradicionais e uma crítica incisiva às políticas progressistas. Este movimento ganha força no contexto de crises sistêmicas do capitalismo e crescimento das correntes neoliberais, capturando assim a insatisfação popular com as elites políticas e econômicas, percebidas como desconectadas das necessidades e preocupações da população geral. O novo conservadorismo oferece respostas aparentemente simples para essa insatisfação, prometendo uma volta a valores supostamente perdidos (o que inclusive é uma das características típicas do pensamento fascista) e uma ruptura com práticas políticas estabelecidas que falharam em atender às demandas populares.

O novo conservadorismo se distingue pelo uso eficaz das mídias digitais para disseminar suas ideias e mobilizar seguidores. Plataformas como Facebook, TikTok, Instagram, Twitter e YouTube se tornaram campos de batalha ideológicos, onde narrativas conservadoras encontram terreno fértil para prosperar. A habilidade de engajar diretamente com o público e criar comunidades virtuais fortalece a coesão e a mobilização do movimento. As mídias sociais oferecem um meio rápido e acessível para distribuir conteúdos que ressoam com as ansiedades e os valores de seus seguidores, permitindo uma conexão emocional que fortalece a lealdade ao movimento, criando assim um sentimento de pertencimento.

Outro aspecto relevante deste fenômeno é a sua capacidade de influenciar a agenda política e cultural. Políticos conservadores têm adotado uma postura combativa, utilizando-se de discursos polarizadores e, muitas vezes, de desinformação para reforçar sua base de apoio. Isso não apenas radicaliza os eleitores, mas também pressiona o mainstream político a adotar posições menos progressistas para não correr o risco de serve vítimas de tempestades de indignação (shitstorms) promovidas pelos neoconservadores[6]. A presença de figuras conservadoras em posições de poder, como legisladores e chefes de estado, permite que essas ideias sejam traduzidas em políticas públicas (ou na ausência delas) que moldam as perspectivas de futuro das nações e criam um cimento ideológico entre seus séquitos.

Ademais, o novo conservadorismo se aproveita da pela percepção de crise em várias frentes: econômica, cultural e de segurança. Crises econômicas, como a de 2008, ou a crise estrutural do capitalismo iniciada desde 1980, geram descontentamento com as políticas neoliberais[7], enquanto mudanças culturais, como a ampliação dos direitos da comunidade LGBTQIA+, das pessoas negras, das mulheres e de outros grupos, são vistas por muitos conservadores como ameaças aos valores tradicionais. Questões de segurança, exacerbadas por ameaças reais ou percebidas, também contribuem para um clima de medo que favorece políticas conservadoras e autoritárias.

 

Fake News e Big Data: Ferramentas do Novo Conservadorismo

 

O uso de fake news e big data são estratégias centrais na promoção do novo conservadorismo. As fake news, ou notícias fraudulentas, são deliberadamente produzidas e disseminadas com o intuito de enganar, causar desarmonia e influenciar percepções públicas. Essas notícias falsas não só visam confundir, mas também criar uma narrativa favorável aos ideais conservadores, muitas vezes associando-se a shitstorms, que são tempestades de críticas negativas, e candystorms, que são explosões de apoio positivo[8]. A disseminação de fake news é facilitada pela natureza viral das mídias sociais, onde informações falsas podem se espalhar rapidamente e atingir milhões de pessoas em questão de horas.

A monetização das fake news é um fator importante a ser considerado. Plataformas como Facebook e Google lucram com o aumento do tráfego gerado por conteúdos sensacionalistas, o que incentiva a propagação de notícias falsas. Estudos demonstram que o modelo de negócios dessas empresas está intrinsecamente ligado ao sucesso das fake news, pois artigos provocadores tendem a gerar mais cliques e, consequentemente, mais receita publicitária[9]. Apesar de algumas medidas terem sido tomadas contra estes fenômenos, sua eficácia ainda é muito limitada. A economia da atenção, que premia conteúdos que capturam rapidamente o interesse do público, cria um ambiente onde a veracidade das informações é frequentemente sacrificada em prol da lucratividade.

Além disso, o big data desempenha um papel vital na segmentação e direcionamento de mensagens políticas. A análise e processamento de grandes volumes de dados diversificados permite identificar eleitores suscetíveis a determinadas narrativas e, assim, direcionar fake news de maneira mais eficaz. Isso não só amplia o alcance das mensagens conservadoras, mas também aumenta a polarização política ao reforçar crenças preexistentes e criar bolhas de informação. Essas bolhas, ou câmaras de eco (eco chambers), isolam os indivíduos de informações contraditórias, solidificando ainda mais suas crenças e aumentando a divisão social.

A sofisticação das técnicas de big data e análise de comportamento permite campanhas altamente personalizadas. Essas campanhas utilizam dados de redes sociais, histórico de navegação e até mesmo dados de compras para construir perfis detalhados de eleitores e cidadãos. Com esses perfis, campanhas políticas podem criar mensagens altamente segmentadas que ressoam com as preocupações específicas de diferentes grupos, aumentando a eficácia da propaganda política. Essa prática, embora eficaz, levanta questões éticas sobre privacidade e manipulação da opinião pública, o que tem suscitado propostas para tentar controlar tais fenômenos. Porém, tais tentativas são hostilizadas pelos neoconservadores como sendo uma suposta limitação à liberdade de expressão e desencadeiam críticas recheadas de discurso de ódio e de desinformação, interditando assim o avanço mínimo de debate em torno dessa questão urgente. Cria-se assim um paradoxo, no qual as tentativas de combater os fenômenos das fake news são combatidas com uma enxurrada de… fake news.

 

Impactos nas Eleições e na Democracia

 

O impacto das novas tecnologias no processo eleitoral e na democracia é profundo e multifacetado. A utilização de big data e fake news pelos conservadores tem o potencial de alterar significativamente os resultados eleitorais. Ao manipular informações e influenciar percepções, essas ferramentas podem prejudicar a integridade do processo democrático, levando a uma desconfiança crescente nas instituições e nos resultados eleitorais. A confiança pública nos processos eleitorais é fundamental para a legitimidade das democracias, e sua erosão representa um risco significativo para a estabilidade política.

A disseminação rápida e ampla de fake news é particularmente problemática em períodos eleitorais. A velocidade com que essas notícias se espalham nas redes sociais dificulta a resposta efetiva das instituições para conter os danos causados. Em alguns casos, a proliferação de fake news pode levar à anulação de eleições, conforme discutido por membros do Poder Judiciário brasileiro. A capacidade de interferir nas percepções dos eleitores em tempo real significa que as fake news podem ter um impacto imediato e significativo nos resultados eleitorais.

O uso estratégico de big data também permite campanhas políticas mais eficientes e direcionadas, o que pode ser visto como uma vantagem competitiva desleal. Políticos conservadores, equipados com análises detalhadas do comportamento eleitoral, conseguem ajustar suas mensagens para maximizar o impacto e a ressonância com o público-alvo[10]. Isso coloca partidos e candidatos com menos acesso a essas tecnologias em desvantagem, exacerbando as desigualdades no campo político. A disparidade no acesso a tecnologias avançadas de campanha pode distorcer a competição eleitoral, favorecendo aqueles com mais recursos e acesso a dados.

A manipulação de big data não se limita à segmentação de eleitores. Campanhas podem usar esses dados para identificar e suprimir votos de oponentes, seja desincentivando eleitores a comparecer às urnas ou direcionando informações enganosas para confundir e desmoralizar a oposição. Essa prática, conhecida como “voter suppression”, é uma tática que mina diretamente os princípios democráticos de participação igualitária e justa.

Por outro lado, a resposta a esses desafios ainda está em desenvolvimento. Governos e instituições internacionais estão começando a entender a gravidade do problema e a implementar medidas para mitigar os efeitos negativos das fake news e do uso não ético de big data. Seminários, como os organizados pelo Poder Judiciário brasileiro em parceria com instituições europeias, representam passos importantes na busca por soluções eficazes. Além disso, iniciativas de alfabetização midiática estão sendo promovidas para educar o público sobre a verificação de informações e a detecção de fake news.

As plataformas digitais também têm um papel decisivo na mitigação desses problemas. Medidas como a transparência dos algoritmos, a identificação de bots e contas falsas, e a promoção de conteúdos verificados são essenciais para reduzir a disseminação de desinformação. No entanto, essas medidas muitas vezes enfrentam resistência devido ao potencial impacto negativo na lucratividade dessas plataformas, ainda que alguns avanços possam ser percebidos.

 

Considerações Finais

 

A emergência do novo conservadorismo e suas práticas associadas, como o uso de fake news e big data, representam um desafio significativo para os espaços democráticos minimamente conquistados nos últimos séculos. A capacidade desses movimentos de manipular informações e influenciar percepções públicas exige uma resposta coordenada e robusta por parte das instituições de Estado e da sociedade civil. Somente através da conscientização, regulamentação eficaz e cooperação internacional será possível preservar a integridade dos processos democráticos e assegurar que a verdade prevaleça no debate público. Igualmente, deve ser colocado em questão o oligopólio comunicacional que as grandes empresas de tecnologia (big techs) criaram em nível global, que se torna ainda mais problemático antes sua inequívoca falta de transparência.

Além disso, é essencial promover a educação política e a alfabetização midiática entre os cidadãos. Um público bem informado e crítico é a melhor defesa contra a manipulação e a desinformação. Instituições educacionais, meios de comunicação e organizações da sociedade civil devem colaborar para fornecer as ferramentas necessárias para que os indivíduos possam navegar no complexo ecossistema de informação digital de maneira eficaz e responsável, identificando fake news¸ bem como repudiando discursos de ódio e as estratégias de grupos que se utilizam de shitstorms para propósitos políticos espúrios e, sobretudo, deletérios para a sociedade.

 


 

Referências

[1] ARMSTRONG, Martin. Where Europe’s Far-Right Has Gained Ground. Disponível em: https://www.statista.com/chart/6852/seats-held-by-far-right-parties-in-europe/. Acesso em: 01 ago 2024.

[2] Sobre a crítica, veja: MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2013.

[3] CALDAS, Camilo Onoda; D’AVILA, Manuela Pinto Vieira; ESPINDULA, Brenda de Fraga Espindula. et al. (Coord.) Relatório de Recomendações para o Enfrentamento do Discurso de Ódio e o Extremismo no Brasil. 1. ed. – Brasília: Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, 2023. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2023/julho/mdhc-entrega-relatorio-com-propostas-para-enfrentar-o-discurso-de-odio-e-o-extremismo-no-brasil/RelatrioGTdioeExtremismosDigital_30.06.23.pdf. Acesso em: 01 ago. 2024.

[4] ORGANIZAÇÃO das Nações Unidas. Terrorist attacks on the basis of xenophobia, racism and other forms of intolerance, or in the name of religion or belief. Publicado em 03 ago. 2024. Disponível em:

https://daccess-ods.un.org/access.nsf/Get?OpenAgent&DS=A/77/266&Lang=E. Acesso em: 01 ago. 2024.

[5] CALDAS, Camilo Onoda; ALMEIDA, Silvio Luiz de. Estado e conflito no pós-fordismo: a ascensão do neoconservadorismo. MINHOTO, Antonio Celso Baeta; SERRANO, Pedro Estevam Alves Pinto (Org.). Democracia em Tempos de Fúria: Brasil 2013-2018. São Paulo: Max Limonad, 2018.

[6] PEREIRA, Luiz Ismael; LUIZ CALDAS, Camilo Onoda. O fenômeno Shitstorm: Internet, intolerância e violação de direitos humanos. Interfaces Científicas – Humanas e Sociais, [S. l.], v. 6, n. 1, p. 123–134, 2017. Disponível em: https://periodicos.set.edu.br/humanas/article/view/3540. Acesso em: 4 ago. 2024.

[7] Vide CALDAS, Camilo Onoda. Teoria da Derivação do Estado e do Direito. 2. ed. São Paulo: Contra-corrente, 2021.

[8] CALDAS, Camilo Onoda; CALDAS, Pedro Neris. Estado, democracia e tecnologia: conflitos políticos no contexto do big-data, das fake news e das shitstorms. Perspectivas em Ciência da Informação, [S. l.], v. 24, n. 2, p. 196–220, 2019. Disponível em: https://periodicos.ufmg.br/index.php/pci/article/view/22624. Acesso em: 1 ago. 2024.

[9] MENDONÇA, R. F. et al.. Fake News e o Repertório Contemporâneo de Ação Política . Dados, v. 66, n. 2, p. e20200213, 2023. Disponível em: https://www.scielo.br/j/dados/a/M47Czv8v8HzwQ6DKjBqJvjg/#. Acesso em: 1 ago. 2024.

[10] FORNASIER, M. de O.; BECK, C. Cambridge Analytica: escândalo, legado e possíveis futuros para a democracia. Revista Direito em Debate, [S. l.], v. 29, n. 53, p. 182–195, 2020. Disponível em: https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/revistadireitoemdebate/article/view/10033. Acesso em: 4 ago. 2024

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