Não dá para analisar a atual conjuntura política sem entender as mudanças estruturais profundas na classe trabalhadora e na sua forma de inserção no processo produtivo que fizeram com que parte dela esteja sob hegemonia da extrema direita.
Lula e o PT são fruto do ascenso da luta de classes na década de 80, impulsionada por uma classe trabalhadora assalariada urbana que, mesmo não sendo majoritária como fração dentro dos trabalhadores em geral, era hegemônica.
Na década de 80 qualquer jovem de 20 anos ambicionava chegar em casa com a sua 1a carteira de trabalho assinada. A indústria representava 29% do PIB e o trabalho industrial historicamente é melhor remunerado. Os milhões de trabalhadores informais ou por conta própria ambicionavam ser assalariados porque isso significava renda mais alta e o acesso aos direitos da CLT (férias, 13 salário, previdência social plena).
3 décadas de desindustrialização relativa (hoje o PIB industrial mal chega a 11%) e de acelerada robotização e automação do trabalho industrial acabaram com as concentrações operárias e com as expectativas de trabalho assalariado de melhor qualidade. O que resta é contratação no setor de serviços, pior remunerado, muito menos organizado sindicalmente por ser mais disperso e por isso sujeito também a escalas de trabalho abusivas (6 X 1), e a maior assédio moral.
Para a maioria da classe trabalhadora na informalidade, no trabalho plataformizado ou por conta própria, o assalariamento não é mais um objetivo. Escutei isso em grupos focais de pesquisa conduzida em 2023 na Fundação Lauro Campos/ Marielle Franco.
Para esse contingente enorme da classe trabalhadora o Estado é mais visto como um estorvo (que fiscaliza, controla, pune e cobra impostos) do que como garantidor de direitos. A ideologia liberal anti-estado é muito presente.
A insatisfação latente não é mais polarizada pela esquerda com uma agenda de mudanças, mas por um discurso abstrato anti sistema vocalizado pela extrema direita, onde o sistema são as conquistas da luta da classe trabalhadora nos últimos 150 anos, nas quais esta parcela da classe não está inserida.
Esta mudança de perfil da classe trabalhadora deu chão para a derrubada de Dilma Rousseff, deu base social para a vitória de Bolsonaro em 2018, e mantém a extrema direita como principal alternativa de poder no Brasil.
O governo Lula ou não percebeu isto ou não sabe como agir face ao problema e apostou numa reedição dos governos Lula 1 e Lula 2 em condições muito mais adversas. Obviamente não está dando certo.
Quem se propõe a ser oposição de esquerda a Lula, na sua maioria nem o problema consegue localizar. Seguem sonhando com a volta de uma classe trabalhadora assalariada/ celetista como motor da história. Se inspiram nos filmes de Bertolucci (Noveciento) e querem aquela classe trabalhadora para chamar de sua.
O fato concreto é que o que resta de classe trabalhadora orientada politicamente pela esquerda ainda é a parcela que levou Lula ao poder em 2002 e o manteve competitivo eleitoralmente até hoje. Não há espaço social para uma alternativa com alguma expressão de massa a Lula.
Estou no Psol desde a sua fundação e defendi corretamente a nossa localização na oposição aos governos petistas de 2003 a 2016. Era outro período político, havia espaço para disputar influência e, mesmo lentamente, construir uma alternativa a esquerda em contraposição ao Lulismo. A alternativa à direita era o projeto da direita liberal comandado pelo PSDB.
No atual período político não existe esse espaço. O que resta de classe trabalhadora orientada pela esquerda pode ser insuficiente para derrotar a extrema direita e é esta que se coloca como alternativa.
A vitória de Milei, a volta de Trump, ambos com um programa muito mais radicalizado, mostra o que poderá vir se Lula perder em 2026. É necessária uma mudança de rumos por parte do governo mas apontar essa necessidade não pode se confundir com a campanha de desconstrução que parte da esquerda vem realizando tanto em relação ao governo como em relação às principais figuras públicas do Psol que está na base do governo.
Não me preocupa eventual impacto dessa campanha na disputa de massas porque esse pessoal não tem alcance para isso. Mas têm capacidade para desmotivar e desmobilizar parte da militância, no momento em que se avizinha uma batalha de suma importância. Não vou, ao contrário do que eles em geral fazem, tratá-los com desqualificações morais. A divergência é dramática, mas é política.
Estamos mal com Lula, estaremos muito pior sem ele.