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Monstros, utopias esmaecidas e a unidade contra a putrefação do Estado

Tarso Genro

Ex-governador do RS, ex-prefeito de Porto Alegre, advogado, professor universitário, ensaísta, poeta. Foi ministro da Educação, das Relações Institucionais e da Justiça.

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Numa certa parte dos seus “Quadernii” Gramsci, do fundo do cárcere, lembrou aos seus camaradas – com uma parábola moral sobre o “libertinismo” – um aspecto essencial da hegemonia. Falava sobre aquela que é baseada mais na força do que na capacidade moral e política de dirigir. Disse ele: “quando a pressão coercitiva é exercida sobre todo o complexo social (…) desenvolvem-se ideologias puritanas, que dão a forma exterior da persuasão e do consenso, ao (que é) uso intrínseco da força: mas, uma vez obtido o resultado (a dominação), pelo menos em certa medida a pressão se quebra”. A persuasão era ilusória, no exemplo do filosofo prisioneiro, pois por nas formas brutas de dominar o consenso não  perduraria na alma dos coagidos.

O processo político aberto com a deposição golpista da Presidenta Dilma expôs a crise da nossa democracia liberal-representativa, mas também tornou transparente o impasse da sua forma republicana. Vai perdurar o “bolsonarismo”? Um movimento golpista, mesmo de “novo tipo”, sobre um país complexo como o Brasil, não pode perdurar por décadas.

Quem são os monstros do irracionalismo militante? Para muitos deles, a terra é plana, a ciência é comunista e no medievo devemos buscar a perfeição narcísica do que entendemos por família, mas o problema da sua derrubada está vinculado necessariamente às alianças que ele conseguiu e as alianças que vamos projetar, no atual período, para encará-lo no seu nascedouro.

A transparência desta decadência democrática já fora ensaiada nos dias embaçados de junho de 2013, quando vastos movimentos de rua estimulados pela Rede Globo de Televisão conseguiram colocar, lado a lado, os movimentos reivindicatórios da juventude, movimentos de demandas da periferia urbana, ativistas estudantis, conectando-os com as reivindicações contra os impostos excessivos, com imprecações – verdadeiras ou falsas – contra a corrupção. Muitos bradavam que sonegar impostos seria legítima defesa contra um Estado usurpador.

O sistema de alianças políticas que fora conveniente, à esquerda e à direita do espectro político nacional, faliu em 2013.  O que pode se repetir – numa outra conjuntura – é um drama de poder classista, de natureza burocrática, que se firmaria para promover o casamento de um ultra liberalismo (coerente com os interesses empresariais corporativos) com um fascismo “novo tipo” (ora com patrocínio estatal), assim tendente a operar como política criminosa  de Estado – de fora para dentro do Estado – através de milícias armadas que ora se disseminam em profusão.

As alianças políticas no país – nos “intermezzos” democráticos da nossa história – sempre foram pautadas (com raras exceções) pela força das oligarquias políticas regionais, favorecidas pelo sistema eleitoral originário da ditadura militar. O olhar político das figuras de referência, nas regiões do nosso vasto país, sempre foi orientado por uma ótica local, sem considerar as problemáticas locais como inseridas numa ideia de construção da nação.

Neste macro sistema político o “golpe parlamentar”, imposto ao mandato da Presidenta Dilma, teve como mote principal a “luta contra a corrupção”, tema preferencial urdido nos “think-tanks” internacionais da direita conservadora e da extrema direita, que fluiu fácil dentro do Sistema de Justiça do nosso país. O cansaço e a inépcia da democracia liberal, para extirpar a corrupção (na sua visão autoritária) transfomaria esta chaga no elemento subjetivo e fictício, de unidade moral da direita, da extrema direita e do conservadorismo histórico, como forma perversa de unidade política. Esta, não visava na verdade combatê-la, mas utilizá-la para imediatamente disputar o poder, depois de perdê-lo – por quatro vezes – nas eleições presidenciais.

Foram disseminados com os movimentos de junho de 2013, três grupos de macro “fake news”, que tiveram uma enorme capacidade de sedução política e amplo acolhimento nos meios políticos tradicionais: o Brasil tem pobreza e não cresce, porque o Estado consome a nossa riqueza exclusivamente para o aproveitamento dos “políticos”; o PT foi o artífice da grande corrupção no Estado para – a partir dos recursos amealhados com ela – eternizar-se no poder; os servidores públicos e os servidores de empresas públicas e estatais, são  privilegiados que pouco trabalham para servir à população.

A campanha unitária da mídia e a internalização da crise mundial, com as evidentes dificuldades de continuar financiando políticas sociais, somadas aos erros na condução econômica – já na segunda metade do primeiro Governo Dilma – com erros  tanto do próprio PT como do Governo, favoreceram a formação de uma ampla coalizão de forças para unir o que sempre teve de pior na política nacional: uniu os defensores de um anticomunismo fantasma com grupos dotados de um reacionarismo medieval nos costumes, que permitiu aflorar um ódio escravista contra o “excesso” de direitos dos trabalhadores – e aqui vai o cerne da suas alianças – que só uma reforma ultraliberal poderia enfrentar.

Um efeito dramático deste processo, todavia, foi o reforço orgânico de uma extrema direita internacionalista, de caráter neofascista – que internamente passou a ter como referência um ex-Capitão do Exército – retirado por problemas mentais e comportamento presumido como terrorista – cuja candidatura à presidência “roubou” a hegemonia política dos “liberais” e dos conservadores tradicionais, para dar um outro rumo ao país. É um rumo surpreendente, que mistura vocação para a anomia, deboche das instituições republicanas, defesa da tortura e indução da morte, com receitas médicas oferecidas diretamente pelo presidente para enfrentar a Pandemia.  Os reformistas ultraliberais não temeram se amantizar com esta extrema direita de vocação fascista para dominar novamente o país.

O “contra sistema” como ideia de ultradireita venceu a socialdemocracia que fora ajustada ao regime do capital e aniquilou a ideia da evolução social pela legalidade, hipótese que era aceita até por parte das classes sociais mais privilegiadas. Mas esta “evolução”, todavia, era fortemente odiada pela maioria das classes dominantes tradicionais e pelas classes médias altas, cujas empregadas domésticas deveria ser, para eles, meras sucessoras das escravas coloniais. Este contra sistema reagia a quê?

As políticas sociais do Governos  Lula e do primeiro Governo Dilma Rousseff, sustentadas pelos bons preços das “commodities” reestruturam a nossa sociedade profundamente desigual, de um modelo em que poucos ganhavam muito” para um modelo em que “todos ganhavam.” Quando a crise bloqueou esta possibilidade de “todos ganharem” – dos banqueiros às famílias abrigadas na proteção social do Estado – rompeu-se a governabilidade e as “frentes” – tanto de sustentação do Governo no Parlamento como nos movimentos sociais – esgarçaram os seus compromissos.

A democracia liberal avançara com o republicanismo da Carta de 88 e a mesa política de negociações e disputas – instalada naquele processo conciliatório com a ditadura militar -absorvera atores novos, com os Governos Lula. Seus programas sociais, ao mesmo tempo que salvaram da morte e da fome milhões de pessoas, acomodaram-se no equilíbrio fiscal artificial do preço das “commodities” e acabaram, no Governo Dilma, na adoção dos ajustes neoliberais.

Os novos atores sociais, presentes na cena pública , o PT, PCs, partidos de esquerda menores, sindicatos e organismos acadêmicos de esquerda – mais setores de partidos tradicionais que guardavam no seu interior fragmentos progressistas – jamais conseguiram formar uma frente orgânica nacional, de caráter programático, para disputar as eleições mais importantes do país, embora atuassem – pragmaticamente – em conjunto, em governos locais e regionais importantes.

A mesa da democracia começou a servir, também, aos trabalhadores da cidade e do campo, camponeses, jovens de extratos médios e de nível social baixo, grupos sociais marginalizados em longínquas regiões do território nacional: mulheres com suas lutas de gênero, os trabalhadores e aposentados de “salário mínimo, excluídos, negros e indígenas. Estes foram ganhando “status” político e, paulatinamente, amor próprio, renda e espaços de atuação e emprego numa sociedade de classes de forte extração colonial-escravista, que jamais se preocupara com eles de maneira séria.

Quando o modelo começa e falhar, em função das mudanças e crises no espaço global, desfaz-se a unidade interna do precário pacto do petismo democrático e social, com grupos oligárquicos regionais. Estes pactos, durante os governos Lula e Dilma, favoreceram – até então – uma forma de manejo progressista do Estado e das alianças parlamentares, para a implementação de políticas sociais “dentro da ordem”, com resultados extraordinários para a redução da miséria e da pobreza.

Estas alianças eram herança da tradição fisiológica (ínsita ao democratismo liberal do país), que nos nossos períodos democráticos sempre colaboraram para promover a estabilidade funcional do Estado, tarefa que envolvia sempre as principais lideranças das facções políticas de centro-direita. Estas originaram os mesmos quadro que depois de participarem do Governo Lula e Dilma, apoiaram o golpe e  voltaram com Bolsonaro ao poder, para casar com o ultra liberalismo de Guedes e com o atual milicianismo em organização pela extrema-direita, com laços bastante claros com o “bolsonarismo”, dentro e fora do Estado.

No período de preparação do golpe os meios de comunicação privados, especialmente a Rede Globo e as mídias das religiões do dinheiro, conduziram sua comunicação para “dar força” a uma maioria de políticos de tradição fisiológica e corrupta, cujo objetivo seria trazer o Estado, novamente, para o domínio completo dos setores liberal-conservadores, agora fascinados pelo radicalismo privatizante do ultra liberalismo destemperado.

O empresariado brasileiro, que nunca teve apreço estável à democracia política, todavia, não consegue livrar-se sozinha de Bolsonaro, porque é ele quem compôs uma “base de massas” que pode apoiar as reformas se o “chefe mandar”, à semelhança da base que Mussolini criou na Itália pré-fascista. Seus políticos tradicionais  – do polo da direita “clássica” – de outra parte, têm a sua maioria envolvida em graves e verdadeiros processos de corrupção, sem um nome capaz de unificar os seus adeptos de forma competitiva para as eleições de 22.

É aqui que se abre – precisamente – uma oportunidade para iniciar a formação de uma Frente Republicana e Democrática – orientada pela esquerda – com alianças e programas inovadores, para retirar o país da crise. De início atacando fome que se espalha no país novamente, combatendo o desemprego, defendendo investimentos públicos em infraestrutura, pesquisa e educação, habitação e saneamento; no plano político, objetando duramente o negacionismo perante a Pandemia (com a defesa da vacinação em massa) e retomando a defesa do projeto democrático da Constituição de 88 e a defesa das suas instituições.

O “corte” unitário nesta etapa é menos diretamente classista e é mais informado pelas disputas políticas imediatas da conjuntura, nas quais as classes sociais, que estão em voo cego, na tormenta do fascismo, estão dispostas a seguir quem tem força e solução, para os impasses da sua vida cotidiana. Seus problemas estão dentro de um trágico cenário de putrefação da ordem do Estado – pandemia, fome, autoritarismo, negacionismo – naquele empate estratégico, em cujas noites nascem os monstros e em cujos dias desaparecem as utopias.

A resistência e a superação do modo “bolsonárico” de governar e do seu projeto político, como comando degradado das classes dominantes tradicionais sobre o Estado Social em destruição, pode ser o capítulo por dentro do qual se forjem as condições para a formação de uma Frente de caráter eleitoral – com hegemonia de esquerda – para dar ao nosso país um rumo de soberania, defesa imediata de uma vida sadia para os pobres e empobrecidos e mais igualdade na construção da nação. Isso não é tudo, mas é muito e é possível.

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