Introdução
Nas origens do totalitarismo, Hannah Arendt descreve que o súdito ideal para um regime totalitário é aquele que não difere o fato da ficção e que não compreende os critérios básicos da criticidade ao receber uma informação – a simples diferenciação entre o que é verdadeiro e o que é falso. A pós verdade, nomeada a palavra do ano pelo Dicionário de Oxford em 2016, denota esse contexto na contemporaneidade ao passo que ideologias, crenças, teorias conspiratórias e vivências individuais passaram a ser compartilhadas como “verdades inegáveis”, reescrevendo fatos históricos e duvidando de comprovações científicas, sob o contexto de uma determinada ideologização política. Nesse sentido, a pós verdade está ancorada a um retorno aos conceitos pré-modernos, enraizados na autoridade relacional de quem transmite a informação e não na propriedade desta fonte sobre o assunto (DUNKER, 2017) e se relaciona com o fenômeno de ampliação da desinformação e das fake news.
No inglês, a desinformação se divide em dois termos muito utilizadas, sendo elas misinformation e desinformation. A primeira trata de informações falsas ou imprecisas espalhadas de forma não intencional – como, por exemplo, um erro de reportagem. Já desinformation, em português desinformação, é intencionalmente falsa e deliberadamente propagada com a intenção de enganar usuários e se multiplicar pelas redes (ALLCOTT; GENTZKOW, 2017; EUROPEAN COMISSION, 2018; MARWICK; LEWIS, 2017). Já as fake news são aquelas notícias difundidas intencionalmente e que são verificavelmente fraudulentas, repassadas com a intenção de enganar os leitores (SHU et al., 2017).
O fenômeno da desinformação e de criação de notícias falsas não é uma novidade do século XXI, sendo algo inerente à própria comunicação humana. O advento dos meios de comunicação, primeiramente impresso e após via rádio e televisão, já foram responsabilizados por criar uma onda de desinformação quando se massificaram. No século XX, com a introdução da internet, a rapidez da disseminação da informação aumentou ainda mais a velocidade com que as notícias se multiplicam, dificultando a checagem das fontes e verossimilidade dos fatos. O ambiente virtual e a impressão de “anonimato” das redes sociais tendem a impulsionar um comportamento de manada, divulgando informações sem checagem (BERNARDI, 2020).
Dentro desse contexto, este artigo busca explorar como o presidente Bolsonaro e a ala bolsonarista mobilizam os seus apoiadores nas redes sociais utilizando-se de diferentes narrativas para justificar suas intenções. Atos antidemocráticos, mobilizações contra as instituições, governadores, prefeitos e a grande mídia, são alguns exemplos de discursos que a massa bolsonarista utiliza em prol de uma suposta defesa da liberdade de expressão – mesmo que essa seja a liberdade de espalhar desinformação e notícias falsas, dentro de um contexto de pós verdade. Para tanto, são explorados dois momentos recentes do bolsonarismo nas redes sociais: a pandemia de Covid-19 e a mobilização de 7 de setembro. Esse paper não pretende esgotar a discussão teórica sobre o assunto, mas fomentar a discussão sobre o bolsonarismo envolvendo os conceitos de fake news, pós verdade e diferentes narrativas sobre liberdade de expressão.
Pós verdade, fake news e bolsonarismo
Tantos a disseminação de fake news, quanto o fenômeno da polarização, vêm sendo temas recorrentes de discussão na sociedade moderna altamente conectada, sobretudo dentro do avanço do machine learning, expansão da internet e das redes sociais (BERNARDI; MORAES; RAIS, 2021). Consideradas como fenômenos ampliados pelas redes sociais e seus algoritmos, através das câmaras de eco e bolhas de filtro, a polarização e as notícias falsas, estão fortemente relacionadas às discussões políticas, ganhando fôlego em anos eleitorais.
Buscando imitar o mundo real, no qual os indivíduos se relacionam com seus pares e pessoas com maior afinidade, os algoritmos das redes sociais reproduzem essas construções sociais formando as chamadas câmaras de eco (eco-chambers), ou bolhas de filtro (filter bubbles). Assim, ao isolar indivíduos que compartilham crenças e pensamentos homogêneos dentro das mesmas frequências algorítmicas, facilitam a propagação de fake news, já que as mesmas notícias são visualizadas diversas vezes no mesmo ambiente e em um curto espaço de tempo, sendo recompartilhadas por pares que contam com credibilidade social (KAHNEMAN, 2012; MCCRIGHT; DUNLAP, 2017).
Na prática, o maior problema disso é a exposição contínua e frequente aos mesmos conteúdos, o que condiciona os indivíduos a um viés de confirmação, aumentando as chances de que acreditem naquela informação, mesmo quando desmentida (PENNYCOOK; RAND, 2020). Além disso, as notícias sobre política nas redes sociais como WhatsApp, Facebook e Twitter têm o poder de alcançar grupos que não são politicamente engajados ou tradicionalmente interessados por política e, portanto, mais suscetíveis a crer em notícias falsas (LAZER et al., 2017).
Se olharmos para o contexto brasileiro, principalmente a partir das eleições de 2018, o termo fake news se tornou parte do linguajar do brasileiro, marcado pela ascensão de Bolsonaro à presidência da república. Nesse sentido, a disputa pela eleição de 2018 foi marcada não só pela disseminação de notícias falsas, campanhas de mensagens automatizadas, como também por um distanciamento entre os polos políticos, considerados como direita e esquerda (BERNARDI, 2020). A eleição de Jair Bolsonaro em 2018 levou pela primeira vez, desde a redemocratização em 1989, um governo de extrema direita ao poder. Nos termos de Sérgio Abranches (2019, p.12), a vitória de um candidato vindo de um partido até então inexpressivo no cenário político, salvo o caso de Collor, marcou “o fim do ciclo PT-PSDB do presidencialismo de coalizão na Terceira República que organizara governo e oposição desde 1994.” A recorrente disputa bipolarizada para a presidência, entre o PT e o PSDB, no segundo turno, foi desfeita (ABRANCHES, 2019).
Bolsonaro foi o candidato que mais se utilizou de suas próprias redes sociais para dialogar com seu eleitorado. Muitas vezes tendo embates com a “mídia tradicional”, o candidato ao longo da eleição, e depois de eleito, tem se utilizado fortemente do Twitter e de sua página oficial do Facebook para comunicar-se com a população. Adotando a conotação de fake news utilizada por Trump, determinando críticas e notícias desfavoráveis às suas ações como fakes, utiliza-se do termo como forma de subverter a verdade: tudo que o prejudica, ou vai contra seus interesses é posicionada como “fake news”, e alardeada pelos seus seguidores, tanto dos robôs automatizados como seus próprios apoiadores das redes sociais, como uma verdade incontestável. Assim, o candidato evita os “gate keepers” da mídia tradicional que é desqualificada como “esquerdista”, e se comunica diretamente com o seu público nas redes sociais, pelo uso de lives e pronunciamentos diários, sem o crivo dos checadores de fato. A desqualificação da mídia tradicional ocorre desde a Rede Globo, até o The Economist, o The Guardian e todos os principais grandes veículos brasileiros (MELLO, 2018).
Ainda que não seja possível atrelar às notícias falsas a apenas um espectro político, a nova onda populista de extrema direita, que vai desde Victor Orbán na Hungria, Donald Trump nos Estados Unidos, Marie Le Pen na França, e no Brasil tem em Jair Bolsonaro e no bolsonarismo[1] sua força exponencial, se utiliza das redes sociais e da manipulação online como forma de aproximação com o eleitor desconfiado da política e dos partidos políticos, se afirmando como anti-stablishment. Assim, embora guardem semelhanças com populismos autoritários do passado, esses atores encontraram nas redes sociais um catalisador de mobilização da opinião pública, ao passo que se comunicam diretamente, sem interferência da mídia, com o seu público-alvo.
As táticas de desinformação e notícias falsas utilizadas pelo presidente durante a sua campanha não cessaram após sua eleição, e desde o seu primeiro discurso de posse inverdades de todos os tipos têm sido recorrente em pronunciamentos oficiais, postagem em suas redes sociais e declarações à imprensa. Não bastasse a escalada autoritária de Jair Bolsonaro e sua desastrosa gestão do país, a pandemia do coronavírus, que se alastrou mundialmente em 2020, trouxe uma “tempestade perfeita” para o caos que já vinha imperando no país.
Pandemia de Covid-19, fake news e bolsonarismo
O primeiro caso de coronavírus no Brasil foi datado em 26 de fevereiro de 2020. Em 6 de março de 2020, Jair Bolsonaro afirmou em seu primeiro pronunciamento que não havia motivo para pânico, e pediu que os brasileiros levassem a vida normalmente. Ao final de abril, quando o Brasil já somava mais de seis mil mortes decorrentes de Covid-19, Bolsonaro já defendia a volta à normalidade e criticava prefeitos e governadores que promulgavam medidas a favor do isolamento social e ampliação da testagem em massa. Hoje[2], o Brasil soma quase 600 mil mortes pelo coronavírus, que foi referido pelo presidente e seus apoiadores diversas vezes como uma “gripezinha”.
Ao longo da pandemia, houveram três trocas no ministério da saúde, os dois primeiros (Henrique Mandetta e Nelson Teich) saíram do Governo por seguirem as orientações da OMS, posicionando-se contra as diretrizes do Presidente que insistia em promover o uso de medicamentos sem eficiência comprovada, promovendo aglomerações. Nelson Teich não completou um mês no cargo, quando o General Eduardo Pazuello tomou posse como ministro interino sem ter nenhuma formação na área da saúde. Frente a ineficiência de Pazuello em gerenciar a crise de oxigênio em Manaus, o general foi retirado do cargo 10 meses após a sua posse, em março de 2021. Atualmente, o Ministério da Saúde se encontra sob a direção de Marcello Queiroga que, assim como Pazuello, vem fazendo uma política mais alinhada ao governo de Jair Bolsonaro.
Toda a gestão da pandemia no País foi permeada por inúmeros escândalos de corrupção na compra de testes e, posteriormente, de vacinas, já em investigação pela CPI da pandemia. Ao contrário das indicações da Organização Mundial da Saúde, o presidente Jair Bolsonaro se colocou contra as medidas de isolamento social decretadas por prefeitos e governadores, comparecendo em diversas passeatas e manifestações, convocadas por seus apoiadores para opor-se a tais medidas, as quais também pediam o fechamento do congresso nacional e do Supremo Tribunal Federal (STF), além da defesa de uma intervenção militar (COSTA; BERNARDI, 2020).
A ode antidemocrática dessas manifestações contra as medidas de isolamento foi acompanhada por menções nas redes sociais, e um crescimento da radicalização do seu discurso. Em análise realizada no Twitter do presidente Bolsonaro entre 26 de fevereiro (data do primeiro caso registrado) e 9 de agosto de 2020 (data que o Brasil atingiu 100 mil mortos por Covid-19), foram encontrados 642 tweets com temática referente à Covid-19. Destes, 12% eram em resposta e mobilização de seus apoiadores, 8% faziam menção direta ao uso de cloroquina ou hidroxicloroquina, 6,5% faziam ataques às medidas de contenção de Covid-19, 5,3% eram de ataque à mídia, 3,5% de ataque a prefeitos e governadores e cerca de 5% continham algum tipo de desinformação sobre a Covid-19. Apesar dos números não serem tão expressivos em termos de porcentagem, a mesma pesquisa encontrou que das 10 postagens de Bolsonaro mais compartilhadas pelos seus seguidores nesse período, 2 faziam referência a tratamentos sem comprovação cientifica, 3 foram de ataques a adversários/governadores e 3 foram de ataques à mídia[3] (COSTA, BERNARDI, 2020). Ainda, de acordo com relatório da ONG Artigo 19, lançado em maio de 2021, o Ministério da Saúde e a Presidência da República são as principais fontes de poluição da informação sobre a pandemia no País (ARTIGO 19, 2021)[4].
A narrativa negacionista de líderes demagogos, como a de Jair Bolsonaro, entrou na mira das plataformas de redes sociais que iniciaram um maior esforço para barrar a pandemia de desinformação provocada no ambiente digital. Ao longo do ano de 2020, diversas postagens feitas pelo Presidente e pela sua redes de apoiadores, aos quais faziam apologia à utilização de remédios sem eficácia comprovada, ou questionavam as medidas de isolamento, foram primeiro taxadas como inverídicas em plataformas como Twitter, Instagram, Youtube e Facebook e mais tarde retiradas do ar por infringir regras das plataformas, podendo causar “danos reais às pessoas”. Da mesma forma, o judiciário também vem travando posicionamento firme na guerra contra a desinformação. O avanço do inquérito sobre o financiamento de fake news[5], bem como a investigação do financiamento de atos antidemocráticos[6], têm preocupado governistas e aliados do presidente e aumentado a tensão entre Executivo e Judiciário.
O fechamento de cerco das plataformas às narrativas negacionistas e falaciosas contra a pandemia global de Covid-19, bem como os inquéritos do Supremo Tribunal Federal (STF) contra a desinformação e os atos antidemocráticos desagradou a ala bolsonarista e seus apoiadores. Como resposta, o Presidente, desde o início do 2021, vem falando em uma medida jurídica para barrar a remoção de conteúdo das redes sociais, em prol da “liberdade de expressão” das vozes conservadoras. As vésperas do 7 de setembro, a tão alardeada medida para evitar remoção de conteúdo nas redes sociais foi publicada no Diário Oficial, via Medida Provisória, justamente em uma semana que os outros poderes estavam paralisados em Brasília devido as marchas bolsonaristas que ocorreriam no Dia da Independência do Brasil. A seguir, discutimos sobre a MP da remoção de conteúdo das redes sociais e os atos antidemocráticos nas ruas do dia 7 de setembro.
MP 1.068/21, mobilização para os atos antidemocráticos de 7 de setembro e as narrativas bolsonaristas
Em maio de 2021, o Presidente já alardeava estar preparando um Decreto que limitava a remoção de conteúdos das redes sociais, ao passo que afirmava que ele, e sua base aliada, estariam sofrendo censura por parte das plataformas que retiraram diversas postagens da base bolsonarista, Trechos do decreto que circularam na internet violavam o Marco Civil da internet, limitando a regulação dos provedores e apenas autorizando retirada de conteúdo a partir de decisões judiciais[7]. O Decreto acabou não sendo publicado, mas o seu texto veio na forma de Medida Provisória 1.068/21 (BRASIL, 2021) publicada um dia antes dos atos antidemocráticos convocados pelo presidente da república para o 7 de setembro.
Na prática, uma medida provisória tem caráter imediato e caso postagens fossem retiradas do ar, os provedores deveriam pagar uma multa, ou então recorrer judicialmente para garantir a derruba dos links. Em termos jurídicos essa MP se mostra inconstitucional por diversos fatores, indo contra o Marco Civil da Internet (ILD, 2021), limitando significativamente a capacidade das plataformas de conter abusos (desinformação, discurso de ódio e uso de imagem indevida), além de inadequação da via eleita[8] – observa-se que esta medida tem claro interesse político, uma vez que foi publicada na semana que o Congresso encontrava-se em recesso, limitando a possibilidade de pronta reação dos congressistas. Da mesma forma, frente aos embates que o chefe da república vem produzindo junto aos demais poderes, sobretudo com o Supremo Tribunal Federal, no qual Bolsonaro é alvo do inquérito das fake news, denotam uma tentativa de legislar em favor próprio.
Embora seja importante resguardar a liberdade de expressão dos usuários, essa não deve ser entendida como liberdade para desinformar e propagar notícias falsas. A vedação à remoção de conteúdos comprovadamente falsos precariza o debate público, e uma vez que a velocidade da internet é infinitamente vezes mais ágil que a do judiciário, a falta de celeridade na remoção de um conteúdo pode vir a causar danos irreparáveis para usuários, empresas e até entes governamentais. Não obstante, considerando a proximidade do ano eleitoral, e as recorrentes remoção de conteúdos dos perfis ligados ao Presidente, parecem ser mais um indicativo de que a MP rompe a barreira de pessoalidade, visando garantir vantagens próprias.
Politicamente, a escolha da publicação na data anterior a manifestações de cunho antidemocrático demonstrou um aceno de Bolsonaro a sua base aliada e aumentou a tensão no cabo de forças que o Presidente vem travando com o Supremo Tribunal Federal (STF) e com o Congresso Federal, seja no inquérito das fake news ou na CPI da pandemia. Assim, o argumento bolsonarista coloca a liberdade de expressão como valor inalienável, mesmo que esse represente a liberdade para desinformar e promover de discurso de ódio, seja à desafetos políticos ou direcionado às próprias instituições da república.
A organização para o 7 de setembro já vinha sendo orquestrada desde o início deste ano, sendo chamado como o “Dia D do Bolsonarismo”, havendo indícios de financiamento de caravanas vindas de diversos locais do país (MILITÃO, 2021). A estimativa dos organizadores era de reunir entre de 2 e 3 milhões de manifestantes na capital paulista. No entanto, de acordo com o governo de São Paulo, apenas 125 mil pessoas estiveram presentes na Av. Paulista, sendo pouco mais de 6% do esperado.
Em seu discurso na Av. Paulista em São Paulo, Bolsonaro trouxe novamente a pauta da insegurança do processo eleitoral[9], afirmando que “não podemos admitir um sistema eleitoral que não oferece qualquer segurança […] E não é uma pessoa do Tribunal Superior Eleitoral que vai nos dizer que esse processo é seguro e confiável [em referência ao Ministro Barroso sobre as urnas eletrônicas)”. Também retomou os ataques ao Supremo Tribunal Federal (STF), e em específico ao Ministro Alexandre de Moraes, sob a alegação de censura dos conservadores;
Não podemos admitir que uma pessoa na Praça dos Três Poderes quer fazer valer a sua vontade. Querer inventar inquéritos. Queres suprimir a liberdade da expressão. Querer continuar prendendo pessoas honestas por um simples… Por uma acusação de crime de opinião. […]Não podemos admitir que uma pessoa, um homem apenas turve a nossa democracia e ameace a nossa liberdade. Dizer a esse indivíduo que ele tem tempo ainda para se redimir. Tem tempo ainda para arquivar seus inquéritos. Ou melhor, acabou o tempo dele. Sai, Alexandre de Moraes. Deixa de ser canalha. Deixe de oprimir o povo brasileiro…. Liberdade para os presos políticos. Fim da censura. Fim da perseguição aqueles conservadores, aqueles que pensam no Brasil….(BOLSONARO, 2021)[10]
Embora o movimento de 7 de setembro não tenha recebido tantas pessoas nas ruas quanto era esperado pela ala bolsonarista, a repercussão dada por seus aliados e pelo próprio presidente, foi de um absoluto sucesso. Análises do Manchetômetro (LEME/UERJ)[11], demonstram que os grupos pró-presidente nas redes sociais se mobilizaram para republicar os vídeos da passeata, sob a narrativa de que a manifestação de 7 de setembro representava a popularidade de Bolsonaro e o sucesso de seu governo, como apoiado por grande parte da população – a despeito das pesquisas de opinião pública que apontam rejeição de até 64% (Atlas Político em 6 de setembro).
A pauta central reivindicada pelas bolhas apoiadoras do Presidente é de que foi uma manifestação contra as prisões arbitrárias, a favor da liberdade de expressão, sendo o “Dia D do Bolsonarismo”. Análises das postagens demonstram que havia realmente um sentimento de que a manifestação poderia levar a uma mudança dos rumos do País, com o fechamento do congresso e STF e uma “intervenção militar constitucional”. O sentimento que transparece nos comentários de muitos dos apoiadores é de pertencer à “família Bolsonaro”, demonstrando um apoio irrestrito e estando prontos para justificar quaisquer ações do Presidente.
Postagens também indicavam que foi “o maior protesto que o Brasil já viu”, sem citar “golpe” ou “ação antidemocrática”, ressaltando que houve grande manipulação da mídia tradicional “mentirosa e propagadora de fake news” sobre os números totais do evento. Na manifestação da Av. Paulista, bem como em outras que ocorreram em favor de Bolsonaro pelo Brasil, observou-se cartazes com frases de apoio em inglês e outros idiomas, demonstrando uma preocupação dos manifestantes com a cobertura da mídia internacional, com dizeres como “WE SUPPORT BOLSONARO” “NO COMMUNISM!”, “STF RESPECT OUR VOTE, GLOBO AND CNN TV LIE” reforçando a ideia de que a mídia brasileira seria “golpista” e “contra o presidente”. Muitos dos cartazes, e posts das redes sociais também pediam a volta das forças armadas e traziam dizeres em letras maiúsculas contra o STF e contra a instauração de um regime comunista como em “WE WANT THE DESTITUTION OF STF MINISTERS”, “HELP-US ARMED FORCES”[12].
Mesmo após a carta de retração do Presidente em seus ataques ao Ministro Alexandre de Moraes e demais poderes da República, co-escrita com o ex-presidente Michel Temer, as bolhas bolsonaristas conseguiram manter, de forma geral, a narrativa de que o Bolsonaro havia tomado a decisão correta e que haveria um grande plano por detrás, pois ele, como escolhido pela nação, sempre age em beneficio dos seus. Ao que parece, independente do resultado e comparecimento à manifestação, nas redes sociais bolsonaristas, o resultado já estava dado, e independente dos fatos e das manchetes da mídia tradicional nacional e internacional, Jair Bolsonaro continuará sendo saudado e acolhido como vitorioso pelos seus “seguidores”.
Considerações finais
O que podemos perceber é que há uma grande diferença na construção da narrativa sobre a atuação de Bolsonaro como presidente pelos seus apoiadores, que independente de suas ações, mantêm as bases de apoio. O descolamento da realidade e a construção de uma verdade paralela se ancora nos conceitos trabalhados de pós verdade, e ilustra uma realidade alternativa sobre os fatos partilhados por esse grupo que se encontra amparado e validado por seus pares dentro da câmara de eco bolsonarista construída pelas redes sociais.
Mesmo com a deterioração da base de apoio do presidente ao longo dos últimos meses demonstrado em pesquisas de opinião pública, há um apoio resistente de cerca de 30% do eleitorado que, mesmo com a inflação galopante, perda do poder de compra e desastrosa gestão da pandemia, parece não abrir mão do apoio a Jair Bolsonaro. No entanto, diferente de 2018, estes não são maioria e mesmo com os malabarismos factuais, robôs nas redes sociais e notícias fabricadas, é pouco provável que Bolsonaro consiga se reeleger em 2022. Por isso, Bolsonaro aposta no “tudo ou nada” do cabo de forças com o judiciário para pelo menos manter-se como mártir, frente ao seu nicho de eleitores cada vez mais reduzido. E, embora as bolhas bolsonaristas esperneiem, bradem e tentem cada vez gritar mais alto, estas não conseguem romper os limites da radicalização que criaram em seus próprios filtro bolha nas redes sociais. E assim, o 7 de setembro de 2021 que na ótica de seus apoiadores seria o “Dia D do Bolsonarismo”, marca o ápice de um movimento antidemocrático que, embora incômodo e barulhento, dificilmente conseguirá manter-se no poder.
Referências Bibliográficas
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[1]Levantamento da FGV/DAPP apontou que apenas no Facebook houveram mais de 400 mil compartilhamentos da imagem que atribuía ao candidato Fernando Haddad (PT) a criação do chamado “Kit Gay”. Mesmo frente à proibição e derrubada de propaganda eleitoral de Jair Bolsonaro em decisão do TSE na data de 16 de outubro, novos links e imagens sobre esta fake news foram divulgados, atingindo mais de 100 mil compartilhamentos entre o dia 16/10/2018 e 22/10/2018. Já a fake news mais compartilhada das eleições foi sobre fraude nas urnas eletrônicas, chegando a 3.341.621 menções entre Facebook e Twitter entre 22 de setembro e 21 de outubro de 2018 (RUEDIGER, 2018).
[2]Em 07/10/2021, o Brasil somava aproximadamente 599 mil mortes pela Covid-19 (G1, 2021).
[3] O artigo completo pode ser acessado em: https://rpcp.pt/index.php/rpcp/article/view/89/59 Acesso em: 04 de out. 2021
[4] O relatório completo pode ser acessado neste link: https://static.poder360.com.br/2021/05/infodemia-artigo-19.pdf acesso em: 04 de out. 2021
[5] O inquérito n. 4.781, chamado de inquérito das fake news, corre sob sigilo de justiça. Pautado pelo Min. Alexandre de Moraes tem como objetivo a investigação de notícias fraudulentas, falsas comunicações de crimes, denunciações caluniosas, ameaças e demais infrações que atinjam a honorabilidade e a segurança do STF e de seus membros. Dentre os investigados estão o Presidente Jair Bolsonaro e diversos integrantes de sua família, Roberto Jefferson e outros aliados do Presidente. (STF, 2021).
[6] O inquérito 4.828 foi aberto pelo ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, e investiga o financiamento de grupos que promovem atos antidemocráticos pelo País. Os principais investigados são os sócios do portal Terça Livre – Allan dos Santos, Bruno Ayres e João Bernardo Barbosa – além de políticos bolsonaristas como Bia Kicis (PSL-DF), Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) e o já réu, Deputado Federal Daniel Silveira (PSL-RJ) (ROCHA; TEIXEIRA, 2021). Recentemente o inquérito foi arquivado e incluído na investigação 4.781, uma vez que os investigados são, em grande parte, os mesmos. (FREITAS, 2021)
[7] As exceções seriam postagens que violassem o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), pedidos dos próprios usuários ou de terceiros e alguns casos que configuram crimes específicos.
[8] Para descrição dos pontos problemáticos da MP 1060/2021, recomenda-se a leitura da Nota Técnica construída pelo Instituto Liberdade Digital, disponível em: http://www.institutoliberdadedigital.com.br/site/2021/09/nota-tecnica-a-mp-no-1-068-21/ Acesso em: 07 out. 2021.
[9] Outra pauta frequente de Bolsonaro e seus aliados políticos vem sendo a narrativa de que as urnas eletrônicas são passiveis de manipulação, e que as eleições de 2018 teriam sido fraudadas. Sem apresentar provas de tal alegação, repetidas falas do Presidente impulsionaram o retorno da desinformação sobre o processo eleitoral nas redes. A pauta foi votada pelo Congresso nacional em agosto de 2021, e foi arquivada pois não obteve o mínimo de 308 favoráveis à sua implementação .
[10] A íntegra do discurso de Jair Bolsonaro em 7 de setembro de 2021, na Av. Paulista, pode ser acessado em: https://www.poder360.com.br/governo/leia-a-integra-do-discurso-de-bolsonaro-no-ato-de-7-de-setembro-em-sao-paulo/ Acesso em: 07 out. 2021.
[11]PODCAST DO MANCHETÔMETRO. #64 M Facebook e as manifestações de 7 e 12 de setembro. Entrevistados: Andressa Liegi Costa e Lucas Loureiro Entrevistadores: André Madruga., 28 de setembro, 2021. Disponível em: https://open.spotify.com/episode/38J6475YvHo8lnbd8G8Cbz?si=8uX3WoMoReqpPybB0-AOsg&dl_branch=1 Acesso em: 7. Out 2021.
[12] Os cartazes podem ser encontrados nessa reportagem do G1. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/09/07/fotos-atos-pro-bolsonaro-no-7-de-setembro.ghtml Acesso em: 07 out. 2021.