Este primeiro caderno da coleção Cadernos Fundamentais seleciona três diferentes textos para observar e interpretar, a partir de acontecimentos concretos, as exceções capazes de erodir direitos e garantias democráticas.
O texto central para promover esta discussão é o artigo “Do significado institucional do novo regime de pagamento de precatórios, instituído pelas emendas 113/114-2021”, de Rogerio Viola Coelho. Este artigo tem muitas propriedades, mas a principal delas é conduzir de modo didático para uma reflexão sobre a brutalidade (configurada nas emendas 113/114) do ataque aos direitos e aos princípios que asseguram a realização democrática baseada na igualdade e na inviolabilidade dos direitos. De modo muito claro foi traçado um panorama sobre a violação de direitos contida na instituição das emendas que versam sobre o pagamento de precatórios. Como demonstra o autor, viola o direito à propriedade, ao devido processo legal, ao acesso à justiça e à igualdade perante a lei. Essa condução didática é importante porque a princípio, pelo senso comum, o “atraso” nos pagamentos ou bloqueio aos pagamentos não parece ser uma ação tão danosa. O autor ilumina esse aspecto com evidências significativas, apresentando os contornos da brutalidade de quem é atingido duplamente, pois fica sem o abrigo da justiça, mas ao mesmo tempo padece dos instrumentos que a justiça fornece com força coercitiva aos seus credores. Outro efeito é a transferência de renda de baixo para cima. Tal exemplo tem a virtude de materializar os macro princípios que concebem a igualdade como a pedra angular de todo o edifício constitucional, pois essas situações de exceção e de desigualdade são incompatíveis com a ordem de valor superior do ordenamento jurídico que informa todo ordenamento positivo.
Os direitos só se realizam se houver a premissa fundamental da igualdade formal e a garantia da inviolabilidade dos direitos. A Democracia existe através da efetivação de direitos, de acordo com dois autores citados (GENRO e FERRAJOLI), para os quais assim fica consagrado o direito à igualdade. Esse preceito não contém uma única dimensão, como o texto enfatiza. Por um lado, exige a igualdade de tratamento (igualdade formal) para não ser juridicamente tratado diferentemente de quem se encontra na mesma situação. Por outro, impõe a proibição de discriminação por motivos específicos e expressamente rejeitáveis, incompatíveis com a dignidade humana. Esse princípio exige, principalmente, que os poderes públicos promovam as condições e removam os obstáculos para que a igualdade seja real e efetiva. Ou seja, todos são iguais perante a lei e têm, indistintamente, direito a igual proteção da lei. O texto nos conduz por uma perspectiva histórica mostrando que essas dimensões se originam na França do século XVIII e se transformam numa espécie de cânone da razoabilidade, proporcionalidade e adequação. A igualdade na lei não é apenas um limite formal, mas também material, que afeta o conteúdo da Lei. A igualdade na aplicação da lei pressupõe que os poderes constituídos (governos, administrações, legisladores) no exercício das suas funções, não devem conceder tratamento diferenciado aos que se encontrem em mesma situação ou submeter a ações arbitrárias. A reflexão empreendida no texto denuncia o abuso para reformar cláusulas pétreas que são guardiãs de garantias fundamentais. Ou seja, abuso de competência dos poderes constituídos para instituir regime de exceção por meio de uma emenda.
A partir daí, os argumentos conduzem para a hipótese de que há um movimento de equiparação dos poderes constituídos ao poder constituinte. Seria um retorno à sobrevalorização do atributo de soberania do Estado. Ou dito de outro modo, um retorno a uma lógica absolutista. Trata-se de um retrocesso, já que a supremacia da constituição é a mais importante inovação na estrutura da legalidade constitucional, fruto de um arranjo institucional para conter regimes neofascistas que poderiam retornar via eleitoral. Tem fonte numa ideologia liberal a ideia de retorno à soberania perdida do Estado. Os neofascismos esvaziam direitos pela via das reformas constitucionais. Ao mesmo tempo, a rigidez constitucional é respaldada pelo sistema de controle da constitucionalidade, abrigada no Tribunal guardião da Constituição. Nessa ordem, os mandatários eleitos não têm poderes gerais e discricionariedade para atacar direitos, mas assumem competências específicas (lembrando do freio pensado para impedir retorno do nazifascismo). A democracia Constitucional só será realizada na medida em que os direitos forem efetivados e os legisladores devem atuar na dimensão material da supremacia constitucional.
Em síntese, o autor mostra a gênese das Constituições surgidas nos países que se libertaram do nazifascistas e foram concebidas para resistir a eventual retorno do movimento (daí que foram chamadas de constituições antifascistas por Ferrajoli), destacando também a relevância da instituição dos Tribunais constitucionais nesses projetos.
A “PEC do calote” é um exemplo concreto de que isso está sob risco e sob ataque. E é um alicerce fundamental. No entanto, o caminho de resistência apontado é a necessidade de mobilização da sociedade organizada.
Nesse ponto, destacamos o texto “A sociedade civil pela democracia”, de Fernando Abrucio, originalmente publicado no jornal valor Econômico, em julho deste ano. Nele, o autor defende que para resistir a possíveis ações autoritárias de líderes políticos e forças militares, os cidadãos não podem agir de forma fragmentada. Segundo o cientista político, a democracia brasileira chegou ao seu limite e o risco foi compreendido pelos países democráticos presentes em uma reunião convocada pelo próprio presidente brasileiro para atacar o sistema eleitoral do país. Na opinião do autor, o (Tribunal Constitucional (STF) tem sido a única instância capaz de barrar as iniciativas autoritárias de toda ordem, mas as demais instituições (Congresso e estados subnacionais) se mostram incapazes de frear as ameaças. Portanto, é chegada a hora de colocar novamente a sociedade civil no centro da política brasileira, por pelo menos quatro razões: só a sociedade civil organizada será capaz de convocar lideranças de vários campos da vida social e com diversidade de visões de mundo; é preciso entregar apoio social às instituições de Justiça e aos políticos que querem proteger a democracia; há necessidade de angariar apoio da comunidade internacional e por fim, é essencial fortalecer organizações que reúnam lideranças e grupos representativos em torno da democracia. Abrúcio caracteriza a sociedade civil organizada como guardiã da democracia e parteira de um debate plural de ideias.
Tarso Genro no texto “Do direito e da exceção dentro do ajuste” alerta que a garantia do funcionamento da ordem jurídica como protetora da efetividade de direitos tornou-se mais complexa no século XX, na medida em que novos atores sociais e sujeitos de direitos começaram a esculpir nas respectivas Constituições as marcas da sua presença na produção, na política, na cultura e na vida democrática das suas nações. Tarso propõe a questão de até que ponto as “exceções”, dentro da democracia, podem ser legitimadas pelo Estado de Direito. Para o autor, no Brasil essa questão tem tipicidade, porque há um constituir da constituição silenciado, sob um manto de baixa constitucionalidade. Criticar em profundidade a “exceção”, na ordem global do capital financeiro em curso, destaca o texto, é imprescindível para resistir a uma saída conservadora da crise do Estado e da representação.
A seguir os textos na íntegra. Boa leitura.