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Entre racismo, barbárie e violência: justiça e segurança pública no Brasil do bolsonarismo

Lígia Mori Madeira (1) e Rochele Fellini Fachinetto (2)

Doutoras em Sociologia e professoras da UFRGS

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Na semana em que deveríamos escrever sobre direitos fundamentais e seguranca pública, na véspera do Dia da Consciência Negra, dia aliás que deixou de ser feriado em Porto Alegre há alguns anos, somos pegos, não de surpresa, mas de perplexidade, com a indecência, desumanidade, torpeza de um assassinato que ceifou mais uma vida negra em um país cuja mortalidade desse grupo social é estarrecedora, ainda mais se comparado ao das parcelas brancas da população.

Aquele que deveria ser então um texto teórico, a discutir princípios constitucionais e localizar na doutrina a tese ainda em debate sobre se segurança pública pertence ou não ao rol de direitos fundamentais, demonstrou ter perdido o sentido.

Optamos por um texto que, para além de uma discussão sobre possíveis explicações para termos chegado onde chegamos, tentou desatar os nós nas gargantas de pesquisadoras que enxergam cotidianamente números de uma violência brutal, enxergam a cor de suas vítimas, mas têm poucas armas além das análises e da capacidade prospectiva de dizer: vai acontecer de novo, dia após dia.

Para não dizer que não falamos de flores, há uma discussão na literatura jurídica sobre a viabilidade de se considerar segurança pública um direito fundamental. Reside tal dúvida, a nosso ver, apenas no equívoco de ainda se considerar segurança pública em suas acepções mais restritivas, que remetem à ideia de preservac?a?o da ordem pu?blica. Considerando-se concepções mais alargadas, como a da segurança cidadã, não parece residir qualquer dúvida sobre aquilo que está disposto explicitamente em nossa CF/88 em seus art. 5 e 6.

Mas para além do que resta em lei, no mundo real gerações de direitos ainda persistem em níveis completamente distintos na sociedade brasileira. Grupos sociais excluídos, a despeito de terem acessado precariamente direitos sociais  de segunda geração por meio de políticas públicas de participação, saúde, educação, trabalho, habitação e assistência (os direitos de bem-estar), restaram muitas vezes sem os direitos de primeira geração, aqueles que correspondem ao dever de não fazer do Estado, de prestação negativa, garantindo direito à vida, à liberdade, à propriedade, à manifestação, a expressão, ao devido processo legal, embora com acesso garantido ao voto. Que dirá então da terceira geração, aquela que responde por fraternidade e solidariedade, por preocupação com as gerações presentes e futuras em termos de progresso e desenvolvimento, e é onde se situaria a segurança pública?

Se vivenciamos no Brasil tragédias como a(s) do Carrefour, que reproduz o caso Floyd americano em uma sociedade também marcada pelo racismo, é sintoma de que os avanços formais pouco efeito tiveram e se, como aponta a doutrina, direitos fundamentais são reflexos de valores objetivos da comunidade (Sarlet, 2007), é justamente a dimensão valorativa que parece estar em crise na sociedade brasileira.

Se o tema dos direitos fundamentais está diretamente relacionado ao conceito de Estado Democrático de Direito, para compreender o que acontece no Brasil de hoje é preciso voltar no tempo e retomar as teses que inauguram o debate sobre violência urbana em um país (e em um continente) saído de experiências autoritárias, de ditaduras, chegando formalmente à democracia sem lidar de maneira substantiva com as mazelas e legados daquele período, ou seja, reside na formação de nosso EDD o cerne da discussão.

Parece-nos que a obra Democracia, violência e injustiça: o (não) Estado de Direito na América Latina (de O’Donnell, P. S. Pinheiro e Juan Mendez, 2000) marca esse debate para pensar nossas instituições de justiça e sua inefetividade naquele momento em garantir direitos recém constitucionalizados para amplas parcelas da população que continuavam à margem do acesso e da justiça. A situação retratada era ainda pior – e isso pouco mudou – quando olhávamos para a provisão de acesso aos grupos mais vulneráveis, dentre eles o de réus em processos criminais, já majoritariamente negros na época.

Pois, passados trinta anos, a literatura em sociologia e principalmente a Ciência Política Latino-Americana tem retomado esse tema da transição democrática, incluindo aí a (falta de) justiça transicional e a consolidação do Estado de direito que marcaram sua produção no final do século passado. Preocupações fundantes das áreas de violência e justiça têm sido rediscutidas em um contexto de crise e de ameaça às democracias jovens e, agora infelizmente se sabe, pouco consolidadas.

Uma das teses desenvolvidas para compreender os gaps entre regras escritas e as trajetórias políticas em prática, tensões entre as promessas de igualdade política e as realidades de desigualdades econômicas e sociais que são uma constante fonte de instabilidade para os regimes latino-americanos, é a da fraqueza institucional, desenvolvida recentemente por Daniel Brinks, Levitsky e Murillo et al. (2019).

Ela minaria os esforços em usar a lei e as políticas públicas para combater desigualdades multifacetadas, uma vez que instituições não seriam uniformemente positivas e leis criaram desigualdades tão frequentemente quanto as combateram. Haveria alguns padrões encontrados quanto à fraqueza institucional: contextos em que a independência judicial não extrapola a condição de jure, clara distinção entre o welfare formal e as realidades informais, que implicaria tolerância estatal com atividades ilegais, pouca realização de direitos sociais aos mais pobres, variações significativas nos resultados de políticas públicas, assim como instabilidades institucionais resultam em desenhos eleitorais movidos por auto interesse, geralmente das elites.

Os atores em ambientes de fraqueza institucional poderiam obter mudanças substantivas alterando os níveis de enforcement e compliance em relação a regras, geralmente através de reinterpretação de metas institucionais, sem necessariamente alterar estruturas formais que residiam muitas vezes intactas.

Os autores sustentam que, embora oficiais do Estado procurassem forçar o cumprimento do direito, frequentemente a noncompliance ocorreria justamente pela escolha desses oficiais em um engajamento em enforcement seletivo, aplicando a lei a certos grupos de indivíduos e não a outros. O desenho institucional permitiria vasta discricionariedade à implementação por governos locais e burocracias.

O conceito de seletividade descreveria reforços intermitentes que não seguiram um padrão identificável, mas que se adequaram a públicos-alvo específicos. E uma fonte identificável de noncompliance e instabilidade encontrada na região seria justamente o mecanismo da interpretação judicial (Brinks et all, 2019, p. 25).

Um importante debate aplicado exclusivamente à análise do panorama da violência no continente latino-americano tangencia alguns desses aspectos enfocados acima a respeito da fraqueza institucional. Michel Misse, por exemplo, têm apontado uma disjunção dessa vez entre Estado e sociedade, fruto de um volume tal de exclusão social, desigualdade de direitos civis, políticos e sociais, pobreza persistente e incapacidade de acessar canais de representatividade no Estado, que explicaria em grande parte os altos níveis de corrupção no continente, bem como as formas de normalização repressiva que o Estado desenvolve para lidar com suas populações (Misse, 2019, p. 24).

Misse retoma a tese de O’Donnell quanto às democracias de baixa intensidade, que se alternam com ditaduras civis e militares, populistas e autoritárias, que indicariam fraqueza do Estado ou ineficácia das agências e instituições estatais encarregadas da regulação do mercado, do controle das forças armadas e da administração da justiça, mas adensa a essa análise a incorporação do conceito de mercadorias políticas, responsável por descrever um conjunto variável de ilegalismos de diferentes graus de tolerância, e que viabilizam, por fora do controle estatal, trocas de mercadorias políticas de diferentes valores, desde aquelas produzidas por conveniência das partes, como o clientelismo e o tráfico de influência, até as extremas, que praticamente torna compulsória a troca de mercadorias políticas como a chantagem, a extorsão e proteção sob ameaça.

É essa a explicação de Misse para a emergência e a atuação de grupos paramilitares, milícias, grupos de extermínio que nascem do Estado e alimentam-se dele enquanto poder e impunidade, impondo a lógica da sujeição criminal a populações socialmente excluídas, mercados informais e ilegais e mercadorias políticas constituindo a dimensão central da acumulação social da violência que opera nos interstícios dessa separação entre Estado e sociedade.

Misse sustenta, na esteira de inúmeros cientistas sociais que buscaram descrever e conceituar essas disjunções e diferenciais estatais ou desigualdades, que entre o que a lei literalmente forma e as práticas que negam, abre-se toda uma rede de possíveis interpretações, a critério da subjetividade de policiais, procuradores e juízes, que reproduzem, no plano das práticas, o que na sociedade faz-se habitualmente, mesmo sendo contra a lei (Misse, 2019, p. 31).

O que poderia explicar essa realidade quando olhamos especificamente para o Brasil? É  preciso revisitar Kathryn Sikkink (2011) e sua justiça de cascata para pensar na circularidade vivenciada pelo Brasil na relação entre justiça e segurança pública. A autora vem desde o início da década de 2000 investigando os julgamentos de direitos humanos e seus possíveis efeitos na construção da democracia, do fortalecimento do Rule of Law, para além da provisão de punição e justiça às vítimas, rompendo com a impunidade. Ela construiu uma grande base de dados incluindo todo tipo de processos de direitos humanos transicionais, levados a cabo em contextos democráticos, mas referentes a eventos ocorridos durante regimes autoritários prévios.

Quando a autora publicou sua obra, a Argentina figurava como o país com o maior número de processos por ano, sendo líder em justiça transicional, assim como a região latino-americana distinguia-se por ter feito primeiro e ter mais de 50% dos processos, bem como a instauração de comissões da verdade.

As evidências encontradas pela autora para a América Latina foram de que as soluções de justiça transicional não foram nem duráveis nem mutuamente exclusivas, e a passagem do tempo não atenuou senão encorajou vítimas de outros países a rever o passado.

Mas o que é muito intrigante, e ajuda-nos a afirmar o papel de retomar a tese de Sikkink, é a posição do Brasil em relação às violações de direitos humanos cometidas durante o regime militar iniciado em 1964 pela manutenção da Lei de Anistia, julgada constitucional, a despeito da decisão da Corte Interamericana de DH e pelo não processamento e condenação das violações, contribuindo para uma cultura de impunidade que poderia contribuir para explicar altos níveis de violações atualmente, incluindo violência e letalidade policial. Brasil seguiu sendo um outlier no continente também por não ter submetidos os militares ao controle civil.

Estudos de cultura política têm demonstrado que o brasileiro mantém posicionamentos reacionários e conservadores e a justiça de cascata ajudaria a compreender tais convivências com violações ao longo da história brasileira.

Soma-se a isso as tentativas, na maioria das vezes fracassadas, de lidar com o fenômeno do aumento das taxas de criminalidade violenta, presente desde o retorno à democracia, com legislações ampliando o rol punitivo e instituições de justiça aumentando as malhas do sistema penal, com uma ampliação de taxas de encarceramento seguindo as tendências mundiais e voltadas a grupos seletivamente escolhidos.

A despeito do desenvolvimento e da institucionalização de políticas públicas de segurança, regidas por princípios de segurança cidadã, com perspectivas preventivas concomitantes a tentativas de modernização do eixo repressivo, a impossibilidade de reformas substantivas nas polícias, ao mesmo tempo em que o fomento à privatização da segurança privada, não apenas pouco controlada, mas dependente justamente dos mesmos profissionais e de sua formação e atuação seletiva em relação ao público-alvo a “proteger” acaba dando causa a fatos como o da morte de Beto Freitas.

É preciso incluir a um caldo que já estava prestes a entornar, o tempero que faltava: uma inflexão na forma de lidar com a segurança pública tanto na ordem da prática quanto do discurso no Brasil dos últimos anos, intensificada no que a literatura vem conceituando como o fenômeno do bolsonarismo. A primeira é revelada pelos dados de violência policial e seu incremento ao longo dos últimos anos. Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2019), em 2018 ocorreram 6220 mortes por intervenções policiais, o que correspondeu a um crescimento de 19,6% em relação a 2017. Já em 2019, esse número é ainda maior, chegando a 6357 mortes, correspondendo a 13,3% das mortes violentas intencionais no país (FBSP, 2020).  Um segundo aspecto tem a ver justamente com a mudança no padrão discursivo e nos comandos e permissividades dadas por aqueles que encabeçam posições de destaque no Executivo e na formulação e implementação de políticas públicas na área.

Os fenômenos da violência no Brasil são fortemente marcados pelo componente racial, outro elemento fundamental para compreendermos o episódio brutal que ocorreu no supermercado Carrefour.

Segundo recente infográfico produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2020), no período compreendido entre 2008 e  2018 enquanto o número de homicídio contra pessoas não negras caiu 12,0%, o homicídio de pessoas negras cresceu 11,5%. O padrão se reproduz quando se trata de morte de mulheres negras, que cresceu 12,4% enquanto que para as mulheres não negras houve uma redução de 11,7% evidenciando como essa forma de violência está fortemente demarcada por marcadores de gênero e raça, revelando também fragilidades nas políticas públicas de enfrentamento à violência contra as mulheres, sobretudo às mulheres negras. Os negros representam 74,4 % das vítimas de violência letal no país e 66,7% da população carcerária, apesar de corresponderem a 56,7% da população brasileira. Ademais, em 2019 negros foram 65,1% dos policiais assassinados; 79,1% das vítimas de intervenções policiais com resultado morte; 74,5% das vítimas de homicídio doloso; 68,3% das vítimas de lesão corporal seguida de morte e 55,8% das vítimas de latrocínio (FBSP, 2020).

Esses dados evidenciam uma das facetas mais brutais e cruéis do racismo estrutural na sociedade brasileira. O assassinato de João Alberto Silveira Freitas não constitui ato isolado, mas é antes parte constituinte de uma violência sistemática que tem componentes raciais, ou seja, que não está igualmente distribuída no tecido social. Aqui retomamos Michel Misse (2010) para pensar nas práticas de sujeição criminal, que consistem em atribuir a determinados sujeitos uma subjetividade criminosa, independente de seus cursos de ação. O “sujeito criminal” que é produzido pela interpelação da polícia, das leis penais e da moralidade pública, não é qualquer sujeito incriminado, mas um sujeito com perfil social específico, cuja morte ou desaparecimento podem ser amplamente desejados por essa moralidade pública.

Retomando o argumento de que direitos fundamentais são reflexos dos valores de uma sociedade, é preciso olhar com otimismo, embora ainda contido, para as manifestações que vem demonstrando a intolerância ao racismo, especialmente ao exercido por aqueles responsáveis pela manutenção à ordem. É cedo para afirmar, mas tal qual em outros contextos, parecem ser elementos capazes de impor mudanças necessárias à sociedade brasileira e sua disjunção entre o real e o legal.

 

Referências

BRINKS, Daniel M.; LEVITSKY, Steven; MURILLO, Maria Victoria. Understanding institutional weakness: power and design in Latin American institutions. Cambridge University Press, 2019.

FBSP. Anuário Brasileiro de Segurança Pública: Fórum Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo. Ano 14, 2020.

FBSP. Anuário Brasileiro de Segurança Pública: Fórum Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo. Ano 13, 2019.

ME?NDEZ, J. E.; O’DONNELL, G.; PINHEIRO, P.S. (Org.) Democracia, viole?ncia e injustic?a. O na?o-Estado de Direito na Ame?rica Latina. Sa?o Paulo: Paz e Terra, 2000.

MISSE, Michel. Alguns aspectos analíticos nas pesquisas da violência na América Latina. Estudos Avançados, v. 33, n. 96, p. 23-38, 2019.

MISSE, Michel. Crime, sujeito e sujeição criminal: aspectos de uma contribuição analítica sobre a categoria “bandido”. Lua Nova [online]. 2010, n.79, pp. 15-38.

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 8. ed. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2007.

SIKKINK, Kathryn. The Justice Cascade: How Human Rights Prosecutions Are Changing World Politics (The Norton Series in World Politics). WW Norton & Company, 2011.

 

[1]Doutora em Sociologia e Professora do Departamento de Ciência Política da UFRGS. Coordenadora do PPG em Políticas Públicas da Universidade e do Núcleo de Estudos em Direitos, Instituições e Políticas Públicas (NEDIPP-UFRGS) e pesquisadora do Grupo de Estudos Violência e Cidadania (GPVC-UFRGS).

[2] Doutora em Sociologia e Professora do Departamento de Sociologia e dos Programas de Pós-Graduação em Sociologia e Segurança Cidadã (UFRGS). Coordenadora do Grupo de Pesquisa Violência e Cidadania (UFRGS).

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