INTRODUÇÃO
A saúde foi estabelecida como um direito fundamental na Declaração Universal de Direitos Humanos, sendo, portanto, um direito que deve ser aplicado a todo e qualquer cidadão do mundo. Entretanto, no caso brasileiro, o direito à saúde apenas foi consagrado em fins do século passado. É na Constituição Federal de 1988 que a saúde é considerada um direito fundamental dos indivíduos, mais especificamente no âmbito dos direitos sociais, onde a saúde é parte de um conjunto de direitos (BRASIL, 1988).
Inserido neste contexto, o artigo 6º da Constituição prevê a saúde no âmbito dos direitos sociais e, sendo assim, por ser um direito fundamental, tal direito deve ser garantido pelo Estado brasileiro, conforme previsto no artigo 196 na Constituição Federal de 1988, onde se afirma que: a saúde é um direito de todos e um dever do Estado, que deve ser garantido mediante políticas sociais e econômicas (BRASIL, 1988). No âmbito dos direitos, a saúde é um direito de segunda geração, onde estão presentes os direitos sociais, culturais e econômicos, bem como os direitos coletivos ou de coletividades. Assim, estes nasceram abraçados ao princípio da igualdade (BONAVIDES, 2017).
Para dar conta desta prestação pelo Estado, foi criado o Sistema Único de Saúde, através da Lei nº 8.080 de 19 de setembro de 1990, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços. O SUS se sustenta nos princípios descentralização, atendimento integral e participação da comunidade, se estabelecendo com serviços organizados em níveis crescentes de complexidade, sendo a Atenção Básica de responsabilidade do Poder Executivo de cada município.
Nesse sentido, conforme um dos princípios do SUS, a responsabilidade pela saúde ocorre em todos os entes federativos, devendo ser descentralizada até o município e, inserido nesse contexto, é necessário que sejam fornecidas ao município as condições necessárias para exercer esta função. Por isso, para a validade deste princípio, cada ente federativo deve ser autônomo em suas atividades, respeitando os princípios gerais e a participação da comunidade. Ademais, ao Estado cabe estabelecer um conjunto de ações, que vão desde a prevenção até a assistência curativa, priorizando as atividades preventivas, mas não deixando de lado os serviços assistenciais.
Assim, considerando a saúde como um direito de todos e um dever do Estado, o presente artigo parte do pressuposto da relevância das capacidades estatais para a implementação de Políticas Públicas mais qualificadas e eficazes, chamando atenção para a importância do planejamento na fase de implementação de Políticas Públicas, sobretudo, nos municípios, onde a maioria das políticas públicas se materializa.
No que tange ao planejamento, trata-se de uma ferramenta capaz de ampliar a capacidade administrativa do Estado, qualificando a entrega das Políticas Públicas e, portanto, garantindo a consolidação dos direitos fundamentais preconizados no âmbito jurídico. Logo, é uma ferramenta valiosa para pensar a implementação da Política Pública da Saúde, máxime em um contexto de pandemia e, especialmente, buscando saídas para a implementação da Política Pública da Saúde após o atual período.
Considerando tais pressupostos, buscamos explorar neste artigo a forma como o planejamento tem sido executado pela gestão municipal de saúde em Porto Alegre/RS, especificamente nas UBSs, no intuito de entender o processo de construção do planejamento nessas unidades e como pode colaborar com a implementação da política pública na “ponta”. O campo da saúde foi escolhido pois o mesmo é central para os objetivos de desenvolvimento social de um país. Conforme mencionado anteriormente, a Constituição Federal de 1988 o elencou como parte dos direitos sociais fundamentais, que deve ser garantido pelo Estado, a todos os cidadãos. Ademais, o Brasil é o único país com mais de 100 milhões de habitantes que assumiu o desafio de ter um sistema universal, público e gratuito de saúde, o que torna a tarefa de gerir e executar o sistema altamente complexa. Existem 145 milhões de pessoas dependendo da saúde pública brasileira, onde 100 milhões dependem da atenção básica, conforme relatado pelo ex-Ministro da Saúde, Arthur Chioro (BRASIL, 2015).
Dado o grau de complexidade para a gestão do SUS, há um conjunto de normativas federais que elencam a centralidade do planejamento de curto, médio e longo prazo, nos três níveis de governo, e sobretudo na implementação da política pública. Verificar como o planejamento se materializa no campo da atenção básica em âmbito local, permite avaliar como estão se articulando diferentes instâncias de gestão pública, ou níveis de burocracia, para levar a cabo tal tarefa. Além disso, possibilita uma reflexão crítica sobre validade e conexão dos instrumentos de planejamento com a implementação da política pública.
Isto posto, em termos metodológicos, tratou-se de uma pesquisa exploratória e descritiva, em que buscamos verificar, por meio de um estudo de caso em Porto Alegre/RS, no ano de 2017, como ocorre a prática de planejamento em um setor de política pública e que dilemas organizacionais os atores implementadores enfrentam para conectar tarefas de gestão às tarefas cotidianas por execução de serviços. O trabalho soma-se, portanto, ao esforço de outros que buscam desvelar a prática da implementação de políticas públicas locais, e como o reforço das capacidades de gestão, como o planejamento, podem colaborar. Em termos operacionais, foram realizadas entrevistas em profundidade, com uma amostra não probabilística de cinco (5) profissionais das UBSs de Porto Alegre que se voluntariaram em participar da pesquisa. As UBSs se localizam em três macrorregiões da cidade: centro, zona norte e zona sul de POA. Os entrevistados ocupavam distintos cargos nas unidades, sendo três (3) coordenadores de UBSs (três médicos) e duas (2) enfermeiras atuantes. As entrevistas buscaram, num primeiro momento, verificar se existe planejamento nas UBSs, o conhecimento do entrevistado sobre o tema, a importância atribuída a esse processo e como o cotidiano dos serviços é planejamento e organizado.
Para dar conta dos objetivos, nas páginas que seguem, trazemos uma discussão conceitual sobre o planejamento a articulação com o debate de capacidades estatais e suas conexões com a implementação de Políticas Públicas. Finalmente, analisamos o caso da política pública de saúde, explorando a importância dada pelos atores implementadores ao planejamento na prática da execução dos serviços.
2 Capacidades estatais e planejamento: ferramentas valiosas para as políticas públicas
Com a virada para o século XXI, o tema “capacidades estatais” ganha espaço no Brasil, em conformidade com o movimento latino-americano, que traz o “Estado de volta” (EVANS, 1993) para a recuperação das tarefas de desenvolvimento econômico e social. Naquele contexto, em que a maioria dos países latino-americanos estavam sob a liderança de governos de centro-esquerda, passou-se a revalorizar o papel do Estado na concepção, no planejamento, implementação e avaliação de políticas públicas, sobretudo, de inclusão e desenvolvimento social – uma das principais bandeiras de tais governos.
A partir desse movimento, a academia, junto com órgãos de pesquisa do governo, tais como o IPEA, passaram a desenvolver estudos para entender como as capacidades estatais afetam as ações governamentais e políticas públicas, assim como, que fatores produzem capacidades estatais: o contexto institucional, apoio e incentivos de outras esferas governamentais (GOMIDE; PEREIRA; MACHADO, 2017; GRIN, 2016). Com esse movimento, o sentido seguido pela academia foi na tentativa de desagregar o conceito de capacidades estatais para operacionalização e maior aplicabilidade.
Com efeito, em seu debate originário, o conceito de capacidade estatal nasce do interesse em compreender o papel do Estado no desenvolvimento, como parte da agenda da sociologia política da segunda metade do século XX (CINGOLANI, 2013). A segunda onda de trabalhos se embasa na concepção de autonomia do Estado e está fortemente enraizada na tradição weberiana, onde o poder coercivo da administração central e a formação de quadro de profissionais permanentes e insulados são centrais para a arrecadação e fortalecimento do Estado para “implementar metas e objetivos sobre a oposição de grupos sociais” (TILLY, 1975; EVANS, RUESCHEMAYER, SKOCPOL, 1985; EVANS, 1989). Nesses estudos originários sobre o tema, há em comum a preocupação dos autores com o papel do Estado na transformação de suas sociedades e economias e, com isso, certa hegemonia da abordagem weberiana, que postula a relevância de se ter uma burocracia neutra e insulada para alcançar esses fins.
Atualmente, uma nova geração de estudiosos, em especial latino-americanos, tem refletido acerca do conceito e suas aplicações, de forma que a noção de burocracias neutras e insuladas tem sido questionada. Se por um lado se interpreta como fundamental a construção de arranjos que possibilitem o fortalecimento do Estado para identificar problemas, formular soluções, executar ações e entregar resultados nas políticas públicas, e nesse processo, ter capacidade administrativa, fiscal, relacional, é indispensável, por outro, refletir sobre que tipo de Estado se deseja, para qual desenvolvimento é ainda mais importante. Pode-se sintetizar esse movimento com a seguinte questão: capacidade do Estado para o quê e para quem?
Nessa nova onda de debates, Fabián Repetto (2004) tem ressaltado a necessidade de refletir acerca do conceito e de sua operacionalização, para atender às demandas sociais dos Estados. Gomide e Pires (2014), Gomide e Boschi (2016), Celina Souza (2017) e Pinho (2017) situam a discussão sobre os desafios do Estado no contexto democrático e que se propõe à tarefa de retomar o desenvolvimento econômico e social. Gomide e Pires (2014, p.20) entendem que, para implementar políticas públicas de desenvolvimento, o Estado se sustenta em arranjos institucionais, que são condições de capacidades, ou seja, dotam o Estado de capacidade de execução para seus objetivos. Esses arranjos institucionais constituíram diferentes burocracias, níveis de governo, relação com a sociedade civil e partidos, que precisam ser coordenados na tarefa de implementação de políticas públicas.
Como pode-se notar, são variadas as formas de analisar as capacidades estatais, entretanto, no sentido de operacionalizar o conceito e permitir sua aplicação em pesquisas, pode-se interpretá-lo como a qualidade, habilidade ou aptidão que um Estado possui para alcançar um determinado fim, considerando suas variadas atividades e funções. Essas atividades vão desde a capacidade fiscal arrecadatória; a capacidade relacional, que diz respeito às habilidades do Estado de se articular com os diferentes grupos da sociedade, assim como a capacidade administrativa ou burocrática, que refere-se à existência de um corpo administrativo profissional, dotado de recursos e de instrumentos necessários para implementar políticas públicas (SOUZA, 2017). Sinteticamente, pode-se sustentar que, investigar capacidades estatais consiste em identificar as estruturas organizacionais, cuja ausência ou presença colaborem para a ação governamental (GRIN, 2017).
No caso brasileiro, a percepção sobre a importância de produção de capacidades estatais nos três níveis federativos (municípios, estados e União) tornou-se evidente desde a Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988), momento em que as políticas sociais foram situadas como prioridade nacional, dentro do processo de descentralização.
Buscando superar mais de cinquenta anos de centralização, oriunda do período autoritário, a Constituição Federal de 1988 alterou a distribuição de competências entre o governo federal, estados e municípios, em amplas áreas de políticas públicas e, sobretudo, para a provisão de serviços sociais, o que implicou em expressiva transferência de funções de implementação e gestão para os municípios. Tal processo demandou que os municípios voltassem suas atenções para a necessidade de construção de capacidades estatais locais, para fazer frente às novas exigências constitucionais. Entretanto, dado o contexto político e econômico pelo qual o país passava, em que a agenda reformista em torno das ideias neoliberais postulava o enxugamento do setor público e o ajuste fiscal, muitos municípios encontraram-se descapitalizados e com baixo apoio federal para estruturar suas máquinas administrativas, tornando a produção de capacidades estatais locais um desafio (PAPI, 2017).
O caso da saúde é ilustrativo desse processo. Com efeito, a municipalização da gestão dos serviços na área da saúde foi um dos objetivos situados no âmbito das reformas do governo federal, na década de 1990. No período imediatamente posterior (anos 2000), quase todos os municípios se encontravam habilitados no SUS, aceitando as normas da política de descentralização do governo federal (ARRETCHE, 2002). Consequentemente, a participação federal deveria manter seu foco no financiamento das políticas, enquanto o município tornou-se responsável pelos processos de gestão e implementação do SUS em âmbito local. Contudo, devido a trajetória de gestão da política pública de saúde ser amplamente centralizada e os municípios pouco terem se capacitado para receber tal conjunto de demandas, os limites enfrentados não foram poucos.
Especialmente nos anos 2000, um conjunto de novas discussões para reforçar o pacto federativo e a coordenação de políticas públicas na implementação ganha espaço privilegiado nos governos. Na academia, esse processo não é diferente. Preocupações como as capacidades locais para planejar, implementar e avaliar políticas públicas passam a incorporar a agenda de pesquisa mais atual sobre capacidades estatais (GRIN, 2017; PAPI et al., 2017). Nesse contexto, o planejamento foi dotado de grande prestígio, considerado como a ferramenta específica que dotava o Estado de capacidades de atingir seus objetivos, que naquele caso era: o crescimento econômico viabilizado pela modernização administrativa e da industrialização (HUERTAS, 1996; FRIEDMANN, 2006).
Entretanto, o sentido do planejamento desenvolvido pelo mundo ocidental no início do século XX não necessariamente seguiu esse propósito de projeção coletiva (social) de um futuro desejado. Ao contrário, pode-se afirmar que, tanto no centro quanto na periferia, entre os anos 1930 a 1980, estruturaram-se grandes aparatos centralizados de planejamento como sustentáculo de um modelo de Estado condutor do desenvolvimento econômico e produtor de políticas públicas (BIELCHOWSKI, 2004).
Apesar disso, entendemos o planejamento conforme a acepção de Matus (1993), que indica que este não deve ser desmontado, mas redesenhado e revalorizado, pois possui grande centralidade na orientação dos rumos das sociedades latino-americanas no novo contexto democrático. Para Matus, o planejamento é um dos principais instrumentos políticos e organizacionais de um Estado, na medida em que se propõe a projetar o futuro de forma sistemática, propondo objetivos e meios para operacionalização da mudança social. Trata-se portanto de um instrumento fundante da capacidade estatal, pois permite: 1) conhecer a realidade de forma complexa ao envolver e aproximar os atores que vivem a realidade da política pública no planejamento; 2) projetar o futuro de forma sistemática, propondo objetivos estratégicos e meios de viabilização do mesmo, diante da realidade complexa; 3) organizar a implementação de acordo com objetivos traçados pelos atores que participaram da formulação dos problemas, concebendo a complexidade que envolve o cotidiano de execução dos serviços, as mudanças de cenário e o papel dos atores implementadores. A partir desse cenário, defendemos que o planejamento capacita o Estado para consecução dos seus objetivos, por isso há inegável relevância em desenvolver tal ferramenta de gestão pública nos distintos níveis de implementação.
Para tanto, o autor elabora um novo paradigma de planejar, ao qual chamou de Planejamento Estratégico Situacional – PES-, pautado na maior participação dos atores sociais e na concepção de que a realidade é complexa e mutável. Nessa perspectiva os planos devem se transformar em peças que de fato colaborem com a capacidade de governar e implementar políticas públicas e não apenas sirvam como repertório de documentos técnicos engavetados. Para tornar aplicável essa metodologia de planejamento, o autor dividiu em quatro momentos a operacionalização do PES.
O momento explicativo diz respeito a compreensão da situação específica sobre a qual se deseja atuar. Nele, o conjunto diverso de atores envolvidos em um campo de interesse, selecionam os principais problemas a serem enfrentados, a partir da discussão de suas causas e consequências (HUERTAS, 1996). O momento normativo é quando se estabelecem as metas e as linhas de ação relacionadas a cada objetivo. É nesse momento que os diferentes atores agem para orientar o plano para a mudança que se quer obter, a partir da identificação e quantificação dos recursos necessários à realização de cada ação (HUERTAS, 1996). No momento estratégico, os atores verificam a viabilidade do plano, analisando os objetivos, recursos, tecnologia e organização que estão disponíveis e se é possível contornar os obstáculos políticos (HUERTAS, 1996).
Por fim, o momento tático-operacional refere-se à aplicação do plano, à sua operacionalização e gestão. Cabe salientar que a ação não é a mera execução do plano, mas uma adaptação, dadas as circunstâncias encontradas. Nesse sentido, o autor propõe instrumentos como a agenda do dirigente, tangendo atividades voltadas à manutenção do foco nas questões estratégicas, reconhecendo a tendência dos agentes a se ocuparem demasiadamente com problemas imediatos e de curto prazo. Também chama a atenção para a importância de um sistema de coordenação do andamento das ações, bem como, para o monitoramento das operações. Todos esses temas inserem-se no cotidiano de implementação de políticas, colaborando com a execução de atividades e concretização do futuro desejado.
Em especial, quanto ao tema da implementação de políticas públicas, é tácita a ideia de colocar em prática por meio de providências concretas, uma ideia, um plano, um projeto (FARIA, 2012). Tais providências passam tanto pela definição dos recursos materiais disponíveis, recursos institucionais e negociações políticas, quanto a interação entre atores, o que torna a tarefa de implementar políticas públicas altamente complexa. Entretanto, se por um lado sabe-se que estratégias de planejamento de políticas públicas, em nível meso, ou seja, nas secretarias municipais, são razoavelmente desenvolvidas no Brasil após a Constituição Federal de 1988, por outro lado, no contexto da execução na “ponta”, ainda há muito para avançar. É o que exploramos na sequência do artigo.
PLANEJAMENTO NA POLÍTICA PÚBLICA DE SAÚDE: CONFIGURAÇÃO, ATRIBUIÇÕES E PRINCIPAIS NORMATIVAS
Conforme já mencionado, a saúde como um direito de todos e um dever do Estado é preconizada pela Constituição Federal de 1988, tendo principal origem no movimento sanitarista (PAIVA; TEIXEIRA, 2014), levando à criação, em 1990, da Lei do SUS. No que tange às competências administrativas, há elementos ligados ao planejamento, quais sejam:
[…] cabe à União formular, apoiar a implementação e avaliar as políticas prioritárias em âmbito nacional, elaborar o planejamento estratégico do SUS, coordenar sistemas de alta complexidade, coordenar sistemas de laboratório de saúde pública, de vigilância epidemiológica e sanitária, formular a política de produção de insumos e equipamentos, promover a descentralização de ações e serviços de saúde e estabelecer e coordenar os sistemas nacionais de auditoria e ouvidoria (BRASIL, 2016, p. 40).
[…] aos estados, cabe a promoção da articulação sistêmica, planejamento e coordenação regional das políticas, ações e serviços de saúde, monitoramento e avaliação das redes regionalizadas e hierarquizadas no SUS, elaboração e sistematização dos planos de médio e longo prazo no âmbito estadual, fornecer apoio técnico e financeiro aos municípios nas ações de descentralização e coordenar a rede estadual de laboratórios de saúde pública e hemocentros (BRASIL, 2016, p. 40).
[…] aos municípios cabe planejar, organizar e avaliar a promoção local de serviços de saúde, gerenciar as unidades públicas de saúde, executar serviços de vigilância epidemiológica e sanitária, de alimentação e nutrição, de saneamento básico e de saúde do trabalhador, implementar a política de insumos e equipamentos em saúde, fiscalizar e controlar os procedimentos de serviços privados de saúde (BRASIL, 2016, p. 40).
Nos parágrafos acima, é possível visualizar as atribuições de cada ente. Ademais, também devem ser consideradas as atribuições comuns às três esferas, conforme segue:
[…] cabe às três esferas, de maneira conjunta, definir mecanismos de controle e avaliação dos serviços de saúde, monitorar o nível de saúde da população, elaborar normas para regular a contratação de serviços privados, gerenciar recursos orçamentários e financeiros, definir políticas de recursos humanos, realizar o planejamento de curto e médio prazo e promover a articulação de políticas e planos de saúde, entre outros (BRASIL, 2016, p. 41).
Desse modo, pode-se dizer que ficam à cargo da União as atribuições de natureza estratégica: a formulação, o apoio e avaliação. Os estados contam com tarefas relacionadas à articulação, coordenando as políticas, programas, ações e serviços. A prestação direta fica a cargo dos municípios (BRASIL, 2016, p. 41).
Existem normativas específicas que regem o planejamento do SUS, onde se destaca e Lei 8.080, de 1990, que trata da natureza ascendente do SUS, em seu artigo 36. Ademais, cabe destacar a Lei 8.142, de 1990, que trata das conferências de saúde (BRASIL, 2016). Também cabe citar a Portaria 2.135, de 2013, que estabelece as diretrizes do planejamento do SUS, observando os prazos do PPA, bem como a integração e coordenação do processo (BRASIL, 2016, p. 73-74). As normativas que deram origem aos princípios que norteiam o planejamento do SUS são basicamente orientadas pelas seguintes prerrogativas:
O planejamento consiste em uma atividade obrigatória e contínua, o planejamento no SUS deve ser integrado à Seguridade Social e ao planejamento governamental geral, o planejamento deve respeitar os resultados das pactuações entre os gestores nas comissões intergestores regionais, bipartite e tripartite, o planejamento deve estar articulado constantemente com o monitoramento, a avaliação e a gestão do SUS, o planejamento deve ser ascendente e integrado, o planejamento deve contribuir para a transparência e a visibilidade da gestão da saúde e o planejamento deve partir das necessidades de saúde da população (BRASIL, 2016, p. 85).
Apesar do planejamento ter sido situado como estratégico para a execução dos princípios do SUS, a partir de normativas federais, a colocação em prática do planejamento trata-se de um processo em construção, que difere em cada realidade. Dada a diversidade de municípios no Brasil, com desiguais capacidades fiscais e burocráticas (PAPI, 2014), a realidade do planejamento e de instrumentos de gestão de políticas públicas se conformam como um verdadeiro desafio.
Nessa lógica, estudos mostram que o planejamento em saúde, em nível local, ainda não é uma prática, e que há limites e desafios de institucionalização dos processos de planejamento em organizações de saúde, realizando-se em momentos pontuais, e que muitos ainda estão em períodos emergentes (BASSO, 1995; REZENDE, 2006; VILASBÔAS; PAIM, 2007; JESUS; TEIXEIRA, 2012).
Através da literatura sobre o tema, foi observado que é necessário repensar o planejamento e como o mesmo é realizado, uma vez que ele se mantém centralizado em esferas de burocracias de mais alto e médio escalão e com caráter normativo. Nesta perspectiva, deve-se pensar um plano que possua um caráter mais flexível (PUDELL; KLEIN, s/d) e sendo assim, o PES pode colaborar com o processo de desenho e implementação do plano (GONZÁLEZ, 2007; SCALERCIO; CZEPULA, 2007).
De outra banda, estudos também abordam a necessidade da competência técnica individual para a aplicação do planejamento em UBSs, somada à união da equipe e à visão sistêmica do processo e dos sujeitos envolvidos (POLIDORO; SOUZA, 2014).
Como pode se perceber os estudos corroboram que o planejamento nos distintos setores de políticas públicas é relevante como estratégia de gestão, capaz de trazer ganhos de implementação na “ponta”. Nas próximas páginas trazemos a análise empírica da construção do planejamento nas UBSs em POA.
O PLANEJAMENTO DA SAÚDE EM PORTO ALEGRE: UM ESTUDO NAS UNIDADES BÁSICAS DE SAÚDE
Após pesquisas bibliográficas, no âmbito do Manual de Planejamento do SUS e entrevistas com profissionais da saúde, trazemos os primeiros resultados sobre como o planejamento ocorre nas UBSs de Porto Alegre. Especificamente, buscamos verificar como a prática de planejamento em um setor de política pública ocorre. Isso nos permitiu levantar hipóteses para explorar em futuros trabalhos. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas que buscaram verificar se existe planejamento nas UBSs, o conhecimento do entrevistado sobre o tema, a importância atribuída a esse processo e como o planejamento é organizado na implementação das ações de atenção básica. O município de Porto alegre foi escolhido para o estudo de caso, dado seu histórico antigo de implementação da política pública de saúde e de seu sistema de planejamento, que data de 1984. Partimos do pressuposto que, dada essa trajetória prévia à Constituição Federal de 1988, a incorporação de práticas de planejamento na “ponta” seria relativamente desenvolvida.
Com efeito, o marco inicial do planejamento em saúde no município de Porto Alegre, se deu com a criação da Comissão Interinstitucional de Saúde de Porto Alegre – CIMS/Porto Alegre. Criada em agosto de 1984, constituiu-se como a instância local de planejamento, gestão e acompanhamento das Ações Integradas em Saúde, tendo como objetivo a busca da melhoria da qualidade dos serviços de saúde oferecidos à população. Após intenso processo de discussão que a administração de Porto Alegre estabeleceu com a população ocorreu o aprimoramento da CIMS, através de suas entidades representativas, como o sindicato de trabalhadores e associações de moradores. Sendo assim, a CIMS foi levada à constituição do Conselho Municipal de Saúde de Porto Alegre – CMS/POA, criado pela Lei Municipal Complementar 277, em 20 de maio de 1992. O CMS atua na formação e controle de estratégias de políticas de saúde, inclusive nos aspectos econômicos e financeiros, em caráter permanente e deliberativo.
No que se refere explicitamente ao planejamento das ações de saúde, a Secretaria Municipal de Planejamento Estratégico e Orçamento (SMPEO) foi criada em dezembro de 2012, a partir da unificação do Gabinete de Planejamento Estratégico (GPE) e do Gabinete de Programação Orçamentária (GPO). Essa unificação ocorreu devido a uma revisão dos impactos nas funções de cada secretaria e o nível de sombreamento e de lacunas, de modo a garantir melhores resultados para a sociedade.
O GPO havia sido anteriormente criado em 29 de dezembro de 2004, e estruturado em 27 de janeiro de 2005, sendo responsável pelas ações atinentes ao processo orçamentário da Prefeitura, como planejamento, programação, elaboração, acompanhamento e avaliação do Plano Plurianual (PPA), da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), da Lei Orçamentária Anual (LOA) e das normas de execução orçamentária. Já o GPE iniciou como uma Coordenação integrante da Secretaria de Gestão e Acompanhamento Estratégico, que a partir de 2005 assumiu as novas diretrizes da administração municipal para um projeto de que reunisse esforços para qualificar a prestação de serviços públicos, modernizar a máquina administrativa, melhorar a situação financeira da Prefeitura e otimizar recursos. Em 2010, passou a ser Gabinete de Planejamento Estratégico, vinculado ao Gabinete do Prefeito (PREFEITURA DE PORTO ALEGRE, s/d).
Essas etapas, nos últimos anos, tiveram o objetivo de adotar uma metodologia gerencial moderna, apoiada na identificação de desempenhos, objetivos e metas e, principalmente, com a possibilidade de ter a execução física e financeira dos programas de governo acompanhada em tempo real. A implementação da estrutura organizacional foi pensada de modo a promover a Transparência, Transversalidade, Territorialidade, Liderança (três Ts e um L) e, com base na relação com a sociedade, a Governança Solidária Local.
Em que pese as estruturas de planejamento institucionais terem um caminho relativamente antigo no caso da saúde de POA, sua instrumentação à gestão cotidiana das políticas públicas parece não gozar do mesmo status. Quando investigado a execução do planejamento nas UBS de POA, constatamos que há um conhecimento superficial do que é planejamento, conforme relato abaixo:
“planejamento é a organização do trabalho, e também saber das necessidades que temos no trabalho, e dentro disso, fazer uma organização diária e também, aqui no posto, em médio prazo.” (Entrevista 1)
Em relação à importância atribuída à prática de planejamento, todas as unidades pesquisadas atribuem grande importância à prática de planejamento, pois alegam que quando não há planejamento, não é possível saber se o que está executando e o que seria realmente necessário para ser executado. Atribuem tal importância ao fato de que há o conhecimento da não possiblidade de materializar o atendimento integral, sendo o planejamento uma ferramenta capaz de direcionar para o atendimento do que é mais importante. Desse modo, afirmam se não houvesse planejamento, seria muito pior.
“Não é muito sistematizado, no papel, por que já tem o plano municipal de saúde. O que fazem é pequenos planejamentos de como esta unidade vai alcançar estes objetivos. Planeja de acordo com o território e população.” (Entrevista 3)
“Considero o planejamento mais verbal, mais pontual, por que as coisas são muito dinâmicas. Então precisa se adaptar a isso, o que é ontem hoje não é mais.” (Entrevista 3)
Ainda, há o conhecimento de que a prática de planejamento colabora no trabalho da equipe, no sentido de que eles se sentem mais motivados em realizar as tarefas quando percebem que as coisas estão funcionando. Todavia, sua aplicação quase não se realiza na prática, seja pelas interrupções que vem designadas pelos níveis superiores de gestão, seja pelas intercorrências do dia-a-dia da implementação, conforme relatos de coordenadoras:
“é muito importante, mas falta planejamento, estamos sempre correndo atrás da máquina e, às vezes, algumas coisas planejadas vão por água abaixo por que as gestões vêm de cima dizendo que não podemos mais fazer.” (Entrevista 3)
“a estrutura física precária traz danos físicos, mas a falta de processos de trabalho traz a desorganização mental, que é muito mais silenciosa e difícil de lidar e está voltada à desorganização da unidade.” (Entrevista 4)
Grande parte das práticas aproximadas a um processo de planejamento ocorre em função de metas que já vêm estabelecidas pela prefeitura e por níveis superiores de gestão, não havendo uma análise situacional em profundidade para estabelecimento de práticas de planejamento nas próprias unidades, com os trabalhadores. Assim, o planejamento que vem sendo aplicado diretamente nas unidades não é construído pela equipe e usuários, tampouco sistematizado pela mesma. O que ocorre são pequenas estratégias de ação vinculadas aos objetivos que são repassados pela secretaria de saúde para a região, que seriam diretrizes de planejamento de trabalho. Por isso, as unidades realizam algumas micro estratégias elaboradas pelos funcionários da própria unidade, de acordo com o que estes acreditam ser necessário, com o território e a população. Há aqui uma clara tentativa de adaptação das deliberações “externas”, à realidade da política pública e das rotinas de trabalho, corroborando com a literatura acerca do papel fundamental dos burocratas de nível de rua para a materialização das ações. Por outro lado, evidencia-se a baixa participação dos desses atores nos processos de planejamento do trabalho. As reuniões periódicas que ocorrem exclusivamente com as gerências das unidades, confirmam essa ideia.
As reuniões de planejamento das ações em saúde ocorrem quinzenalmente, abrangendo os coordenadores de todas as unidades. Já no caso dos profissionais que atendem na “ponta”, as reuniões de equipe ocorrem uma vez por semana, com duração de duas horas, sendo a discussão circunscrita a assuntos internos de “casos”, uma vez que, mais de um profissional da saúde atende a mesma família, sendo necessário discutir alguns casos. Nestas reuniões semanais também são levantados objetivos e metas a serem cumpridas, referente a determinado período, como por exemplo, no mês de outubro foram realizadas ações sobre o tema “Outubro Rosa”. Entretanto, nem sempre esse planejamento conecta-se com os macro objetivos delimitados pela secretaria, tampouco pela coordenação. Tendo essas questões em vista, nestas reuniões são organizadas as responsabilidades dos profissionais referentes às tarefas correspondentes a um determinado objetivo. As equipes costumam retomar, nas reuniões posteriores, assuntos e ações que ficaram pendentes na reunião anterior, no intuito de verificar se determinada ação está ocorrendo conforme planejado, como se observa nos relatos abaixo:
“é avaliado, por exemplo, daqui um mês se isso foi executado ou não. Não há tanta avaliação mais em papel, sistematizado, etapas definidas em papel e tal, é definido mais em reunião e retomado depois.” (Entrevista 3)
Sobre os atores envolvidos na elaboração e execução do planejamento, as entrevistas demonstram que quem geralmente pensa e elabora as estratégias de ação são os coordenadores das unidades e os enfermeiros. Eles levam para as equipes as ações planejadas, podendo a equipe posteriormente, trazer contribuições para a melhoria das estratégias. Não há participação dos usuários nesse processo, conforme os relatos abaixo:
“todos podem formular e executar o planejamento. Ele ocorre pela vontade própria de cada profissional da unidade.” (Entrevista 3)
“O planejamento é feito pela vontade própria de cada usuário […] Sei sobre planejamento, mas não consigo aplicar, pois a equipe não está preparada. Isso vem sendo trabalhado nas outras gestões. Hoje, o planejamento e as decisões em equipe são mais priorizados do que antes, mas no momento atual perdeu o foco.” (Entrevista 2)
Também é relevante entender o fluxo de planejamento em relação ao PPA, pois ele define o que será destinado ao sistema de saúde em determinado período. Nesse casso, constatou-se que a secretaria de saúde apresenta as ações que se propõem, levando essas questões para os conselhos distritais de saúde, onde as metas são repassadas para os coordenadores das unidades, que, consequentemente, podem repassá-las para as unidades, onde os profissionais podem contribuir.
“tem toda a questão política, um novo governo tem suas próprias metas […] Agora terá uma nova reunião, novo momento de apresentação, onde ainda se pode fazer alterações. Temos acesso ao PPA, sabemos o que consta e ele está em discussão.” (Entrevista 3)
Nesse caso, o fluxo de elaboração do planejamento em saúde não ocorre das equipes da “ponta” e usuários, para as coordenações, a secretaria e assim para o PPA. Embora evidencie-se a participação de distintos atores, o fluxo inverso do processo, trata as coordenações e equipes apenas como apreciadoras de decisões tomadas previamente, em níveis superiores, tornando o planejamento relativamente descolado das bases. O processo de implementação nesse caso segue um rumo próprio, relacionado com a peculiaridade de cada unidade e discricionariedade de suas equipes.
Com relação às técnicas de planejamento desenvolvidas pelas unidades, apenas em uma unidade foi identificado que há o conhecimento de alguma técnica, neste caso o PES, onde o plano é estudado e as ações são pensadas, é feito um diagnóstico, para depois fazer o planejamento. Todavia, não é possível aplicar a ferramenta do planejamento, pois, segundo os entrevistados, a equipe não está preparada e dispõe de pouco tempo no cotidiano para tarefas de gestão. Nesse caso, em todas as unidades investigadas, os profissionais alegaram que não há nenhum tipo de recurso destinado exclusivamente para o planejamento.
“a atenção básica é muito ampla, mas se for identificar os nós prioritários no momento, já tem coisas que melhoraram, mas não consigo fazer bonitinho por que não tenho tempo, tenho que ir atropelando. Quando se faz minimamente um planejamento, olha como está, faz um desenho no papel, olha o que está acontecendo, para entender as lacunas, percebe-se que o resultado é mais satisfatório.” (Entrevista 2)
Ademais não são destacados profissionais para coordenar e monitorar essas tarefas. Quando questionados sobre os recursos humanos destinados ao planejamento, todas os entrevistados afirmam que não há nenhum profissional destinado exclusivamente a essa tarefa. Conforme relato de um dos entrevistados das Unidades:
“não há recurso financeiro, nem humano para isso. Somente vontade, é o que a pessoa consegue.” (Entrevista 3)
Levando em conta o que foi mencionado sobre a realização do planejamento no cotidiano do trabalho em saúde em Porto Alegre, percebe-se que o as capacidades para a sua realização estão circunscritas a níveis de burocracia mais elevadas como as de médio escalão (LOTTA, 2012), compostas desde coordenadores de unidades, trabalhadores da secretaria da saúde e por atores do Conselho. Em que pese, a evidência da realização de conferências ser uma instância de planejamento e suas deliberações comporem o plano municipal de saúde, o que é um avanço, percebe-se que há falta de conexão, ou conexões distanciadas, entre atores que formulam e implementam. Em geral nota-se a baixa participação de atores implementadores no processo de planejamento, já que estão envolvidos na prática da execução. Entretanto, como a literatura nos sugere, quanto mais próximos estiverem essas instâncias, mais aderência terá o plano com as ações realizadas e mais capacidade de atingir os objetivos da política pública terão os trabalhadores.
Outro ponto de destaque nas entrevistas foi a falta de estruturas internas às UBSs que possibilitem viabilizar o planejamento colaborativo com a realidade da implementação. Como foi possível perceber nas entrevistas, muitas vezes faltam instrumentos para monitorar os feitos da política pública e avançar sobre os limites impostos no cotidiano. Os burocratas de nível de rua, que conhecem a população e o território nesse caso, articulam a execução com o desenho e redesenho das ações.
Como nos mostra a literatura, o caso de Porto Alegre confirma o padrão levantado sobre a informalidade e precariedade do planejamento na execução dos serviços cotidianos em saúde, de forma que este se mantém centralizado em esferas de burocracias de mais alto e médio escalão, em detrimento de um processo mais contínuo e participativo. Nota-se que não há priorização deste processo no cotidiano dos serviços, dada a urgência de casos a serem atendidos e que envolvem situações graves da vida humana. Ademais a falta de estruturas para execução dos serviços, impacta na condição de desenvolvimento de estruturas para a gestão da política pública. Apesar dos trabalhadores reconhecerem que o planejamento colabora com a execução dos serviços e a qualidade das entregas, pouco conseguem avançar em sistematização e priorização dessa pauta. Desta forma, se o planejamento pode ser considerado uma capacidade estatal fundamental para que o Estado alcance os seus objetivos, cabe problematizar que estruturas estão sendo montadas em nível local para garantir uma saúde universal e de qualidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS: A IMPORTÂNCIA DO PLANEJAMENTO PARA PENSAR EM UMA SAÚDE INCLUSIVA E QUALIFICADA – PÓS COVID- 19
O presente estudo buscou partir do pressuposto de que o planejamento é elemento central na implementação de políticas públicas, uma vez que, através dele, mas não unicamente, o Estado se reforça na sua habilidade de determinar os rumos e meios para alcançar seus objetivos, ao envolver um conjunto amplo de atores, sobretudo os envolvidos nos serviços da “ponta”.
Para validar essas premissas, observamos como ocorre a prática de planejamento voltada à execução da saúde local, em específico nas UBSs, no intuito de entender a conformação dos atores envolvidos, níveis de burocracia, técnicas empregadas e envolvimento/priorização das equipes no desenvolvimento dessa prática. Nesse contexto, a pesquisa nos permitiu um conjunto de achados que corroboram os achados da literatura, mas nos permitem ir além, ficando claro que o fato do planejamento de políticas setoriais no caso brasileiro ser uma tarefa recente, delimitada a partir da Constituição Federal de 1988, implica no desafio de desenvolvimento de uma “cultura” ou valorização dessa prática nas gestões locais, uma vez que, previamente a esse período, pouco ou nada se desenvolvia nesse sentido.
Nesse sentido, é importante ressaltar o planejamento como uma ferramenta poderosa, sobretudo no contexto da pandemia da COVID-19. Atualmente, no que concerne à aplicação do planejamento na atenção básica e à organização das equipes de trabalho, é sabido que o sistema público de saúde não possui as habilidades administrativas necessárias para o enfrentamento de uma pandemia, embora possua diversas diretrizes relacionadas à prática do planejamento.
Um fator que reforça a necessidade da implementação do planejamento para lidar com diferentes contextos em um sistema complexo foi a observação da valorização do planejamento por parte dos trabalhadores e gestores da UBSs, da ideia de planejar e como isso pode colaborar com a implementação qualificada dos serviços. Mas como já mencionado, as estruturas internas desenvolvidas para esse fim não colaboram com a prática de planejamento. Esse fator é compreensível diante da realidade do SUS, que atua, em geral, com carência de trabalhadores para atender o básico dos serviços. No caso analisado, partimos da seguinte suposição: dada a trajetória de construção de planejamento em saúde em Porto Alegre, esperava-se encontrar essa capacidade administrativa mais bem estruturada e colaborando com o processo de implementação das ações na “ponta”, mas os resultados da pesquisa apontam em outra direção: de que o planejamento no Brasil, dos mais gerais como o PPA, até os setoriais – em distintas políticas públicas – possui uma trajetória que se repete. São em geral bem elaborados, mas ainda ficam circunscritos a uma pequena parcela de atores de níveis superiores de burocracia que desenham e formulam, permanecendo, assim, como peças burocráticas, exigidas pelas distintas legislações, mas que possuem grandes dificuldades de materializar-se na prática.
Na pesquisa buscamos reforçar a importância da implementação do planejamento, máxime nos serviços da “ponta”, haja vista que dado o contexto atual, em que a pandemia da COVID-19 provocou uma reconfiguração em nosso sistema de saúde, que já vinha sofrendo diversos ataques, possuir um planejamento estruturado e organizado de forma a proporcionar a implementação de uma saúde pública inclusiva e qualificada, que atue em consonância com os princípios do SUS, é elemento central. Assim, ressalta-se a importância do planejamento e da qualificação das equipes de saúde, especialmente de atenção básica, o foco desta pesquisa. Ainda há muito a caminhar, mas pensar a implementação de um planejamento para a execução dos serviços públicos já é um grande passo.
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