Artigo

Artigos Recentes

A Sombra da Vida Democrática

Alfredo Attié

Doutor em Filosofia da USP, Titular da Cadeira San Tiago Dantas e Presidente da Academia Paulista do Direito, autor de Brasil em Tempo Acelerado: Política e Direito, São Paulo: Tirant, 2021.

Compartilhe este texto

“A realidade é que sem ela não há paz
Não há beleza
É só tristeza e a melancolia

Que não sai de mim…

Mas se ela voltar…
Que coisa linda, que coisa louca

Antes de a Constituição de 1988 se firmar, vivíamos uma insegurança que impregnava várias facetas da vida cotidiana coletiva brasileira.

Permanecia a sombra do autoritarismo, que conseguiu se enraizar no Estado e nas instituições brasileiras. Não podemos esquecer que muita gente foi cassada e exilada, houve prisões e torturas, além de desaparecimento e assassinatos. Todo esse passado acabou retirando o ânimo de boa parte da população, que se conformou ao espírito de dominação e submissão que caracterizara os anos da ditadura civil-militar. As ideias e as práticas conectavam-se ao modo de ser autoritário dos que ainda exerciam e viriam a exercer por bom tempo, posições de poder e influência.

No meio jurídico esse tipo de mentalidade ainda guarda muitos resquícios, hoje. Lembro-me que recém-formado, ingressei no mundo profissional do direito, como advogado, professor, Procurador do Estado. Tinha muito o que dizer, criticar, sugerir, resultado de minha dedicação aos estudos de direito, história, filosofia, antropologia, economia. Mas a receptividade era complicada. Eram muito poucas as pessoas que desejavam ouvir ideias novas, críticas a procedimentos e doutrinas arraigados. Ouvia, com frequência, “isso é coisa da juventude, com o tempo, você vai entender que a vida é diferente.” Na Procuradoria, por exemplo, fomos, os recém ingressos por concurso público, recebidos em um evento que contou com a palestra de um ex-Procurador-Geral: “se encontrarem um cinzeiro sobre a mesa, deixem-no lá. Não perguntem a razão de estar ali.” Era o universo da ditadura transposto a uma nova ordem formal, querendo naturalizar-se.

Quando ingressei na magistratura, não encontrei nada muito diferente disso. Ainda Procurador, lecionava na USP e na UNESP.  O Governo estadual ainda desprezava as universidades públicas, não lhes garantia fluxo de orçamento adequado nem constante. Houve uma grande greve das três Universidades estaduais paulistas. Nós, professores e professoras, com o apoio de alunas e alunos, desejávamos que isso mudasse. Eu lecionava no último ano, direito constitucional, na Unesp, e no quarto ano, filosofia e filosofia do direito, na USP.  Além disso, realizava, com grupos de alunos e alunas interessados e até numerosos, cursos livres, que vinculavam o direito a outros saberes. Eram cursos originais e abriam novas perspectivas para a teoria do direito tão fechada em si mesma e acrítica. Lembro-me de ter aberto as primeiras relações entre direito e antropologia, entre direito e literatura, entre direito e história, direito e música, direito e artes. Em meu concurso, fui cobrado por isso. Uma banca inteligente e bastante diferente das tradicionais, elogiava essas iniciativas e era desejosa de saber como isso iria refletir em minha prática da judicatura. Aceitaram bem minhas respostas e, de certo modo, propostas. Temiam apenas que eu tivesse dificuldade em me adaptar ao cotidiano forense. Foi uma indagação, aliás, explícita do presidente da banca, de quem guardo memória respeitosa e de admiração. Ocorre que, no decorrer do concurso, uma pessoa, ligada a minha atividade docente, fez uma espécie de denúncia – na época, era entendida assim. Disse que eu era um professor revolucionário, com ideias rebeldes e que pretendia transformar a magistratura.  Isso me chateou muito, fui chamado a uma segunda entrevista – isso depois de ter sido feita uma investigação o quanto possível sigilosa, por dois professores, a pedido do tribunal (quem me contou isso, algum tempo depois, foram dois professores, além do próprio presidente da banca). Enfim, sabiam que eu era diferente e que propunha ativamente coisas e caminhos novos, agia e pensava de modo diverso. Mesmo assim, trouxeram-me a essa profissão que tanto gosto de exercer, que é a de julgar conflitos e resolver problemas coletivos, através de uma jurisprudência que pude conceber com liberdade, pensando o mundo em minhas decisões, e devolvendo à sociedade que me remunera e me respeita, muito do que aprendi, ensinei e criei.

Mais alguns anos nesse percurso, e fui presenteado com mais uma denúncia, mesmo uma acusação – estranha e lamentavelmente, era como viam e, com certeza, muitos ainda veem -, pelo fato de enxergarem algum problema, em reação muito primitiva, em eu ter iniciado e levado avante uma iniciativa de engajar a sociedade na atividade de conhecer, administrar, resolver, transformar e julgar conflitos. Inventei um modo de a própria sociedade, o próprio povo poder receber as reclamações de qualquer pessoa – sobretudo de locais periféricos – a respeito de problemas que essa pessoa enxergava como individuais e a merecerem solução favorável a uma ou outra parte envolvida no problema. Ao receberem essa reclamação, aqueles que passaram a trabalhar nesse serviço – originárias de vários locais, vindas de diferentes experiências de vida e profissionais, várias áreas do saber, escolhidas em assembleias populares anuais, realizadas em praça pública – essas pessoas deveriam encontrar uma solução não individual, mas coletiva para o problema. Quer dizer, em primeiro lugar, deveriam encontrar a solução coletivamente, conversando umas com as outras e indo ao lugar para examinar o contexto que teria gerado o problema e provocar a participação dos que o rodeavam, para que se sentissem envolvidos. Mas, o sentido coletivo da solução abrangia mais um aspecto: o problema tinha de ser pensado por essas pessoas como um sintoma de uma questão que atingia a toda a coletividade. E era a solução de problema maior – coletivo, portanto – que deveria ser dada. Não era mais dizer que fulano tinha razão e sicrano deveria fazer alguma coisa para resolver o problema. Não, o problema não dizia respeito apenas a esses dois aparentemente envolvidos. Era um problema coletivo, que se apresentava como individual. A solução tinha de ser dada ao problema coletivo. Aproveitar a oportunidade da expressão do sintoma, para solucionar a questão fundamental, que dizia respeito a todos. Para isso, os escolhidos e escolhidas anualmente para desempenhar essa função tinham de ir aos bairros, conversar com as pessoas, fazer pesquisa, examinar a situação, visitar órgãos públicos, entrevistar representantes de empresas e pequenos negócios. Descobrir as causas do problema e responder a esse reclamo mais profundo e mais abrangente. Eu havia descoberto um modo de a justiça se tornar democrática e mais eficiente. Participativa e eficaz.

Como prêmio, ganhei a tal acusação – que lembrava a velha denúncia de ser revolucionário, criativo, crítico. Agora, não se tratava mais de uma hipótese. Estava concretizado um projeto de transformação política, social, jurídica. A justiça podia ser feita pelas próprias pessoas do povo, de modo participativo, ordenado, coletivo, cooperativo.

Contudo, os móveis dessas duas ações de estranha acusação interessam. Não pela curiosidade de saber quem seriam acusadoras ou acusadores, mas pela presença de um impulso de acusar, como se vivêssemos ainda no universo da ditadura. A diferença – ou a invenção mentirosa da diferença, pouco importa – era tida como um mal, que devia ser corrigida pela disciplina, por órgãos de disciplina. Em que ideias eventualmente críticas e criativas, propostas novas de espaços e tempos para o direito e a justiça, sua teoria e sua prática atrapalhariam a vida em sociedade e o exercício de uma vocação pública jurídica? Em absolutamente nada. O intuito, claro, é prejudicar alguém. Gerar uma desconfiança que atinja, ao fim e ao cabo, o âmago da prática e do pensamento do direito. Era uma falsa moral desejando tomar o lugar da ética do mundo.

As pessoas que me conheciam olhavam com imensa indignação aquelas afirmações. Acostumei-me, até hoje, a amealhar o respeito das pessoas de minha profissão, progressistas, liberais e conservadoras, à esquerda ou à direita. Todavia, esse ânimo perverso acusador não vem de nenhum desses setores, que dialogam no espaço da sociedade e devem sempre dialogar. O ânimo acusador vem do extremismo, que continua presente na tessitura das relações sociais. Não foi enfrentado com vigor e ainda permeia nossos encontros e desencontros.

Não vou contar de uma terceira experiência, essa mais recente, em que novamente a sombra da acusação surge, diante de minha atuação firme de crítica ao regime anticonstitucional e corruptor de nosso Estado Democrático de Direito, que vivemos, nas suas vertentes de bolsonarismo, lavajatismo, militarismo e miliciarismo, neopentecostalismo, anti- ciência, anti-cultura e moralismo falso.

O que indago é como foi possível à ordem disciplinar e hierárquica violenta sobreviver a um ordenamento novo e oposto a esses eventos.

É evidente que os anos de ditadura deitaram raízes na democracia de difícil construção brasileira. Há, hoje, uma agravante. Para muitos jovens, a memória da ditadura inexiste. Mal aprenderam o que houve nesse período, na escola. Não refletiram, em casa, no colégio, no trabalho, sobre as más consequências dessa experiência triste e vergonhosa brasileira. Sobretudo, não lhes são apresentadas, a não ser raramente, experiências inovadoras, opções, a educação e a cultura lhes são negadas. Enfim, não se lhes concedem asas a sua imaginação, espaço seguro de expressão.

Assim, a permanência de palavras de ordem, discursos e práticas ditatoriais de muitos encontra a ausência de experiência e de reflexão de outros tantos. Terreno fértil para a disseminação de mentiras e a pregação daqueles velhos valores ou, mais propriamente, antivalores, coisas que devemos desprezar e não tolerar. Sequer existe punição – em nosso País de triste história de exploração, dominação, opressão, violência e preconceitos de gênero, raça, origem social, territórios de vida, de muitas experiências de violência política e cotidiana – a quem pregue e elogie a ditadura, a tortura, a morte de opositores e opositoras.

Essa é uma faceta política, quiçá jurídica, social e cultural da difícil luta para que se fixe o desejo constitucional em nossa sociedade, nossos valores, nossas instituições, nossos espaços e tempos de convivência.

Mas há mais.

Antes de a Constituição passar a ser levada mais a sério, a economia era inimiga da nação. O regime forjara um pacto para que uns poucos acumulassem à custa da pobreza da maioria. A inflação era flagelo constante, empregada para gerar riqueza fácil de uns e aprofundar a desigualdade social e econômica da maioria. A maioria não tinha acesso à propriedade. Nem mesmo se reconhecia a propriedade dos verdadeiros donos do território brasileiro, os indígenas. Não se reconhecia a propriedade coletiva de quilombolas, não se abria meio de expressão e afirmação de negros, não se compensava o que esses povos, que constituem a maioria de nosso povo, sofreram. Não eram providenciados meios para que esses povos assumissem seu lugar de proeminência e seu tempo de predominância na política.

Muito bem, os valores e instrumentos constitucionais, sobretudo as políticas públicas que determinava, permitiram que se viesse a constituir uma verdadeira economia brasileira. O Plano Real é o início disso. Também os planos de combate à fome e à pobreza – sobretudo, o Bolsa-Família – encontraram sustentação no texto constitucional, contra a contestação dos que não queriam construir a igualdade. Planos de incentivo à cultura – inclusive a Lei Rouanet -, os programas de acesso à educação – como as leis de Cotas, a segurança dos orçamentos das Universidades públicas, da educação fundamental, a criação do ENEM -, os programas habitacionais, a proteção do meio ambiente, do patrimônio cultural, auxílios aos mais necessitados, o reconhecimento da propriedade indígena e dos quilombos, as políticas de igualdade racial e de gênero, e tantas outras medidas de proteção ao trabalho e à dignidade humana, decorriam de mandamento constitucional, não resultavam de ideologia nem de escolha partidária.

Permaneceu vivo, porém, no Brasil, o projeto de instituição de um regime anticonstitucional:

a) no Judiciário, sob a justificativa de que o Direito se oporia à Democracia, dado que os juristas se acham superiores ao povo que fixa as leis, que são o limite de sua atividade: “contramajoritário” “vanguarda ilustrada,” repetem, como eufemismos da infringência ao Princípio Democrático;

b) no Legislativo, que abdicou de controlar o Executivo, instrumentalizou e desnaturou essa função, o que permitiu que o projeto anticonstitucional se enraizasse na estrutura da representação antipolítica;

c) no Executivo, que, fazendo uso estratégico das pretensões antijurídicas do Judiciário – cujo exemplo máximo foi a operação que condenou e prendeu um ex-Presidente inconstitucionalmente, ou que o impediu de assumir a função de coordenador do Governo que sofreu o mais polêmico processo da história republicana brasileira – e das ambições secretas de parte substancial do Legislativo, passou a pressionar e a ameaçar povo e instituições, praticar vários golpes contra o Estado Democrático de Direito, desacreditando imprensa- que foi presa da propaganda, no advento desse regime -, vontade e expressão populares, instituições científicas e culturais, cortando políticas públicas, desdenhando decoro e deveres, menosprezando direitos e garantias fundamentais.

Confesso que foi o corte de verbas das universidades que trouxe a recordação desses fatos de minha história pessoal – que se confunde com a de nosso País e se solidariza com todos aqueles e aquelas que sofreram acusações semelhantes, perseguições, preconceito, violência. Lembrou-me os tempos sombrios em que os governos derivados do regime militar obrigavam a manifestações e greves constantes.  Eis mais um passo na sanha anti-ciência e educação. Jovens periféricos têm ingressado nas Universidades públicas? Por isso, esse governo destrói esse que é nosso maior patrimônio educacional, favorecendo o sistema privado e seu lucro que sustenta esse projeto.

O Ministro da Justiça – mais um exemplo, como na Educação, Meio Ambiente, Direitos Humanos, Ciência, Saúde, e os extintos órgãos da Cultura e do Trabalho – de incompatibilidade constitucional entre o nome, os atos e a função – em vez de prestar contas da inexistência de políticas obrigatórias de seu Ministério, pede investigação de institutos de pesquisa, com intuito de desacreditar a informação, único modo de garantir a segurança das eleições. É o governo a serviço da campanha ilegítima de seus candidatos, fomentando descrédito da eleição.

Diante de tanta desfaçatez, saberemos discernir entre o que nos serve e não serve no segundo turno que se avizinha?

Escolher entre democracia e antidemocracia; cultura e anticultura; educação e antieducação; proteção do ambiente e devastação ambiental; diginidade humana e indignidade e brutalidade de palavras e atos; desenvolvimento e controle fictício de gastos;  orçamento aberto e democrático e orçamento secreto e corrupção; fazer desenvolver e fazer retroceder; justiça e direitos humanos e injustiça; perseguição política e pregação da ditadura; governo civil e intromissão militar; seguir os princípios e valores constitucionais e descumprir e atentar contra a Constituição; seguir o caminho do Estado Democrático de Direito e o desprezo da política, dos direitos, dos deveres e das políticas públicas; proteger as minorias e atacá-las cruelmente;  saúde e vida e antisaúde e morte; ciência e anticiência; respeito a todos os gêneros contra violência contra todos os gêneros; combate ao racismo contra pregação de racismo; inserção na ordem internacional dos direitos humanos e submissão e indignidade internacional; a paz contra violência e o armamento de milícias; sentimento religioso autêntico e plural e manipulação da religião; proteção da família em sua diversidade verdadeira e imposição de uma visão de mundo recusada pela ética e pela Constituição; enfim, o Brasil, seu povo e a Constituição, num dos pratos da balança, e a negação de Brasil, povo e Constituição, no outro?

Enfim, a Constituição é uma luz que, mesmo imperfeita, pode voltar a aquecer nossa esperança e iluminar nossa vereda em direção à democracia. Resta-nos pedir, numa prece, que ela regresse. Chega de saudade!

Áudios

Vídeos

O Ciclo 2: A democracia e o Sul global é composto de oficinas preparatórias para um importante momento: uma sessão plenária que irá acontecer, no dia 15 de novembro, durante o G20 Social, quando entregaremos um documentos com análises e recomendações para a nova presidência do fórum, da África do Sul, que assume o comando grupo.
O documentário Vozes pela Democracia reuniu diversas falas vindas de diferentes movimentos sociais, professores e pesquisadores, organizações não-governamentais e de representantes dos governos em prol da defesa de uma sociedade mais justa, igualitária e fraterna.
Por que refletir e debater sobre a importância da segurança pública para a democracia? Como a esquerda trata o tema e de que maneira a segurança deve figurar na agenda do campo progressista? Quais devem ser as ações futuras? A violência, o crime e a regressão de direitos são temas locais. A construção da paz e da democracia deve ser encarada como um desafio transnacional, continental e o Sul global deve ser protagonista na construção dessa utopia. Todas estas questões trazem inquietude e precisam ser analisadas. Com esta preocupação, o Instituto Novos Paradigmas reuniu algumas das principais referências sul-americanas no campo progressista, no Seminário Democracia, Segurança Pública e Integração: uma perspectiva latino-americana, realizado em Montevidéu, no dia 12 de outubro de 2023. Um momento rico em debates e no compartilhamento de experiências, considerando a necessidade da integração regional. Este documentário traz uma síntese do que foi discutido e levanta aspectos que não podem ser perdidos de vista frente às ameaças do crescimento da direita e da extrema direita no mundo e principalmente na América do Sul.
Video do site My News Pesquisa levada a cabo por pesquisadores da Faculdade de Saúde Pública da USP, Centro de Estudos de Direito Sanitário e Conectas explica porque o Brasil não chegou à toa ao caos no enfrentamento da pandemia da COVID 19 Assista a Professor Deise Ventura, uma das coordenadoras da pesquisa.
O ex-ministro da Justiça Tarso Genro aborda as novas relações de trabalho no Congresso Virtual da ABDT.
O ex-ministro da Justiça do Governo Lula participou de um debate ao vivo na CNN com o ex-presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, desembargador Ivan Sartori. O tema foi a decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello de tornar pública a reunião ministerial do dia 22 de abril, apontada por Sérgio Moro como prova da interferência do presidente na Polícia Federal. Tarso Genro considera acertada a decisão de Celso de Mello.
plugins premium WordPress