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A sociedade civil pela democracia

Fernando Luiz Abrucio

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É preciso dar um apoio social às instituições de Justiça e aos políticos que querem proteger a democracia dos ataques bolsonaristas

 

Todo o poder emana do povo, diz a Constituição brasileira logo em seu início. Mas nem sempre os cidadãos, tomados de forma fragmentada, são capazes de resistir a ações autoritárias de líderes políticos e forças militares. A oposição e outros políticos eleitos podem tentar resguardar o regime democrático, porém parte deles pode aderir ao golpismo e inviabilizar a resistência política. Há ainda as instituições de controle como instrumentos para limitar o poder dos governantes. Só que por vezes elas sucumbem diante do populismo autoritário. Ao final, quando o próprio presidente jura de morte a democracia, o último bastião da liberdade é a sociedade civil organizada.

A democracia brasileira chegou ao seu limite quando o presidente Bolsonaro chamou embaixadores de outros países para deslegitimar o processo eleitoral, dizendo, no fundo, que como candidato à reeleição ele não necessariamente obedecerá às regras do jogo. Assim, ele avisou ao mundo que o voto poderá não ser a forma de definir o próximo governante do país. O sinal do golpe final contra o regime democrático foi dado.

O recado foi entendido pelos países democráticos presentes na fatídica reunião, que disseram duas coisas importantíssimas. Primeira, se o Brasil caminhar para algum tipo de autoritarismo, haverá rechaço internacional em todos os campos (militar, político, econômico etc.), de modo que passaremos de isolados a boicotados. Mas a segunda observação é tão importante quanto a inicial: cabe aos brasileiros definir o seu caminho e defender a sua democracia.

Até o momento, o ataque contínuo de Bolsonaro à democracia tem sido barrado basicamente pelo STF e pelo TSE. Não por acaso seus ministros têm sido constantemente xingados e ameaçados pelo bolsonarismo. O presidente busca emparedar as cortes superiores do Judiciário para evitar que elas tomem as decisões que deveriam tomar, inclusive impugnar candidaturas que atacam a democracia. Em poucas palavras, o controle institucional vindo da última instância da Justiça, central em qualquer país democrático, está sob fogo cruzado e talvez não tenha como resistir sozinha ao ataque populista do bolsonarismo.

O Congresso Nacional poderia ser o guardião contra um golpe bolsonarista, mas sua atuação recente revela tibieza e dificuldade de abandonar as benesses do poder. O presidente do Senado responde com um discurso bacharelesco, tentando se equilibrar em meio ao precipício. Já Arthur Lira virou sócio do projeto de golpe autoritário. Aquela ideia de que o Centrão era uma força moderadora da política brasileira foi agora sepultada. E, infelizmente, mesmo com a reação de políticos e oposicionistas que têm a coragem que o momento exige, a maioria dos parlamentares foi sequestrada pelo orçamento secreto, com o qual fizeram um pacto como o de Mefistófeles de Goethe: deram sua alma democrática em troca de bilhões de reais.

Haveria, ainda, a possibilidade de uma reação dos governos subnacionais, especialmente os estados, que foram fundamentais para evitar milhares de mortes durante a pandemia de covid-19, em contraste com a gigantesca omissão do governo Bolsonaro. Mas a federação também está sendo estilhaçada pelo bolsonarismo nos últimos meses, com a prestimosa ajuda dos presidentes da Câmara e, estranhamente, do Senado, porque Rodrigo Pacheco deveria, constitucionalmente, atuar pelo equilíbrio federativo. Os projetos relativos ao ICMS mostraram como a União, alicerçada na aliança entre bolsonaristas, Centrão e endinheirados com o orçamento secreto, pode atuar para fraturar o pacto federativo.

A esperança maior, hoje, está na reconstrução do conceito de sociedade civil organizada. Quando o Brasil viveu por duas décadas numa ditadura civil-militar, eram grupos organizados da sociedade que mobilizavam seus pares e outras lideranças para defender a liberdade e atacar o regime autoritário. Era um tempo em que OAB, CNBB, SBPC, entre outras, evitaram a morte de cidadãos, denunciaram internacionalmente a tortura ocorrida nos porões brasileiros e engajaram, paulatinamente, milhões de cidadãos para lutar pela democracia. Relembrando a fala final de Ulysses Guimarães na promulgação da Constituição de 1988, foram os resistentes da sociedade civil organizada – e todos nós, democratas – que vencerem ao final, e não os facínoras que mataram Rubens Paiva.

Com a redemocratização, a defesa dos direitos básicos se institucionalizou nas ações de partidos, governantes e órgãos de Justiça. As eleições e as políticas públicas tornaram-se o palco do desenvolvimento da democracia e da cidadania. Além disso, os temas relevantes da sociedade ampliaram-se, e mais grupos e entidades sociais surgiram para defender uma multiplicidade de causas e direitos. Esse saudável crescimento de temáticas e da pluralidade de posições só foi possível porque a garantia da democracia tinha deixado de ser um problema.

Bolsonaro consolidou um processo de ataque à democracia que, na verdade, já havia começado em 2013. Nas jornadas de junho, manifestantes gritavam na avenida Paulista uma das frases usadas pelos fascistas na Marcha sobre Roma: “Sem partidos! Sem partidos!”. A experiência daquelas enormes manifestações só levou à fragmentação e à polarização da sociedade, gerando um jogo de manada, de likes e haters, com pouco compromisso com as instituições democráticas. Começava assim um caminho que nos levou a um governo com um projeto nitidamente autoritário, e as organizações da sociedade civil não foram capazes de reagir ao enfraquecimento paulatino da democracia.

Chegou a hora de colocar novamente a sociedade civil no centro da política brasileira por quatro razões. A primeira é que só ela pode juntar lideranças de vários campos da vida social e com diversas visões de mundo na defesa da democracia. Não serão a lógica difusa das redes sociais nem a convocação de manifestantes de rua performáticos capazes de mobilizar de forma politizada, com consciência democrática, uma miríade de atores que podem dar um nome, uma história de vida, à defesa do regime democrático.

Além disso, uma segunda razão torna essencial a mobilização da sociedade civil: é preciso dar um apoio social às instituições de Justiça e aos políticos que querem proteger a democracia dos ataques bolsonaristas. Mas não é um apoio social qualquer: são pessoas importantíssimas para a história recente do país, com grandes serviços prestados à nação e à identidade nacional, ao contrário da irrelevância dos apoiadores bolsonaristas. Quanto mais gente qualificada e de diversos espectros ideológicos apoiarem a democracia, mais o bolsonarismo ficará isolado, fazendo com que seu projeto de golpe seja cada vez mais ilegítimo e dependente de extrema violência.

Uma terceira razão justifica apostar na ação da sociedade civil para defender a democracia: a necessidade de angariar apoio internacional. Foram as pressões de organizações internacionais e de outros países que ajudaram a derrubar grande parte das ditaduras do século XX. O caminho do isolamento e do boicote é bem provável se Bolsonaro construir o caos nas eleições, mas é preciso evitar essa possibilidade, construindo desde já alianças que permitam uma ação externa de apoio aos democratas brasileiros na luta contra o autoritarismo bolsonarista.

Retomar a centralidade da sociedade civil, por fim, é central para fortalecermos organizações que reúnam lideranças e grupos representativos em torno da democracia e, ademais, que recuperem a ideia de que podemos ter um futuro melhor, com projetos e debates qualificados. Num primeiro plano, está sendo muito destacada a Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito, que congregou assinaturas de figuras centrais do país, numa dimensão não alcançada desde o fim da ditadura. Ela será lida e apresentada publicamente no dia 11 de agosto, em São Paulo. Depois disso, o 7 de Setembro bolsonarista não será mais o mesmo.

Mas, antes desse grande marco mobilizador, ocorrerão duas iniciativas fundamentais na próxima segunda-feira, dia 1º de agosto. A primeira será um evento organizado pelo grupo Direitos Já/Fórum Pela Democracia, criado em 2019 e que junta os grupos sociais mais diversos, incluindo lideranças dos partidos que lutam contra o bolsonarismo. Intitulado IX Ato do Direitos Já! Fórum Pela Democracia – Em Defesa da Justiça Eleitoral e da Não Violência, o encontro será no Rio de Janeiro, no Clube de Engenharia.

No mesmo dia será lançado o documento Uma Agenda Inadiável, produzido pelo grupo Derrubando Muros, composto por um grupo apartidário cujo objetivo é recuperar o debate das políticas públicas necessárias ao país, de uma forma plural e contra a lógica polarizadora. A apresentação será feita pelo YouTube (youtu.be/Oo2_1PtCyP4). Obviamente que as ideias ali expostas não são perfeitas, mas permitem ter um diálogo plural lastreado em evidências e experiências de gestão, e não em mitologias, negacionismo científico e mero oportunismo clientelista.

O Brasil só poderá ser reconstruído do vendaval autoritário e desastroso do bolsonarismo se a sociedade civil for guardiã da democracia e parteira de um debate plural de ideias. Caso contrário, será difícil evitar o caos que Bolsonaro sonha para as eleições de 2022.

 


Texto originalmente publicado no Jornal Valor Econômico em julho de 2022.

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