Neste artigo abordaremos o protagonismo indígena na luta por seus direitos territoriais, a partir da pesquisa realizada pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) na qual se estabeleceu uma aproximação entre Direito e Antropologia, tomando como estudo de caso a demarcação da terra Guarani Morro dos Cavalos (TI Morro dos Cavalos), localizada no município de Palhoça em SC.
Foi analisado o histórico da demarcação a partir de documentos, em especial o relatório de identificação da FUNAI, o “Dossiê Morro dos Cavalos” do Ministério Público Federal (MPF), manifestações públicas da comunidade indígena e de diversos atores, constatando-se que a ação coletiva dos Guarani fez com que sua cosmovisão fosse respeitada na definição dos limites da TI Morro dos Cavalos, mas que eles ainda se encontram sob grande pressão por ação movida pelo Estado de SC, o que impede a garantia de seus direitos constitucionais, com a homologação de suas terras.
Após longo procedimento iniciado em 1992, os Guarani finalmente conseguiram o reconhecimento estatal de suas terras com a emissão da Portaria 771/08 pelo então Ministro da Justiça Tarso Genro que, no bojo das demandas indígenas no acampamento Terra Livre em Brasília, reconheceu vários territórios, dentre eles, as terras Guarani Araça’y, nos municípios de Cunha Porã e Saudades e Morro dos Cavalos, em Palhoça, ambas em SC.
Muito embora a Portaria seja uma importante conquista no âmbito da demarcação, segue pendente ato que traria a segurança jurídica necessária para garantir os direitos territoriais Guarani, que é a homologação pelo Presidente da República. Trata-se da etapa final, com o posterior registro da TI no Serviço de Patrimônio da União, garantindo, assim, a conquista formal dos direitos territoriais.
A falta da homologação da TI Morro dos Cavalos desde o seu reconhecimento em 2008 traz uma grande insegurança para a comunidade, principalmente com a última investida do Estado de SC, que foi o ingresso da ação originária (ACO 2323) no STF buscando a anulação da Portaria, com base em um suposto “marco temporal”[1], este, por seu turno, a ser julgado com repercussão geral (ACO 1100) no caso da Terra Indígena Ibirama Laklaño, do povo Xokleng, no Alto Vale do Itajaí (SC).
Os direitos territoriais indígenas são previstos na legislação pátria desde o período colonial, contudo sempre foram pensados de acordo com padrões etnocêntricos e assimilacionistas do Estado. Na atualidade, a Constituição brasileira, após muita pressão do movimento indígena, finalmente reconheceu direitos identitários, o que implica que a demarcação de terras deve refletir a cosmovisão indígena, para que estes possam dar continuidade a seu modo de vida, para os Guarani denominado Ñande Reko.
Conforme indicou Omar Ribeiro Thomaz (1998, p. 439), a aposta estatal na “transitoriedade” do elemento indígena encontrou resistência e “[…] ao contrário do que se pensou, os índios nem perderam a sua cultura, nem desapareceram”. Além da previsão do artigo 231 da Constituição de 1988, que define as terras indígenas como aquelas necessárias não somente à reprodução física, mas também cultural, o Brasil é signatário da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que reconhece os aspectos simbólicos e espirituais da territorialidade, tratando-se, portanto, de um verdadeiro “território”.
A TI Morro dos Cavalos levou mais de uma década para ser reconhecida, em função de diversas situações, mas sobretudo pela oposição dos governos do Estado de SC e particulares. O MPF, já em 1993, foi instado pelo então presidente da Associação Brasileira de Antropologia, o saudoso professor Silvio Coelho dos Santos para abertura de procedimento em função da preocupação com as pressões feitas pelo governador para a suspensão do procedimento demarcatório, o que resultou no Dossiê Morro dos Cavalos, com intensa participação deste órgão a favor da demarcação.
O primeiro relatório de identificação, feito em 1995, foi refutado pela comunidade indígena por não ter participado de sua realização e não concordar com os seus limites. A comunidade considerou a área insuficiente (121,8 hectares) para contemplar os elementos previstos no artigo 231 da CF. Entre 1995 a 2000, deu-se uma verdadeira ofensiva contra a presença indígena no Morro dos Cavalos, dentre elas destacamos: reintegração de posse movida por particular (recusada pelo Judiciário), Moção de Repúdio da Câmara Municipal de Palhoça, procedimentos investigatórios da Promotoria de Defesa do Meio Ambiente de SC para apuração de eventuais danos ambientais.
Apesar disto, os Guarani mantiveram-se firmes no pleito por um novo relatório, no qual fossem ouvidos, para modificar o tamanho da terra, com a inclusão de locais relevantes para sua reprodução física e cultural. A demanda Guarani foi fortalecida pelo estudo de impacto socioambiental realizado em função da duplicação da BR-101, trazendo dados sobre a presença indígena no Morro dos Cavalos, conforme apontam Darella e Mello (2005, p. 157-170).
Com o apoio do MPF, novo Grupo de Trabalho foi formado pela FUNAI, resultando em novo relatório, elaborado sob coordenação da antropóloga Maria Inês Ladeira, com ampla participação e aprovação da comunidade indígena. Este relatório identificou os 1988 hectares da terra indígena, sendo aceito pelos Guarani e reconhecido pela Portaria do MJ.
Logo após a publicação do relatório, os Guarani comunicaram às autoridades e entidades não governamentais que indivíduos não identificados estavam instigando a população contra os Guarani, mediante impressos apócrifos que anunciavam que a demarcação traria uma invasão de índios do Uruguai, Paraguai, Argentina e estados do Brasil.
É importante destacar que no ano de 2020, a Justiça Federal de Florianópolis, em ação movida pelo MPF, condenou o particular que havia movido ação contra a demarcação a retirar página eletrônica da internet onde fazia publicações discriminatórias e difamatórias à população indígena brasileira em geral e, especialmente, à comunidade indígena Guarani da TI Morro dos Cavalos, sendo obrigado ao pagamento de indenização de R$ 50 mil reais a título de danos morais à comunidade.
Durante a demarcação, deu-se o contraditório previsto em lei e o processo foi encaminhado ao MJ em 2003, não havendo mais possibilidade de contraditar nesta fase, mas ainda assim o Estado de SC peticionou no sentido de que o MJ não reconhecesse a demarcação, por entender que não se tratava de terras ocupadas por indígenas e deveria ser assegurada a propriedade privada, o que ensejou a determinação de diligências, gerando mais atraso em um processo que tinha iniciado mais de uma década antes.
A comunidade fez nova moção ao MJ solicitando que fosse definida em caráter de urgência a demarcação, pois o governador estaria pressionando para paralisar o procedimento. O MPF recomendou ao Presidente da FUNAI a devolução dos autos ao MJ, por entender pela lisura do procedimento.
Em 2007, os Guarani organizados em comissão estadual e nacional (Comissão Nhemonguetá e Comissão Yvyrupá) reivindicavam a regularização de terras Guarani em vários estados, participando no acampamento Terra Livre e, enfim, tiveram êxito com a Portaria que reconheceu a posse permanente dos Guarani Mbyá e Nhandéva na TI Morro dos Cavalos.
Os Guarani viviam, ao tempo da colonização, em uma grande área que compreendia o que hoje corresponde aos estados brasileiros do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo e Mato Grosso do Sul. Também habitavam a região do Chaco e Bacia do Rio da Prata. É importante destacar que os Guarani se encontram ainda hoje neste mesmo amplo território, sendo estimados em 54.825 habitantes na Argentina, 61.701 no Paraguai, 3.019 na Bolívia, e 85.255 no Brasil (ISA), o que demonstra que sua concepção de território-mundo é histórica e ancestral. Apesar disto, as terras indígenas Guarani estão entre os mais baixos índices de regularização fundiária de acordo com a própria FUNAI e estão inseridas em um quadro de intensa oposição a seus direitos na região sul e sudeste do país.
O território-mundo Guarani é denominado Yvyrupá, sendo composto por diversas aldeias (Tekoa) que se unem pelo movimento, pelas caminhadas (Guatá). Apesar de contrariar os interesses de grupos que se apoderam do Estado e lançam sobre este aparato a sua perspectiva hegemônica e etnocêntrica, a Constituição Federal e as normativas internacionais ratificadas pelo Brasil garantem aos povos indígenas a permanência em seus territórios e o direito de serem consultados em casos de empreendimentos e leis que os afetem.
A ofensiva contra a demarcação da TI Morro dos Cavalos não deve ser pensada de forma isolada. Estamos diante de um quadro grave de ataque, não somente aos territórios indígenas, mas contra a sua própria existência. Não foi à toa que Jair Bolsonaro se manifestou no sentido de que não demarcaria terras indígenas.
Mais do que não demarcar, o governo atua, por seus Órgãos, no sentido de contestar as demarcações já existentes, buscar liberar a mineração e estimular certificação de imóveis rurais em terras indígenas e, ainda, atacar diretamente a existência dos povos indígenas, não atuando de forma concreta no combate à Pandemia Covid-19 e retomando os velhos “critérios de indianidade” já superados pela Constituição Federal e pela legislação internacional ratificada pelo Brasil.
Os Guarani e os povos indígenas estão conscientes disso e seguirão lutando pelo reconhecimento de seus direitos territoriais e pela sua existência enquanto povo culturalmente diferenciado dentro do Estado nacional.
REFERÊNCIAS:
AGÊNCIA BRASIL. Bolsonaro diz que não fará demarcação de terras indígenas. Disponível em https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2019-08/bolsonaro-diz-que-nao-fara-demarcacao-de-terras-indigenas Acesso em fev.2021.
APARICIO, Adriana Biller. Direitos territoriais indígenas: diálogo entre o Direito e a Antropologia – O caso a terra Guarani “Morro dos Cavalos”.132f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Curso de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2008. Disponível em
https://repositorio.ufsc.br/xmlui/bitstream/handle/123456789/92156/251133.pdf?sequence=1&isAllowed=y Acesso em jan.2021.
______. O Instituto do Indigenato e teoria crítica: a possibilidade de reinvenção do fundamento jurídico dos direitos territoriais indígenas a partir da análise da territorialidade e dos processos de luta Guarani. 253 f. Tese (Doutorado) – Centro de Ciências Jurídicas, Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2018. Disponível em https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/189500 Acesso em jan.2021.
DARELLA, Maria Dorothea Post; MELLO, Flávia Cristina de. As comunidades Guarani e o processo de duplicação da BR-101 em Santa Catarina: análise da questão territorial. In: LEITE, ILKA Boaventura. (Org.). Laudos periciais antropológicos em debate. Florianópolis: Nuer/ABA: 2005, p. 157-170.
INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL (ISA). Quadro geral dos povos indígenas. Disponível em http://pib.socioambiental.org/pt/c/quadro-geral Acesso em fev. 2020.
INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL. Tarso Genro declara posse de Terras Indígenas em Santa Catarina e no Pará. Disponível em: https://pib.socioambiental.org/pt/Not%C3%ADcias?id=56057 Acesso em jan.2021
MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Justiça condena particular por discriminar e difamar indígenas do Morro dos Cavalos (SC). Disponível em
http://www.mpf.mp.br/sc/sala-de-imprensa/noticias-sc/justica-condena-reu-por-discriminar-e-difamar-indigenas-do-morro-dos-cavalos Acesso em jan. 2021.
THOMAZ, Omar Ribeiro. A antropologia e o mundo contemporâneo: cultura e diversidade. In: SILVA, Aracy Lopes et al (Org.). A temática indígena na escola. Brasília: MEC. 1998, p.425-441.
[1] Para aprofundamento sobre o tema do “marco temporal” sugerimos a consulta ao capítulo 2 de nossa tese doutoral (APARICIO, 2018).
*Doutora e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (PPGD/UFSC). Mestre em Direitos Humanos, Interculturalidade e Desenvolvimento pela Universidade Pablo de Olavide de Sevilha (UPO). Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Professora Colaboradora da Universidade Estadual de Maringá (UEM). E-mail: dri_biller@yahoo.com