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Violência na escola, democracia e equidade

Paulo M. V. B. Barone

Professor do Departamento de Física, Universidade Federal de Juiz de Fora, Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia. Mestre e Doutor em Física (Universidade Estadual de Campinas).

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Nos anos 1990, a UNESCO, Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, designou uma Comissão Internacional para tratar da Educação para o Século XXI. A Comissão, presidida por Jacques Delors, que havia sido Presidente da Comissão Europeia entre 1985 e 1995, publicou o seu Relatório em 1996. Intitulado em português Educação um tesouro a descobrir, foi editado pela Representação da UNESCO no Brasil em 2010[1] e, pela Editora Cortez, em 2012[2].

O Relatório define como pilares da Educação para o Século XXI novas dimensões da aprendizagem, extrapolando as formulações que apontam muito fortemente para o papel da Educação no desenvolvimento cognitivo dos estudantes.

Ao lado de aprender a conhecer, constituem estes pilares aprender a ser, aprender a fazer e aprender a conviver. É exatamente sobre este último pilar que cabe discutir aqui. Do Relatório Delors, extrai-se uma breve descrição deste pilar:

  • Aprender a conviver, desenvolvendo a compreensão do outro e a percepção das interdependências – realizar projetos comuns e preparar-se para gerenciar conflitos – no respeito pelos valores do pluralismo, da compreensão mútua e da paz.

Mesmo expressando diferentes dimensões da formação educacional, estes quatro pilares revelam interrelações. Aprender a fazer requer a capacidade de fazer em conjunto, de cooperar, que se articula com aprender a conviver. Desenvolver a compreensão do outro se articula com os valores pessoais (aprender a ser). E assim, sucessivamente.

Aprender a conviver constitui um instrumento para o progresso civilizatório, para a cultura da paz e para a valorização da diversidade na sociedade, cuja importância cresceu muito desde a edição do Relatório Delors.

Uma relação não exaustiva de temas conexos a aprender a conviver inclui a aprendizagem (i) do respeito a todos os elementos comuns da vida social, como os bens públicos, os espaços de convivência social e o meio ambiente, (ii) do respeito a todas as pessoas, com suas características, ideias e opções de vida, (iii) da capacidade de exercer a cooperação social, a cidadania e a solidariedade.

Estes breves comentários evidenciam a importância da presença deste pilar nos processos educacionais em todos os níveis, em proporções e abordagens apropriadas a cada situação.

Evidenciam, também, o seu caráter fundamental para a consolidação de uma sociedade equitativa, pacífica e democrática, de pleno respeito aos princípios e regras de convivência social, e sem lugar para a violência e o autoritarismo.

No Brasil, algumas leis tratam das temáticas da Educação para as relações etnicorraciais, da Educação ambiental e da Educação para os Direitos Humanos, constituindo iniciativas para materializar, na Educação formal, os princípios da aprendizagem para a convivência como pilar educacional.

Mais que as diretrizes referidas, importa fortalecer a Escola como ambiente de práticas democráticas e de respeito a cada um. A ocorrência de episódios de violência que afetam o funcionamento da Escola, por outro lado, pode comprometer o seu papel no fomento aos valores e à cultura da paz. Nesse contexto, riscos associados à criminalidade no entorno da escola não são isolados. Estes são associados a conflitos de outras naturezas, advindos do ambiente externo ou interno. Entre os primeiros, estão incluídos o tráfico de drogas e outras manifestações do crime organizado, a violência contra as pessoas no entorno da Escola, as disputas envolvendo gangues, agressões a qualquer integrante da comunidade escolar geradas por questões externas, os danos ao patrimônio público em face de invasões e os roubos praticados contra a Escola. Entre os demais, agressões aos professores, práticas racistas, homofóbicas ou de outra forma de comportamento preconceituoso, perseguições a indivíduos ou grupos, e violência em ambientes virtuais, que se propaga de forma destrutiva sobre as vítimas, entre outras formas.

Os estudos sobre a violência que afeta o ambiente escolar identificam, de fato, as seguintes categorias: violência na Escola, violência à Escola e violência da Escola[3]. Em todos os casos, há uma clara contradição entre o papel da Educação como instrumento para a formação para a convivência e estes fenômenos sociais, que impõem uma força desagregadora sobre os esforços que as Escolas exercem. Seguramente, isto produz efeitos deletérios sobre o desenvolvimento dos estudantes. Entender estes efeitos e trabalhar para reduzir a influência que a violência tem sobre as Escolas certamente tem consequências importantes sobre o sucesso dos processos educacionais no que diz respeito ao aprendizado para a convivência.

No período em que vivemos, a contribuição da violência desencadeada por meios virtuais, frequentemente associada a outras formas, é especialmente grave. E também está presente no ambiente educacional, evidentemente. São conhecidos muitos casos recentes de desestruturação da vida pessoal e até de suicídio entre jovens sujeitos a tais abusos. A suposta neutralidade das redes sociais, que na verdade constitui irresponsabilidade, é um fator que contribui para a multiplicação destes casos. A presença de grupos organizados de criminosos que atuam por meio de redes sociais aumenta muito a abrangência desta modalidade de violência e serve como modelo para indivíduos, presentes nas comunidades escolares, que reproduzem tais modelos, dirigindo sua ação violenta contra outros integrantes destas comunidades.

Isto traz à luz um outro fenômeno que ganhou dimensões também muito graves nos tempos recentes, no Brasil e no mundo, a existência de grupos organizados que atuam para combater a democracia e implantar regimes políticos autoritários. Praticantes de violência contra setores da sociedade, estas organizações de extrema direita agem de forma híbrida, combinando a sua presença explícita em ambientes sociais com a atividade clandestina por meio de redes sociais e da dark web. Criadores de fake news e de desinformação, atacam instituições, grupos sociais e trabalham para reduzir a confiança da população no conhecimento estabelecido a partir do desenvolvimento da Ciência. Albuquerque e colegas[4] discutem o fato de que o autoritarismo e a mobilização online envolvem três fenômenos, que interpreto aqui de forma simples. A polarização, fomentada por discursos de ódio; a normalização de temas caros para a extrema direita, mas que constituíam tabus na discussão ampla; e a radicalização, que produz militantes dispostos à prática da violência em oposição à disputa democrática e pacífica.

A emergência de grupos de extrema direita em diversos ambientes nacionais tem sido relacionada à perda de importância de grupos sociais nestes contextos, em que as transformações econômicas desencadeiam desemprego, queda de renda, competição com trabalhadores de outras origens (inclusive migrantes) e uma série de outras incertezas, que afeta a sua sobrevivência e o seu status social. Neste caldo de cultura, o medo dessas mudanças gera ressentimento em relação àqueles que são identificados como culpados por estas mudanças. Seguindo esta lógica, estes devem ser combatidos, o que causa ondas de racismo, xenofobia e outras manifestações violentas. Frequentemente, os alvos do ressentimento são tão vítimas destes mesmos processos quanto os próprios grupos que esses passam a atacar. Isto produz um ambiente propício à radicalização e à manipulação do ressentimento em favor de causas antidemocráticas e favorece o apoio às posições autoritárias expressas pelas lideranças de extrema direita. Em certos casos, pode gerar ataques a alvos identificados como oponentes. Tais comportamentos estão claramente presentes no país. Trata-se de um fenômeno complexo, cuja compreensão aprofundada é importante para a sua abordagem.

Neste contexto, registra-se um novo tipo de episódio de violência em que agressores atacam Escolas com o objetivo de eliminar fisicamente estudantes, professores e outros trabalhadores. Não havia histórico destes ataques até 2000, mas de acordo com um estudo acadêmico[5], 23 ataques com violência extrema foram registrados em Escolas brasileiras nos últimos 20 anos, gerando as mortes de 24 estudantes, quatro professores e dois outros profissionais da Educação. Metade destes ataques teria ocorrido em apenas dois anos (2022 e 2023). Entre as causas apontadas estão vingança, ódio e cultura extremista.

O alarme gerado mobilizou setores da sociedade e do Governo Federal, produzindo relatórios e programas para o combate e a prevenção destes ataques. Parte das medidas defendidas para isto estão relacionadas à segurança pública, e outra, ao ambiente escolar.  Naturalmente, a investigação aprofundada das causas destes episódios é necessária para a efetividade da sua prevenção. Mas a identificação de que alunos ou ex-alunos de cada Escola atacada estão na raiz dos episódios fornece uma pista importante.

Se a hipótese de que a base dos comportamentos radicais induzidos pela mobilização de grupos extremistas é o ressentimento está correta, então podemos estar diante de uma situação em que a gênese deste tipo de violência extrema também é o ressentimento, desta vez resultante de interações decorrentes das complexas relações de poder dentro da Escola. Nisto reside a contradição entre a existência de políticas públicas que fomentam a aprendizagem para a convivência e o cotidiano da Escola, que oculta processos que fomentam, em alguns indivíduos, o comportamento oposto. Diante da profusão de violências que atinge a Escola e da gravidade dos casos ocorridos nos últimos anos, é preciso dirigir olhar para estes processos, em que o ressentimento pode estar sendo gerado dentro da Escola, plantando sementes para a violência, para o ódio e para os seus irmãos extremos: o autoritarismo e as posturas antidemocráticas. E entender qual o papel desempenhado, neste quadro, pelas atividades virtuais clandestinas. Tudo para proteger a Escola como ambiente privilegiado para a formação para a democracia e a equidade.

Qual a escala destes processos? O que produz o ressentimento? Que influência tem a contaminação deste ambiente pelo ódio, pelas sombras da dark web, ingredientes destas ocorrências de extrema violência? Isto pode comprometer os esforços educativos para a aprendizagem para o convívio social e a formação cidadã? Quais são os impactos sobre a consolidação do Estado Democrático como espaço para o exercício pacífico da divergência, para a igualdade entre todos e para o respeito a cada um?

Em suma, um cenário esperançoso, que prevalecia nos anos próximos à virada do século e nos primeiros anos do presente Século XXI, pródigo no desenvolvimento de conquistas democráticas, transformou-se num cenário mais nebuloso, em que o autoritarismo, que não esperávamos mais ter que enfrentar, torna-se um risco que recai sobre toda a sociedade e sobre instituições como a Escola. Não há como evitar isto com detetores de metal ou campanhas ocasionais. Se a violência extrema surge em episódios, os processos que a incubam são contínuos.

 


[1] https://bit.ly/3Xuk2qd

[2] DELORS, Jacques (org.). Educação um tesouro a descobrir – Relatório para a Unesco da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI. Editora Cortez, 7ª edição, 2012.

[3] Ellery Henrique Barros da Silva e Fauston Negreiros, Violência nas escolas públicas brasileiras: uma revisão sistemática da literatura, Rev. Psicopedag. vol.37, no.114 (2020),

https://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-84862020000300006

[4] Afonso de Albuquerque, Marcelo Alves, Liriam Sponholz, Autoritarismo e mobilização on-line: Polarização, Radicalização, Normalização (Editorial), Mídias & Cotidiano, Vol. 18, No.1 (2024),

https://periodicos.uff.br/midiaecotidiano/article/view/61370/35997

[5] Vide https://g1.globo.com/politica/blog/andreia-sadi/post/2023/03/27/estudo-inedito-mostra-que-brasil-teve-pelo-menos-23-ataques-violentos-a-escolas-desde-2002.ghtml

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