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Desafios para uma democracia que garanta direitos¹

Carmen Silva

Jornalista. Mestre em História e Filosofia da Educação (PUC-SP). Mestre em Políticas Públicas (UFMA). Doutora em Sociologia (UFPE). Integrante o SOS Corpo Instituto Feminista para a Democracia (Recife/PE).

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Eu agradeço o convite do Instituto Novos Paradigmas, da Secretaria-Geral da Presidência da República e da Open Society Foundations, que estão organizando esse Ciclo. É uma satisfação estar aqui. É uma boa oportunidade de interlocução. Eu sou do SOS Corpo Instituto Feminista para Democracia, uma organização que atua há 43 anos a partir de Recife. O que eu vou falar aqui tem a ver com o que a gente constrói nessa organização, mas tem base no que faz o movimento feminista como um todo. Eu sou militante da Articulação de Mulheres Brasileiras, e sou também da Plataforma dos Movimentos Sociais por um Outro Sistema Político, que é um espaço onde construímos importantes reflexões sobre democracia. Não estou representando, mas me aproprio do debate desses espaços para trazer uma contribuição. Eu gostei muito da ementa do INP, da orientação para a fala, e eu vou seguir porque ajudou a organizar meu pensamento.

Uma primeira coisa da ementa é uma democracia vista a partir dos novos desafios globais. Eu acho que o momento do mundo coloca muitas exigências para quem quer fazer dele um lugar bom de se viver, para quem luta pelo que é justo, pelo que é belo, pelos nossos desejos. Ele é um momento difícil porque as desigualdades socioeconômicas, de sexo e gênero, de raça e etnia, essas desigualdades só crescem cada vez mais. Isso nos desafia, desafia aos movimentos sociais que lutam por direitos e desafia os governos que intencionam implementar esses direitos. Ainda mais nesses tempos em que a gente vive, de muitas crises, sobretudo a crise ambiental. São muitas crises, mas eu queria me ater a essa e a uma segunda que é a total mercantilização das coisas, de tudo. Inclusive dos nossos dados, dos nossos desejos, daquilo que a gente pensa como nós mesmos. Ou seja, da nossa subjetividade, que é o que as bigtecs estão fazendo. O capitalismo não tem fronteiras, e agora as tecnologias expandiram ainda mais as fronteiras e possibilitam sequestrar a democracia. Quer dizer, nós estamos vivendo uma produção de subjetividade muito mais subjugada do que antes e que disputa inclusive o que é o humano, o que é que nós podemos chamar de humano.

Ao mesmo tempo em que a perspectiva econômica do capitalismo atual é uma perspectiva de descarte das pessoas. É possível para esse sistema se manter e manter o lucro dos 1% mais ricos do mundo descartando as pessoas. Mas quem são essas pessoas descartadas? É o povo preto, são as mulheres que sustentam suas famílias, muito da juventude que não consegue sequer entrar no mercado de trabalho, são os povos originários…  Esse sistema é um monstro de três cabeças. O capitalismo não existe sozinho, está amalgamado com o patriarcado, com o racismo e colonialismo. É um sistema só, como uma hidra, a gente corta uma cabeça e ela renasce. Esse sistema não é uma abstração, ele se efetiva de forma unificada no cotidiano das nossas vidas, dos nossos corpos. Ele se expressa quando controla a reprodução humana, quando captura os nossos dados e os insumos corporais, impede o direito ao aborto, a autodeterminação reprodutiva, quando ele produz a desestabilização do trabalho e da identidade de trabalhador e trabalhadora, joga as pessoas pra informalidade e renomeia isso como empreendedorismo, ou quando joga mesmo num desalento e no desemprego, que é muito mais desesperador.

Nós vivemos num país que bate recorde de assassinato da população trans, que promove o genocídio da juventude negra nas periferias das grandes cidades e o genocídio dos povos originários. E isso ocorre não só no Brasil, isso ocorre no mundo. É possível hoje, para essa hidra, esse sistema capitalista patriarcal e racista, manter a geração de lucro com tudo que existe abaixo da terra, a mineração é um exemplo; com tudo que existe na terra, o alto nível de devastação é um exemplo; com tudo que existe no ar, a forma como está sendo implementada a energia eólica é outro exemplo e com tudo que a gente produz dentro da nossa cabeça que é a nossa subjetividade, os dados que nós compartilhamos nas redes sociais, e as formas que a gente manifesta nossos desejos, tudo isso vira lucro. Então, essa hidra é incompatível com a democracia. E isso coloca em questão o primeiro desafio que é esse: como enfrentar tudo isso senão pela democracia!

O segundo tópico da ementa trata dos esforços para um novo pacto de governança global. Enfrentar esse sistema a partir da democracia é exatamente fazer um esforço para construir um novo pacto de governança global. Precisamos fazer isso em um momento do mundo, o foi muito bem descrito aqui ao falar das guerras, da reorganização das relações entre os países e a submissão dos estados-nação a força das corporações, que é um grande desafio. A democracia está fragilizada na medida em que esse tipo de conflito não está sendo enfrentado, não está tendo a possibilidade de ser enfrentado pelo sistema de governança global.

A fragilização do sistema ONU impacta em tudo isso, e a ONU está sendo impactada pelas guerras, que só recrudescem as desigualdades. As guerras são o último estágio da antipolítica, e elas só recrudescem. O Brasil tem feito um esforço para atuar neste plano. Eu queria saudar, nesse momento, a última declaração do Presidente Lula, denunciando o genocídio que está ocorrendo na Palestina, foi pra isso que eu fiz o” L”, para nesse momento poder saudar este posicionamento contrário a este genocídio, que é o auge do racismo. E dizer também que é preciso que esta posição se expresse em medidas econômicas de sanção ao governo de Israel. Há outras iniciativas da política externa do governo que são importantes, no campo econômico, por exemplo, com a expansão do BRICS, muito embora mereça uma reflexão porque não parece ter base na justiça socioambiental e na democracia econômica, como nós gostaríamos. Mas, mesmo assim, eu gostaria de saudar a política externa do governo Lula.

Isso exige uma reflexão sobre o segundo desafio para enfrentar o sistema, a hidra da qual eu falava, através da democracia: a extrema direita cresce no mundo. Não é só no Brasil que a extrema direita conseguiu amalgamar, através do bolsonarismo, o fundamentalismo religioso, o milicianismo e também a força militar, que sempre existiu na nossa formação social como força política. Isso está acontecendo no mundo todo. Em 2024 aproximadamente 50% da população do mundo participará de eleições em seus países. As eleições que vão acontecer este ano aqui no Brasil, mas também no mundo, vão ser a prova dos nove. Até onde a gente, através dos rituais democráticos tradicionais, conseguimos expulsar ou impelir a extrema direita para um patamar menor do que aquele no qual ela vem se consolidando no mundo.

E por fim, eu queria dizer no terceiro ponto da ementa, a democracia vista como a consolidação dos direitos fundamentais, três breves considerações: uma é que em momentos de crise, e o que a gente está vivendo com risco para o planeta no ponto de vista ambiental e socioeconômico é uma crise muito grave, mesmo os defensores da democracia liberal já acolheram o fascismo. Então, a sociedade brasileira precisa ficar atenta e forte. A segunda ideia é que os direitos fundamentais não são compatíveis com esse sistema-mundo, e a gente está vendo como o sistema, para manter a sua forma, está descartando, não só os direitos fundamentais como todos os direitos, ampliando a fome, ampliando as desigualdades como um todo como um todo, a misoginia e o racismo. E a terceira ideia é que nós precisamos, para enfrentar tudo isso, de um conceito de democracia, tanto teórico como de aplicação prática, que vá além do Estado e além do sistema político.

Embora seja muito importante projetar os direitos na perspectiva da universalidade e da interdependência, pensar a democracia a partir da participação social, da educação popular, da democracia direta, é também muito importante que a nossa democracia contemple uma democracia econômica e a possibilidade de democratização da vida social e da cultura política. E eu queria encerrar, então, indicando que esse é o nosso maior desafio, porque é enorme, e que nós precisamos contar como todo mundo para dar conta dele.

 


[1] Fala proferida no seminário organizado pelo Instituto Novos Paradigmas “Democracia, Equidade e Enfrentamento ao Autoritarismo”, 21 de fevereiro de 2024, em Brasília/DF.

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