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A esquerda, o governo, e o futuro do Brasil, na entrada do século XXI

José Luís Fiori

Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Economia política Internacional, PEPI; e do PPGBIOS, do Núcleo de Bioética e Ética Aplicada, NUBEIA; coordenador do GP da UFRJ/CNPq “O poder global e a geopolítica do Capitalismo”; coordenador adjunto do Laboratório de “Ética e Poder Global”; pesquisador do Instituto de Estudos Estratégicos do Petróleo, Gás e Biocombustíveis, INEEP. Publicou O Poder global e a nova geopolítica das nações, 2007, e História, estratégia e desenvolvimento, 2014, pela Editora Boitempo; Sobre a Guerra, 2018, e A Síndrome de Babel, 2020, pela Editora Vozes.

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Nota do editor: o texto original foi escrito pelo autor em 2001, para uma palestra para líderes políticos organizada pela Fundação Perseu Abramo. Passados pouco mais de 2o anos, as reflexões de Fiori contidas neste artigo seguem absolutamente atuais. 

 

À primeira vista, os intelectuais militantes do pensamento crítico e os parlamentares militantes partidários parecem estar muito distantes uns dos outros. Os intelectuais passam a vida investigando o “tempo longo” da história, tentando desvelar suas estruturas mais profundas, suas leis de movimento, suas tendências e cenários futuros; enquanto os políticos e parlamentares estão obrigados a uma atuação constante e exaustiva no tempo curto da conjuntura, no qual o cálculo rápido e a ação inventiva são decisivos para bem representar os cidadãos e ter sucesso no duro jogo da luta pelo poder.

Em geral, a verdade dos intelectuais – quando e se eles a têm e, ainda, se existir a verdade – deve parecer muito distante e alheia ao cálculo político imediato. Aos olhos dos homens de ação, dos políticos militantes – que têm de ser, por definição, otimistas – o discurso, ou a verdade, de quem se move sobre esse tempo longo da história sempre parecerá pessimista.

Talvez por isso, através da história, tenha sido tão tormentosa a relação entre os intelectuais e os políticos, mesmo no interior do movimento e dos partidos socialistas que, por sua natureza, há mais de um século tentam – mais do que os outros partidos, seja na oposição ou no governo – articular estratégias que permitam combinar eficientemente suas tarefas de curto prazo com o objetivo histórico de construção, no longo prazo, de uma sociedade mais igualitária. Mas parece que há momentos na história em que os pontos cegos e as incertezas são tantas que se impõe uma parada para uma reflexão como esta.

Num primeiro momento, pensei em desenvolvê-la na perspectiva do publicista, isto é, do intelectual que costuma, vez por outra, escrever artigos de combate na imprensa. Pensei que devesse, como na maioria das conferências para as quais somos convidados pelo Brasil afora, tentar adivinhar o futuro. Mas, para minha grata surpresa, trata-se de discutir, como intelectuais e pesquisadores, a natureza e as tendências estruturais das transformações que nestes últimos 25 anos vêm mudando de forma tão rápida e categórica a face e o funcionamento do capitalismo contemporâneo, assim como seu sistema interestatal de gestão política.

Nesse sentido, o que me parece implícito na origem deste encontro é a convicção, da qual compartilho, de que essas transformações econômicas e políticas do capitalismo global não são conjunturais. E, com toda a certeza, irão afetar, se já não o fizeram, de forma duradoura, o lugar, a estratégia e as perspectivas dos partidos socialistas ou mesmo daqueles partidos que tenham forte afinidade eletiva com o mundo do trabalho.

Findo este breve intróito, avancemos para a parte substantiva do nosso debate. Já que se trata de discutir as transformações contemporâneas do capitalismo e da ordem política internacional, comecemos pela identificação sumária dessas transformações e dos momentos em que ocorreram.

Em primeiro lugar, ninguém tem mais dúvida de que essa ruptura ou inflexão na história contemporânea iniciou na virada dos anos 70, quando se condensou e explodiu aquilo que Giovanni Arrighi chamou de “tríplice indisciplina”. A indisciplina dos grupos sociais subalternos, que ele identificava, como todos identificamos, – hoje há completo consenso entre os historiadores – nos movimentos sociais, nos levantes sindicais de 1969, 1970, 1971, 1972; a indisciplina da periferia, que ele percebe, evidentemente, no Vietnã, Laos, Camboja, Irã, Nicarágua, enfim, numa serie de sublevações ocorridas na periferia, mas dentro do sistema e da ordem americana; e, finalmente, Arrighi fala de uma outra indisciplina, sobre a qual caberia mais dúvida e tomaria mais tempo: a indisciplina do capital, que está associada, na sua opinião, à fuga em direção ao euromercado; trata-se de uma fuga de capitais, sobretudo norte-americanos e, como conseqüência, da ruptura do padrão-dólar.

Para caracterizar, como Arrighi, essa ruptura no início da década de 70, eu gregaria uma quarta indisciplina: a dos próprios aliados dos norte-americanos, que deixam de acompanhar incondicionalmente a potência hegemônica a partir do seu envolvimento na Guerra do Vietnã. A partir daquele momento, acumulam-se mudanças que acabam gerando realidades novas e duradouras em diversos campos ou dimensões do sistema capitalista e da ordem política mundial. Vejamos que mudanças são essas. Sem preocupação com a ordem, ou até segundo uma ordem recitativa, contrária à que me parece mais correta do ponto de vista da interpretação, diria que há cinco transformações.

A primeira grande transformação, talvez a mais referida e festejada, ocorreu no campo tecnológico, sobretudo nos campos da eletroeletrônica e da biotecnologia. Suas raízes, as invenções básicas, vieram com a pesquisa forçada pela Segunda Guerra Mundial, sobretudo na década de 40. Aliás, quase tudo que vai incidir sobre a década de 70 vem de muito antes; não há uma revolução tecnológica súbita na década de 70. Por razões puramente técnicas, essas invenções básicas estavam engavetadas desde a década de 40 e, por assim dizer, foram acionadas depois de 1970, sobretudo. Seja no campo da microeletrônica computacional, da telecomunicação, ou da engenharia genética, todas elas, todos sabem, envolvem ou afetam diretamente a extensão, o custo e a velocidade de circulação de informações.

A segunda grande transformação para a qual todos chamam a atenção ocorreu no campo do trabalho e do emprego. Depois de 25 anos de crescimento alto e sustentado, quando o desemprego capitalista atingiu seus mais baixos índices, as economias capitalistas centrais entraram em crise, desaceleraram o crescimento e promoveram uma reestruturação produtiva, que atingiu pesadamente o mundo do trabalho, seja do ponto de vista da quantidade de postos de emprego, seja do ponto de vista da organização sindical dos trabalhadores, seja do ponto de vista da redução dos direitos sociais e trabalhistas. Nesse período, cai vertiginosamente o número de trabalhadores do operariado fabril clássico e cresce enormemente o número dos precarizados, subcontratados, terceirizados, etc. Cai generalizadamente a participação dos salários na renda nacional de quase todos os países capitalistas, aumenta a exclusão dos jovens e dos velhos do mercado de trabalho e o desemprego estrutural alcança níveis explosivos, atingindo, junto ao trabalho precarizado, cerca de 1 bilhão de pessoas no mundo todo, ou seja, um terço da população economicamente ativa mundial.

A terceira grande transformação ocorreu no campo econômico. É aqui, sobretudo, que se encontra o núcleo duro do que, estritamente no campo monetário e financeiro, se chama de processo de globalização. Suas origens estão também mais atrás, na década de 60 e são, em geral, associadas à criação do euromercado de dólares. Mas seu verdadeiro início se dá com o fim da paridade cambial do sistema dólar/ouro, pactado em Bretton Woods e enterrado em 1973, 1976, por decisão unilateral norte-americana. Sua expansão, entretanto, só vai acelerar-se e globalizar-se, efetivamente, a partir de 1980, empurrada pelas políticas regulacionistas, iniciadas pelos governos anglo-saxões, e que atingiram rapidamente o resto do mundo num efeito dominó… É essa expansão que, na entrada da década de 90, com o fim das economias socialistas e a adesão dos governos latino-americanos, dá nascimento, de fato, a uma finança mundial privada e desregulada, operando 24 horas por dia – em tempo real, portanto – e por cujas veias circula e se acumula uma riqueza de tipo rentista que já está na ordem de uns 3 ou 4 trilhões de dólares diários.

A quarta grande transformação que convém destacar ocorreu no campo político e ideológico e se deu a partir da década de 80. Suas raízes também remontam às rebeldias sociais, sindicais e políticas que geraram, nos anos 60 e 70, um sentimento de crise democrática. Aliás, deram origem a uma palavra que depois virou moda e que circula pelo mundo de maneira tediosa: governabilidade – ou ingovernabilidade. Esta nasceu da preocupação dos conservadores com essa década de rebeldia, os anos 60, e explica, de certa maneira, a reação conservadora que vai ocorrer a partir da vitória de Margaret Thatcher e Ronald Reagan em 1979 e 1980. É a partir desse momento que avança sobre o mundo uma nova (??) ideologia hegemônica, que recebeu o nome de neoliberalismo e que estará por trás do pensamento econômico único, monetarista, que organizou e legitimou as novas políticas econômicas, convergentes em quase todo o mundo. São políticas de tipo deflacionista, acopladas às reformas desestatizantes e desregulacionistas, que chegaram à América Latina de forma um pouco tardia, nos anos 90, reduzindo ou acabando por todos os lados com os direitos trabalhistas.

Por fim, a quinta e última grande transformação contemporânea ocorreu no campo geopolítico, evidentemente, também no final dos anos 60 e início dos anos 70. Na derrota norte-americana no Vietnã, essa transformação geopolítica teve o seu momento decisivo, mas, uma vez mais, a mudança só tomou sua direção atual nos anos 80 – durante a Segunda Guerra Fria do governo Reagan, que teve apoio da Sra. Thatcher – e alcançou sua plenitude a partir de 1991, quando, com o fim da Guerra Fria, o mundo passa a assistir a uma veloz concentração do poder político-militar mundial nas mãos dos Estados Unidos e de seus aliados, sobretudo dentro do mundo anglo-saxão.

Hoje, quase todos os analistas internacionais, políticos e econômicos, estão de acordo sobre terem sido essas as principais transformações deste último quarto de século. Elas atingiram e mudaram a face da ordem econômica e política mundial que foi pactuada e construída, logo depois da Segunda Grande Guerra, sobre a hegemonia capitalista norte-americana e sobre o guarda-chuva da bipolaridade ideológica e geopolítica gerada pela competição interestatal entre os Estados Unidos e a União Soviética. Porém, as grandes divergências atuais não estão na identificação das principais transformações, mas na forma como essas transformações vêm sendo interpretadas e hierarquizadas pelos vários analistas.

Creio que é possível identificar pelo menos duas grandes interpretações desses mesmos fatos, as quais são responsáveis por leituras, projeções e proposições completamente distintas, quando não opostas. A primeira dessas interpretações é hoje absolutamente hegemônica, tanto no mundo acadêmico, quanto na imprensa e no mundo político. Pode-se chamá-la interpretação liberal, mas inclui, e isso é importante reconhecer, uma parcela expressiva de adesões marxistas. Para seus adeptos, o essencial ocorreu no campo das transformações tecnológicas, cujos efeitos se alargaram através do mundo de mãos dadas com a expansão irrefreável dos mercados. Juntas, as transformações tecnológicas e a expansão dos mercados teriam derrubado as fronteiras territoriais dos Estados, tornado anacrônicos os projetos econômicos nacionais e obrigado à redução virtuosa da soberania dos Estados nacionais e dos direitos sociais e trabalhistas; tudo isto em nome da competitividade global.

E mais ainda: segundo esses analistas, sobretudo segundo seus ideólogos, essas transformações não só seriam inevitáveis e inapeláveis, como, no médio prazo, levariam a um novo renascimento global, com homogeneização progressiva da riqueza e do desenvolvimento através do livre comércio e da livre circulação de capitais. No limite, os mais eufóricos consideram que essa globalização tecnológica induzida deve levar-nos em direção a alguma forma de governo global, de paz duradoura e de democracia cosmopolita.

Uma segunda interpretação, oposta a esta e que subscrevo pessoalmente, vê essas transformações contemporâneas de forma completamente distinta. Nossa tese é que, em primeiro lugar, essa visão hegemônica da desregulação, do fim das fronteiras, do fim dos Estados, do fim da história, do fim da guerra, da paz universal, do governo global e da democracia cosmopolita, essa visão hegemônica tem um forte viés ideológico e apenas atualiza as idéias centrais de uma velha utopia liberal, que já vem de fato dos séculos XVII e XVIII, mas que tem sido reiteradamente negada pela história e, parece, uma vez mais, não corresponder nem dar conta das transformações atuais.

Em segundo lugar, agora afirmativamente, nossa tese é que a globalização, usada aqui apenas como a palavra síntese, não é uma mera imposição tecnológica, nem é apenas um fenômeno ou discussão puramente econômica, senão, pelo contrário, diz respeito essencialmente a uma estratégia e a novas formas de dominação social e política, as quais se desenvolveram e se afirmaram vitoriosas neste último quarto de século, tanto no plano internacional como no espaço político interno de um número expressivo de países. Segundo nosso ponto de vista, é a partir dessa estratégia vitoriosa – que não deve ser confundida com conspiração, nem com um só sujeito, mas pensada como resultado daquilo que Engels e também o sociólogo alemão Norbert Elias costumam chamar de um paralelogramo de forças – que se deve explicar a globalização. Trata-se de uma estratégia, não de uma conspiração, nem do voluntarismo satânico de algum mago das finanças ou da economia.

É a partir do reconhecimento dessa estratégia que se deve explicar, do nosso ponto de vista, a trajetória específica que tomaram os processos neste tempo de convergência político-ideológica e político-econômica, de concentração, centralização e financeirização do capital e de reorganização das hierarquias e formas de dominação entre os Estados. Nesse sentido, nossas leituras da crise e das principais transformações contemporâneas correspondem a uma visão, ou teoria, mais ampla sobre a dinâmica do capitalismo histórico. Este, apesar de suas mudanças e rupturas, apresenta algumas regularidades que atravessam os séculos, além daquelas ligadas ao processo de acumulação de capital, tão bem mapeadas e diagnosticadas por Marx.

Existem, na dinâmica do capitalismo histórico, outras realidades relevantes para a discussão aqui proposta e que dizem respeito às relações entre o poder dos Estados e o poder do capital, em primeiro lugar, e entre o poder político mundial e os espaços geográficos – o que inclui o problema das periferias do sistema -, em segundo. Há, por fim, o problema da relação entre o poder dominante mundial e os grupos subordinados.A nossa interpretação das transformações aqui tratadas e de suas conseqüências sobre as estratégias dos partidos e dos movimentos socialistas ou trabalhistas inscreve-se numa visão teórica mais ampla que privilegia a discussão das permanências, das regularidades do sistema. Esta visão dirige-se, portanto, para além das rupturas, para além desse fascínio constante dos intelectuais e dos jornalistas pela surpresa e pela novidade, que os torna incapazes de explicar o que de fato vai passando no sistema.

Com um rápido passeio pela origem da modernidade capitalista pode-se introduzir nesta discussão algumas evidências de que os Estados não apenas nasceram junto com o capital, como tudo indica que deverão seguir casados enquanto o capitalismo sobreviver. Há pelo menos três momentos dessa história que são fundamentais para esta discussão.

O primeiro desses momentos é extremamente ilustrativo, porque nele se pode captar ou fotografar o big-bang na sua origem: é o momento do próprio nascimento dos estados territoriais e do capitalismo, quando – do nosso ponto de vista – se originou, a um só tempo, uma economia nacional e uma economia global. Esta é uma idéia absolutamente central para o nosso raciocínio. Não existe um capitalismo smithiano, que vai se dividindo e depois vai se globalizando de dentro para fora. Do nosso ponto de vista, para pensar a globalidade, é essencial a convicção de que o capitalismo é, desde a sua origem, nacional e global.

Entre os séculos XV e XVIII, como todos sabem, ocorreu na Europa, um período chamado mercantilista. São três séculos de luta intereuropéia e competição colonial. É nesse momento que, do nosso ponto de vista, ocorre um verdadeiro big-bang da modernidade, gerado exatamente pelo encontro – a um só tempo virtuoso e odioso – entre o príncipe, o território e o capital. Desse encontro deriva o casamento indissolúvel do Estado com o capitalismo, concertado já no nascedouro de ambos, com a constituição simultânea dos territórios e economias nacionais e dos impérios coloniais. Há uma visão equivocada segundo a qual o estado territorial seria uma espécie de freio permanente ao movimento compulsivo do capital em direção à globalidade; mas o que a história nos demonstra, desde o século XV, é que, assim como o capital tem uma propensão irreprimível à globalidade, o estado territorial tem uma propensão irreprimível ao império. Nasceram juntos, casaram-se ao nascer e já “saltavam o muro”, desde então.

Uma terceira lição é que, a partir da sua constituição, a competição entre os Estados envolveu desmonopolização para dentro, ou desobstrução dos mercados internos, na medida em que o próprio movimento do mercantilismo foi um movimento de expansão controlada, com monopolização para fora e desregulação para dentro. Este é um aspecto que, em geral, não é sublinhado no estudo do mercantilismo. A competição entre os Estados, do nosso ponto de vista, envolveu sempre os mercadores e os banqueiros e se transformou numa formidável alavanca de acumulação de riqueza desde a primeira hora até hoje. De tal maneira que o historiador francês Fernand Braudel chegou a dizer que, de fato, a competição interestatal é o lugar dos grandes predadores e dos grandes lucros capitalistas ou, mais radicalmente, que este é de fato o lugar do capitalismo: a competição entre Estados e não a economia de mercado.

Sem querer discutir Braudel, diria que a quarta lição é que esses blocos estados-capitais sempre competiram entre si de forma hierárquica e sua tendência essencial foi, desde o início, globalizante e imperial. Para relembrar apenas a história factual, seja a impulsão de Felipe II sobre o mediterrâneo, seja a impulsão ibérica em direção à Ásia – que nos trouxe para dentro da história européia -, seja a impulsão francesa, ou a inglesa, a união entre poder político e blocos de capitais mercantis e financeiros e a competição – bélica ou não-bélica – entre esses blocos estão na raiz da propensão globalizante – do capital – e imperial – do poder político. E se essa propensão à constituição de um império universal nunca se realizou – quinta lição – foi simplesmente porque cada avanço desta propulsão imperial encontrou-se, ou confrontou-se com vocações iguais e contrárias. E foi o surgimento dessas vocações iguais e contrárias que permitiu o nascimento de um sistema de equilíbrio de poder, sempre transitório, a que costumamos chamar de ordem mundial. Eis a sexta lição: sempre transitório, ou seja, sempre em desequilíbrio potencial porque, pelo menos em alguns Estados, que mencionarei adiante, a vocação imperial é permanente.

Por isso, o sociólogo alemão Max Weber formulou uma idéia mais ou menos parecida: o capitalismo deve muito à competição entre as cidades, mas muito mais à competição entre os Estados. Weber chegou a dizer, em 1890, que, se a competição dos Estados desaparecesse, substituída por um império universal, o capitalismo acabaria. É uma hipótese radical e provocadora, esta sétima lição, mas extremamente interessante para aqueles que sonham com um capitalismo global operante e homogeneizador.

Por fim, a oitava lição que é possível extrair destes primeiros trezentos anos da história do casamento entre o capital e o estado territorial é que a competição se dá, sobretudo, dentro de um conjunto muito limitado de Estados do norte da Europa. A este pequeno grupo agregaram-se mais um ou dois, constituindo o núcleo orgânico de gestão política do capitalismo. A competição entre esses Estados é absolutamente decisiva para o ritmo de alavancagem da riqueza global, como é decisiva também para o desenho das possíveis janelas de oportunidades de crescimento econômico dos países situados fora desse núcleo central do sistema.

No segundo dos três momentos que queremos destacar, a Revolução Industrial Inglesa e as revoluções políticas Francesa e Norte-americana mudaram completamente o cenário econômico e a ordem política mundial. Como todos sabem, pela primeira vez uma potência, a Inglaterra, se mostra capaz de hegemonizar o sistema dos demais Estados, graças a sua superioridade econômica e militar, à força do seu programa, da sua ideologia liberal e, sobretudo, das suas finanças.

Com a hegemonia inglesa, surge o primeiro sistema monetário mundial, baseado na libra. A Inglaterra começa, já então, a lançar-se na conquista do império mundial, ao derrotar os franceses na Índia, em 1750, e, sobretudo, ao derrotar a rebelião hindu, em 1850, e submeter a Índia a uma dominação já não mais mercantil, mas diretamente política. Ali começa um novo movimento do núcleo orgânico do sistema, não só na direção colonial, mas, basicamente, na direção da constituição de um império global inglês.

Tal império não chega a se implantar porque volta a gerar um núcleo de forças contrárias, inicialmente muito inferiores às da Inglaterra, mas suficientes para bloquear a passagem inglesa, impondo progressivamente uma situação de equilíbrio e, finalmente, a substituição. Este novo núcleo orgânico do sistema constitui-se em torno de 1860 e, na verdade, segue sendo o mesmo até hoje: aqueles mesmos países do norte da Europa – Rússia, França, Inglaterra e Alemanha – mais os Estados Unidos e o Japão. O século XX é uma história destes países. Este segundo momento tem final bem conhecido: a corrida bloqueou o projeto imperial inglês e acabou em duas guerras.

A partir de 1945 inicia-se o terceiro momento que queremos destacar e que é ainda mais conhecido de todos. O que se assiste nesse momento é um processo, ainda não bloqueado nem interrompido, de expansão imperial norte-americana, que esbarra na União Soviética e cria o mundo bipolar até à altura de 1960, 70. É nesse período que, sob a batuta e a proteção dos Estados Unidos, se recomporá aquele núcleo de 1860, com a França, a Alemanha e o Japão reconstruídos depois da Segunda Guerra. O mesmo núcleo, portanto, mas agora numa situação de clara subserviência aos Estados Unidos. Depois de 1970, ocorreu o que chamamos indisciplina dos aliados.

Este período que ficou conhecido como a era de ouro do capitalismo se encerrou, nos anos 1970, sem uma guerra explícita… Ele acabou, por assim dizer, onde começamos esta discussão. Seu fim está marcado pela crise que deu início a essas gigantescas transformações que tanto fascinam uns, tanto assustam outros e que deslancharam naqueles anos. Acabou-se, então, o mundo dourado.

Voltemos, pois, ao nosso ponto inicial, agora com condições postular, para efeito desta discussão, um diagnóstico. Embora sem qualquer certeza, temos condições de ver, depois desta breve repassada pela história, que a acumulação da riqueza e as transformações capitalistas hoje, como sempre, envolvem uma permanente competição entre os Estados – e seus blocos de capitais – e seguirão envolvendo tal competição, sobretudo entre os Estados do núcleo central do sistema. Mas é uma competição que se espraia periodicamente, redefinindo, desde 1500, sucessivas formas de hierarquização e dominação colonial – ou imperial – do mundo.

Podemos agora retomar nossa leitura inicial da chamada transformação contemporânea dos últimos 25 anos. Havíamos dito que ela obedece, na direção do seu encaminhamento, a uma estratégia política e financeira que se impôs ao mundo desde 1980, a partir do epicentro anglo-saxão. É, na verdade, uma estratégia que refez os termos da aliança de interesses e redesenhou o mundo logo depois da Segunda Guerra Mundial. Há um paradoxo na saída da Segunda Guerra Mundial que pode dificultar o entendimento do que se passou depois de 1980. Por vezes pode-se ter a sensação de que Bretton Woods foi um verdadeiro ‘piquenique’ keynesiano e não o foi. Na verdade, foi uma reunião em que as posições hegemônicas antes de 30, aquilo que Karl Polanyi chamaria de “as posições das altas finanças”, estiveram presentes e batalharam decididamente para que a liberdade de comércio fosse aprovada junto com a livre circulação de capitais. Essa atitude foi dominante antes de 1930, esteve presente em Bretton Woods e foi derrotada por uma circunstância muito especial: a morte de Roosevelt e sua substituição por Truman, que traz os banqueiros de volta ao cenário da economia política {J.L.: adicionei o trecho em vermelho; veja se convém.} Os banqueiros passam a pressionar na direção da convertibilidade imediata das moedas européias, o que gera a crise monetária de 1947 na Europa que, junto com a ascensão dos comunistas, trouxe uma enorme força aos falcões da política externa americana. Estes, apoiados na posição de Truman sobre a Guerra Fria, acabaram por engendrar {J.L.: idem, ibidem.} a paradoxal aliança que gerou o Welfare State no centro e o desenvolvimentismo na periferia.

Assim nasceu a sustentação real, objetiva, no mundo dos interesses, desse projeto que durou 20 anos e permitiu o nascimento do Estado de Bem-Estar Social na Europa e do desenvolvimentismo em alguns países periféricos, particularmente no Brasil. Em 1980, com a vitória conservadora de Thatcher e Reagan, acontece uma inversão, do ponto de vista dos interesses, nessa aliança. As finanças voltam ao poder, depois de terem sido expulsas, nos Estados Unidos, por Roosevelt em 1933. Esta aliança de interesses, cuja associação orienta a agressiva política externa americana, deu início à chamada Segunda Guerra Fria, criando a verdadeira base da pressão telúrica que, em última instância, levou de roldão a União Soviética e abriu as portas para esse redesenho do mundo, fundado no poder estrutural – sem qualquer conspiração – das finanças anglo-saxônicas. Uma vez auto-desreguladas, estas finanças hegemônicas impuseram ao mundo a desregulação das demais, por razões absolutamente óbvias e que desmerecem ser comentadas.

Assim, chegamos a 1990 com uma sensação de retorno à supremacia das altas finanças que dominaram o mundo entre 1870 e 1914 – uma espécie de retorno ao período que Karl Polanyi chamou de “o auge da civilização liberal”. Mas trata-se, na verdade, de mais uma retomada do trilho da civilização liberal e não de uma volta pura e simples. Entre outras razões, porque, hoje, as relações entre o império anglo-saxão e a moeda americana são completamente diferentes das relações que teve o império inglês com a moeda libra-ouro, em torno da qual se organizou o sistema monetário internacional naqueles 50 anos do final do século passado.

É importante atentar para o futuro desta nova ordem política, acentuando agora o lado geopolítico mundial, tal como ele se configura neste final de milênio, uma década depois de terem os Estados Unidos comandado aquela imensa coalizão, em nome da defesa e da soberania do Kwait, e que termina com outra coalizão, em nome do fim da soberania da Iugoslávia. Sem defender qualquer delas, convém realçar o interesse dessa década para a reflexão sobre este problema.

Creio que neste momento, com o avanço anglo-saxão sobre o mundo, estamos assistindo a algo equivalente ao avanço sem peias da Inglaterra entre 1815 e 1880. E nesse movimento de expansão, é previsível que o centro do império não tenha por onde ser ameaçado, até o momento em que se recomponha o núcleo central do sistema; e ele só se recomporá com condições competitivas, se a Europa conseguir resolver o enigma milenar das relações entre o povo germânico, o povo normando e o povo franco, para ir às origens dessa história de amor e ódio.

Outro elemento que influenciará a recomposição do núcleo central que passará a impor regras de complementaridade, mas principalmente de competição, será – é evidente – o provável reingresso da China nesse núcleo central de comando político do mundo. Entrementes, parece não haver grandes perspectivas de mudanças, mas apenas de uma longa guerra de posições, que acontecerá explicitamente no plano comercial – porque é mais visível – e de forma mais discreta, porém muito mais violenta, no campo financeiro e no da moeda.

A paralisação do acordo multilateral de investimentos e a verdadeira explosão que aconteceu em Seattle são apenas sinais que confirmam tais perspectivas. Neste quadro, a América Latina e o Brasil devem seguir na periferia e, portanto, dependentes dos grandes ciclos determinados pela dinâmica dos centros. Uma vez adotada essa estratégia passiva na forma de inserção internacional, pouco se pode fazer para mudar os rumos do país. A verdade é que, se olharmos para a atual situação latino-americana – ou para a brasileira – teremos a impressão de que vamos nos inserindo na ordem internacional e econômica de uma maneira muito mais parecida com a forma com que o fizemos na segunda metade do século XIX do que com a adotada entre 1930 e 1990, no caso brasileiro, no de outros países, entre 1930 e 1980 e no do Chile, entre 1930 e 1970.

Pode-se dizer que, com essa mudança da ordem internacional, com esse mundo desregulado e essa inserção sem proteção, de países sem moeda, sem tecnologia e sem armas haverá inevitavelmente – aliás, já houve, já estamos vivendo, agora, a segunda década resultante dessa estratégia – um estreitamento violento dos caminhos, das possibilidades, do ritmo de desenvolvimento possível. É como se, ao ‘voltarmos’ ao século XIX, devêssemos enfrentar novamente a escolha entre duas alternativas possíveis – paradigmáticas – de desenvolvimento bem sucedido. É verdade que, na segunda metade do século XIX, pode-se identificar casos de sucesso no desenvolvimento capitalista em países que os historiadores vieram a chamar capitalismos tardios: Alemanha, Japão, a Rússia um pouco menos e de modo mais confuso… Isto é, são Estados nacionais que compraram a batalha do catch-up com a Inglaterra, dispostos a equiparar-se com ela em termos militares, tecnológicos e financeiros. O que não quer dizer que tenham se fechado em algum tipo de autarquismo econômico – isto seria uma visão absolutamente ingênua e ridícula do que seja essa luta internacional. Ninguém fez tal bobagem; pelo contrário. Agora os chineses, mais uma vez, estão demonstrando enorme inteligência ao entrar na Organização Mundial do Comércio. Não há como fazer o catch-up e virar potência, sem fazer o jogo de complementaridade e competição. A dificuldade é justamente esta: saber conduzir essa estratégia de complementaridade e competição. Isto foi o que levou a Alemanha, o Japão e os Estados Unidos a saírem do padrão-ouro quando precisavam, a voltarem a ele quando era necessário, a usarem o mercado inglês e a fecharem também seus mercados quando precisavam; enfim, alta flexibilidade e pragmatismo de países que tinham um projeto nacional e, mais, um projeto imperial, tão claro e tão nítido quanto o inglês. Essa é a diferença.

Os domínios ingleses, como Canadá, Nova Zelândia e Austrália configuram casos bem sucedidos de outro tipo. Pequenos países com governos locais autônomos, mas, em última instância, dependentes do poder político inglês e sem moeda conversível. Sua moeda era administrada pelo banco da Inglaterra através do sistema de currency board. São, evidentemente, países cujo enorme sucesso se deve a tais e tamanhas garantias, à continuidade, ao tipo de produção e de familiaridade cultural, que permitiu que, em alguns momentos e durante muito tempo, os capitais ingleses representassem até 60 ou 70% do investimento direto. Há, além disso, investimentos em infra-estrutura, em agricultura, em transportes, e outros que os diferenciam.

Torna-se fácil lançar uma provocação às elites latino-americanas em geral e, em particular, à do México, em primeiro lugar, à da Argentina, em segundo, e à nossa, em terceiro, dizendo que sua opção esboça, em última instância, uma candidatura a transformar-nos em domínio deste novo império americano.

Não é necessário dizer que pequenos países, economias mínimas – como a chilena – podem, eventualmente, trabalhar com nichos de mercado, complementaridades, entressafras, e coisas do gênero. Mas a idéia de domínio aplicada a um país como o nosso vis-à-vis os Estados Unidos só tem lugar na cabeça de um ensandecido. Não temos uma estrutura que nos habilite a nos encaixarmos na deles, nem eles têm a correspondente simplicidade; ao contrário, eles têm uma complexidade tão grande de interesses que é praticamente impossível compatibilizá-los com os nossos, na esperança de nos transformarmos numa grande, numa imensa Austrália.

A consciência da dificuldade de darmos um primeiro passo à frente para sairmos da situação em que estamos (que é uma espécie de CTI do Fundo Monetário e não, diretamente, do Tesouro Americano e do FED) nos imobiliza. Vivemos a impossibilidade de acelerar mais o crescimento nesse tipo de inserção, o que nos deixa esse forte sentimento de impasse. Trata-se de uma situação instável, cuja dinâmica interna ancora no baixo crescimento, no desemprego, promovendo um desequilíbrio fiscal crônico e, com isso, a ingovernabilidade nas instâncias nacional e subnacional; Temos, a um tempo, alta liquidez e permanente ameaça de insolvência, como se pode ver com freqüência pelos dados apresentados pela imprensa.

Em síntese, depois destes 25 anos de mudanças, há que dizer que, ao contrário da previsão da utopia global, nunca na história o poder e a riqueza mundial se concentraram tanto. Nunca foi tão grande a velocidade da polarização e do aumento da distância entre as nações e as classes sociais, para não falar do poder militar, evidentemente. Aliás, é isso que os relatórios do Bird, da ONU, da Unctad, e até do Fundo Mundial diagnosticam neste final de década. Já não há nenhuma novidade: o rei está nu. O próprio Banco Mundial – organismo que podemos supor não ter interesses enviesados nesse jogo – previu que talvez o Brasil cresça 2,5% este ano, 3% no próximo e 4,5% em 2008. O que é, de fato, muito entristecedor  para um país como o Brasil.

De qualquer forma, o aumento da polarização e da exclusão social nestes 20 anos alcançou tais dimensões que já são visíveis, do meu ponto de vista, os sinais do início de um movimento de reversão. Ou, pelo menos, de interrupção da avalanche em que se transformou esta espécie de vingança do capital com relação ao trabalho e à política dos anos 80 e 90. Na Europa, sobretudo, e em alguns outros pontos do mundo voltam a ecoar as palavras de Hobbes no século XVII; de Marx no século XIX; de Polanyi em meados do século XX e de Arrighi no final do século XX, todos eles advertindo na mesma direção: consideram que é impossível sustentar ou legitimar qualquer soberano que não conte com a lealdade mínima de uma população que, por sua vez, não esteja minimamente alimentada e educada. Karl Polanyi chegou mesmo a formular uma teoria original sobre a crise dos anos 30, que ele via como uma crise da civilização liberal provocada – nas próprias palavras dele – “pelo fato de que nenhuma sociedade poderia preservar sua substância humana e material sem que ela se protegesse, em algum momento, contra os efeitos entrópicos e destrutivos dos mercados auto-regulados do trabalho, da moeda e da terra”. A isto ele chamava “o moinho satânico”.

Nesse sentido, se estiver certo o nosso prognóstico e se Polanyi, Deus queira, tiver razão, também entre nós soará a hora em que a reação social se fará tão forte que obrigará a um recuo e a uma repactuação das vantagens e graus de liberdade exorbitantes conquistados pelo capital nestes 20 anos. Mas a canalização política dessa reação passará inevitavelmente pela capacidade e inventividade das forças e lideranças políticas de cada país. Não é casual, portanto, que neste momento os partidos socialistas e os partidos do mundo do trabalho sintam-se tão desorientados. Na verdade, esses partidos sentem-se como se tivessem perdido, nestes últimos 20 anos, em primeiro lugar, a sua base de representação – e isso é fictício; em  segundo, o seu objetivo final; e, terceiro, a sua agenda de políticas imediatas.

Se há algo de verdade em tudo isso, entretanto, talvez, uma vez mais, a história possa nos ajudar, mostrando que nem tudo nesse debate socialista é tão novo e nem tão confuso. E, sobretudo, que nem todas as dificuldades dos socialistas têm a ver com o fim da União Soviética. Ou com o suposto fim do mundo do trabalho. Insistindo na tese de que a história pode ser uma grande mestra, convém relembrar alguns dos momentos fundamentais da história das dificuldades socialistas de relacionamento com o capitalismo.

O primeiro momento extremamente pedagógico na história do movimento socialista internacional e europeu, em particular, aconteceu, na minha opinião, entre 1891, quando foi aprovado o Programa de Erfurt, da Social-Democracia Alemã; e o período que vai de 1914 a 1917. Aliás, as dúvidas, angústias e incertezas deste período da discussão e do debate interno entre os socialistas europeus muito se assemelham às da situação atual. Basta relembrar os tópicos centrais da agenda de discussão enfrentada naquele momento nos sucessivos congressos, a começar pelos alemães, que eram um movimento socialista livre. Vejamos quais sejam tais tópicos.

A primeira questão que atormentou o movimento socialista nessa época foi a da representação. Na verdade, todos percebiam que os partidos socialistas europeus, com raríssimas exceções, não só não tinham, naquele momento, maioria militante proletária, como tampouco tinham um eleitorado que fosse predominantemente proletário. Já naquele momento os socialistas faziam-se a pergunta, ou recolocavam o tema proposto por Marx e reposto no Programa de Gotha e de Erfurt, sobre a centralidade, não do trabalho, mas sobre a centralidade revolucionária do proletariado, do trabalhador fabril, ao constatar um gap na sua militância e no seu eleitorado.

A segunda questão que moveu o debate dessa época era a chamada questão das propostas de curto prazo e, sobretudo, como um bom partido socialista – ou de trabalhadores – pode manter consistência entre as propostas de curto prazo – como já aparecem no Manifesto Comunista de Marx – e a proposta de longo prazo, que é a sociedade-fim, a sociedade idealizada como ponto de chegada, seja lá a forma como cada um a veja.

A terceira questão que ocupou a agenda dos socialistas naquele período é a das alianças (Já lá se vão 120 vinte anos discutindo alianças!). É óbvio que naquele momento, como hoje, os socialistas europeus não estavam discutindo alianças com outros partidos socialistas, estavam discutindo com partidos não socialistas e, evidentemente, não conseguiam, pelo menos a maior parte deles, responder à pergunta: aliança em torno de quê, para quê, até onde? Questões cujas respostas ficaram facilitadas pela guerra.

Mas, antes de chegarmos à Primeira Grande Guerra, houve um último tópico, central para aquela discussão – travada em uma época de muita discussão socialista, digamos, aquém da idéia de revolução, já que poucos partidos socialistas europeus, antes de Lenin e da revolução soviética, defendiam ou mesmo pensavam tal idéia -, que ocupou-os durante trinta anos e que se resumia em responder a seguinte pergunta: em que consiste uma gestão socialista do capitalismo? Como sabemos, a resposta a essas inquietações socialistas, logo depois da Primeira Guerra Mundial, foi dada em três direções que são extremamente pedagógicas.

A primeira delas foi a resposta da revolução russa. Mas, como depois de 1922 ela não esteve mais na ordem do dia européia, devemos deixa-la de lado. A segunda foi a resposta dada por aqueles que, levados pelo seu apoio à Guerra, ou, depois, pressionados pelo descontrole inflacionário das economias, aceitaram participar de governos de aliança e assumir em muitos casos o comando da política econômica, ou do que seria o Ministério da Fazenda local, na Áustria, na Alemanha, na França, etc.. Neste caso, o ensinamento da história parece-me categórico: os socialistas, quando estiveram no comando da política econômica antes que terminasse o padrão-ouro, foram – com exceção dos suecos e dos seus discípulos nórdicos – radicalmente ortodoxos, pró-restauração do padrão-ouro, pró-estabilização da moeda forte, contra a política de empregos e essa inserção no comando da política econômica acabou resultando num retumbante fracasso para os partidos socialistas. A terceira resposta socialista desse período não ocorreu no comando do governo ou, pior ainda, no comando da política econômica do governo. Veio de outro lado, de uma reflexão mais teórica. Aqui convém sublinhar, pela importância que teve durante todo o século XX, o trabalho de Hilferding sobre o capital financeiro. É o primeiro trabalho que refaz a teoria marxista sobre as transformações do capitalismo. Tal era sua grande questão: entender as transformações do capitalismo, entender seu rumo. Ter-se limitado à Alemanha e não compreender os Estados Unidos é um pecado que não nos interessa aqui, já que estamos interessados no debate interno socialista.

A segunda questão decisiva, que aconteceu para marcar o resto do século e que vem da teoria é o trabalho dos economistas políticos que estudaram o tema que, depois, foi chamado imperialismo. Nisto contribuíram Bukharin, Lenin, Rosa Luxemburgo.

A terceira contribuição, absolutamente decisiva, novamente de Hilferding, apareceu no Congresso de Kiel da Social-Democracia Alemã, em 1927 e é conhecida como “A Tarefa da Social-Democracia”. Nesta se apresenta e se desenvolve, já numa direção estratégica, a idéia de capitalismo organizado. Diz Hilferding textualmente: “Esta forma planejada e administrada de economia do capitalismo organizado alemão é muito mais suscetível de ser influenciada conscientemente pela sociedade, quer dizer, influenciada pela única instituição capaz de organizar consciente e compulsoriamente a sociedade – o Estado”. Aqui começa, com força total, a idéia de que era possível uma gestão socialista do capitalismo e de que essa gestão passaria por uma forma específica de intervenção do Estado, fosse pela via do planejamento, ou outra, no processo de acumulação. Deve-se agregar, ainda nesse período, a contribuição do León Blum, que propôs, também numa discussão teórica e partidária na França, a separação dos conceitos de conquista do poder, exercício do poder e ocupação defensiva do poder.

Por último, houve um núcleo de pessoas que trabalharam um tipo de resposta muito importante para o pós-Segunda Guerra Mundial e que poderiam ser chamados planejadores socialistas. Não estiveram no governo nas décadas de 20 ou 30 e governaram muito pouco depois de 45. Mas desenvolveram a tese de Hilferding, elaborando formas de intervenção na economia; o inglês G.D.H  Cole, o francês Marcel Deat e o belga  Hendrick de Man começaram a trabalhar a hipótese da necessidade de um planejamento e, talvez, da nacionalização de algumas empresas que permitissem o comando do processo de acumulação, segundo os desígnios de um projeto de administração socialista do capitalismo.

É interessante sublinhar que foi exatamente depois da Segunda Guerra Mundial e quase sempre por mãos conservadoras que este programa – desenhado fora do governo, por intelectuais socialistas – foi levado adiante, como se fosse a velha agenda socialista de administração do capitalismo. Num discurso de 1943, Churchill dizia que “o povo tem que ter toda educação, os programas de saúde devem ser universais”, etc. Quer dizer, todas as teses que, de alguma maneira, já estavam até no Programa de Erfurt reaparecem aqui, pela voz destas pessoas que não foram administrar o câmbio. Reaparecem logo depois da Segunda Guerra Mundial, entre democratas-cristãos e conservadores, que foram os mais proficientes em fazer isso, seja na Alemanha, na França, na Itália, na Áustria e, de certa maneira, também na Inglaterra, apesar de o primeiro governo ter sido trabalhista.

Foi nos anos 80, dez anos antes do fim da União Soviética e da queda do Muro de Berlim, que ocorreu a verdadeira virada do pensamento socialista europeu. De novo, na Europa, estão os socialistas colocados frente ao desafio de assumir o governo e o comando da política econômica, no momento em que a desregulação competitiva dos mercados está em pleno curso. Foi sob essa sombra e não à sombra do fim da União Soviética, – que é uma face, é uma mudança da ordem dos fatores, – que apareceram Craxi, na Itália, Gonzáles, na Espanha, Papandreou na Grécia, Mitterrand na França. Estivessem vivos aqueles homens de 90, estes senhores seriam chamados neo-revisionistas, governantes de uma economia que voltava a um simulacro do padrão-ouro e que caíram de novo, sessenta anos depois, na armadilha da moeda forte, do desemprego, do bom comportamento frente às finanças internacionais e do mau comportamento frente aos seus antigos eleitores. Não é por acaso que se fala no fim da centralidade do trabalho. Nos anos 90, a terceira via já não é mais isso e não tem mais nada a dizer a um país desigual e subdesenvolvido como o Brasil. Ë melhor desconhecermos isso que não chega a ser uma lição.

Como vemos, as discussões, angústias e disjuntivas socialistas produzidas pela transformação político-econômica do capitalismo, de que estivemos falando no início desta conversa, não são tão novas. Pelo contrário, a história nos ensina que os próprios socialistas já falaram três ou quatro vezes em terceira via, outras tantas em revisionismo e mais outras em necessidade de moeda forte como saída para o crescimento, com o mesmo pobre resultado no longo prazo. Todos já experimentaram várias políticas, alianças e modelos e acabaram na gaveta.

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