A morte de mais de 500 mil brasileiros deve ensejar uma reflexão “dura” sobre a importância do Estado Social, confrontado com os pressupostos do Estado de Direito clássico da modernidade. O comportamento do Governo Bolsonaro-Guedes, que sonegou a vacinação em massa e defendeu a imunidade de rebanho, além de representar politicamente uma decisão fascista, violou de maneira frontal o Estado de Direito da Constituição Social e arrasou o republicanismo democrático, que está na base da fundação do Estado social no Brasil, colocando o país numa situação de inconstitucionalidade em sequência, típica de um Estado de exceção.
A relação de “independência e interação” do texto constitucional entre os elementos componentes que lhe dão sentido, não permite que as normas expressas pelo constituinte sejam interpretadas isoladamente. O conteúdo do republicanismo não está jamais concentrado numa só norma, mas no seu conjunto coerentemente estruturado, a partir do tipo de Estado – mais (ou menos) democrático, mais (ou menos) “social”- alcançado pelo pacto político. “Esta dimensão, diz [1]Rogério Coelho (2021), se expressa nos enunciados dos direitos e bens jurídicos nela positivados, vista a partir dos princípios e valores que ela (constituição) consagra – cumprindo o objetivo político de conferir-lhes efetividade”.
Os enunciados dos direitos e bens jurídicos positivados na Constituição estabelecem sua harmonia – via de consequência – a partir da teleologia imposta pelo poder constituinte, que é expressa no seu Preâmbulo e nas suas normas. Preâmbulo e normas desenham o tipo de Estado, então fundado. As relações do direito de propriedade, com a função social da propriedade (que gera o direito subjetivo coletivo de moradia, por exemplo) tem uma especificidade, uma diferenciação no Estado Social, relativamente às relações entre estes mesmo direitos no Estado de Direito “clássico”, anterior ao Estado Social.
O sentido das duas ordens constitucionais, do Estado Social de Direito e do Estado de Direito – este pretérito à invenção política do Estado Social – pode ser representado pela metáfora dos dois “bancos de valores”. Ambos constam da ordem constituída: um de natureza político-moral (no Estado Social) que está no Preâmbulo da Constituição e no seu artigo 3°; e outro – de natureza “material” – o Banco Central monetário, que está inscrito no artigo 164 da Constituição Federal. O peso dado aos valores subjetivos que compõem a ordem (Preâmbulo e artigo 3°), em relação ao peso das limitações impostas pelas exigências materiais da moeda – para a produção de políticas púbicas – é diferente daquele atribuível no Estado Social de Direito ou no Estado de Direito clássico.
A forma pela qual se harmonizam estes dois tipos de valores, no Estado Social de Direito, deve achar uma medida de “adequação” à situação concreta, que enfrenta o povo soberano, tendo vista a integração dos dois conjuntos de valores, a ser feita de forma a respeitar o sentido do Estado Social, que é republicano, sem desmontar o Estado de Direito, que é democrático. O Banco Central dos valores monetários está conectado com uma ordem financeira internacional, que não pode ser desconsiderada no pacto democrático contemporâneo, e o Banco Central dos valores subjetivos está conectado com o conjunto de normas constitucionais originárias da soberania popular.
É necessário levar em conta que em qualquer ordem social e jurídica, espontânea por ser baseada em costumes, ou construída conscientemente baseada em regras, valores subjetivos e materiais influenciam-se reciprocamente. Às vezes aparecem como norma escrita, outras como costume. Como barbárie e desumanidade planejada aparecem na História moderna como ódio genocida e bandidagem comum. É o caso do governo atual.
[1] Artigo em publicação nesta edição: ”Konrad Hesse e a superação das duas teorias na concretização dos direitos fundamentais”.