Introdução
O contexto dos problemas climáticos e ambientais planetários passa por uma situação crítica e emergente. Alguns setores conservadores tentam rotular o tema como alarmismo[1], entretanto cada vez mais existem evidências da grave crise ambiental em que o planeta se encontra. Além da tragédia da Covid-19 e das tragédias sociais associadas ou não à pandemia, destacaremos, neste momento, duas delas: as crises climáticas e da biodiversidade. A realidade vem à tona a partir de dados irrefutáveis e processos de análise que resultam em alertas por parte das principais autoridades científicas mundiais e de setores da sociedade. A amplitude e as consequências da crise socioambiental devem ser avaliadas, buscando-se suas causas enraizadas no modelo econômico e hegemônico atual, que promove desigualdades e degradação.
A situação de crise é considerada por alguns como um colapso ambiental, como diz o Professor Carlos Taibo (Universidade Autônoma de Madri)[2], [3]. Ou seja, se não houver um questionamento do processo que prioriza a busca incessante pelo crescimento econômico, que negligencia os limites da natureza, poderemos entrar em uma rota irreversível de um grande colapso ecológico de proporções planetárias.
A emergência climática é, sem dúvida, um dos maiores problemas hoje. O atual secretário da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres, reconheceu antes da pandemia da Covid-19 que: “Nenhum outro desafio em escala global é tão ameaçador quanto as mudanças do clima”[4].
No que se refere à biodiversidade, o relatório da Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES)[5] de 2019 demonstra que a Biosfera está se deteriorando muito rapidamente. Um milhão de espécies de plantas e animais estão em risco de extinção[6] e alguns já enfrentam esse risco há décadas, fenômeno também chamado de Sexta Extinção em Massa.
Pretendemos abordar aqui os aspectos relacionados às mudanças climáticas e suas relações com os gases de efeito estufa, nos limitando ao carvão mineral, queimadas de florestas e aspectos relacionados à perda da biodiversidade.
Emergência climática e gases de efeito estufa
Segundo a Agência Espacial Norte-Americana (NASA), o ano de 2020 foi o que apresentou a temperatura média atmosférica global mais elevada da história[7], praticamente empatando com 2016. A tendência de aquecimento da atmosfera do planeta continua, e o ano de 2020 fecha também a década com temperaturas atmosféricas mais elevadas, de acordo com a Organização Meteorológica Mundial (WMO, sigla em inglês)[8], agência da ONU.[9] O que marca a tendência é que a cada década temos as temperaturas mais elevadas do que nas anteriores. Os aumentos de temperatura estão associados aos níveis recordes de gases de efeito estufa (GEE), fundamentalmente o gás carbônico (CO2), o metano (CH4) e os gases de nitrogênio (NOx), derivados de atividades antrópicas e que retêm o calor na atmosfera. Os níveis de CO2 na atmosfera do planeta situam-se acima de 410 ppm (partes por milhão), e representam um aumento de 48% sobre o valor de 278 ppm, do meio do século XVIII, quando do início da revolução industrial[10].
O pesquisador da NASA, Alfonso Delgado-Bonal, destacou a consolidação do consenso dos cientistas sobre o efeito das atividades humanas na elevação da temperatura da atmosfera da Terra, incluindo setores industriais, agricultura e queimadas de florestas e de outros tipos de vegetação, com destaque à floresta amazônica. Segundo o cientista, “as nossas emissões de gases com efeito de estufa não param, a atmosfera continua a aquecer e, além do mais, é um processo cumulativo“. O cientista alertou para possíveis aumentos de ciclones, como ocorreu em 2020, com previsíveis consequências desastrosas quanto à perda de vidas humanas e também danos a economias. As mudanças climáticas incluem o aumento, no último século, de cerca de 1 grau centígrado na média da temperatura atmosférica, bem como no aumento da frequência de eventos extremos como secas, chuvas torrenciais, tempestades e inclusive com o recente fenômeno chamado de “Ciclone Bomba”, que atingiu em meados de 2020 os Estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina[11].
Um relatório da Administração Nacional dos Oceanos e da Atmosfera dos EUA (NOAA, na sigla em Inglês), publicado em janeiro de 2021, revela, ademais, danos econômicos provocados pelos desastres climáticos nos EUA, situação que em 2020 superou os 95 bilhões de dólares[12]. Em 2018, o secretário-geral da ONU, António Guterres[13], declarou também que “bilhões de dólares ainda precisam ser direcionados a estratégias renováveis para garantir uma transição para energia limpa em grande escala” até 2020. Como assinala o secretário-geral da ONU, não existe solução para nos livrarmos dos gases de efeito estufa que não seja a diminuição do uso dos combustíveis fósseis usados na geração de energia.
Os danos também são vistos no desaparecimento acelerado de recifes de corais, provocado pelo aumento de acidez também nos oceanos, em decorrência do aumento de CO2 proveniente da atmosfera[14].
É importante destacar que os ecossistemas marinhos e terrestres, que também são sumidouros de emissões antropogênicas de gases de efeito estufa absorvidas pela vegetação ou algas, representam um sequestro bruto de 5,6 gigatoneladas de carbono por ano (o equivalente a alguns 60 por cento das emissões antropogênicas globais).
O uso do carvão mineral e o negacionismo climático
Atualmente, os combustíveis fósseis participam de cerca de 81% da matriz energética mundial (Figura 1), sendo o carvão mineral responsável por cerca de 27% da energia consumida no mundo inteiro[15], para várias finalidades, estando atrás do petróleo (31,5%) entre as diferentes fontes. No que se refere à geração de energia elétrica, o carvão atinge valores mais altos, ou seja, 38%.
Um importante relatório realizado pelo Climate Analytics[16] mostra a urgência com que o uso do carvão mineral precisa ser abandonado para cumprir os objetivos do Acordo de Paris[17], que reuniu 195 países em 2015, à luz dos últimos avanços científicos do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, em inglês)[18], no que se refere aos esforços para reduzir seu uso na geração de eletricidade e assim não ultrapassar o limite de 1,5 °C de aumento da temperatura global, definido pelo referido Acordo. As principais conclusões da Climate Analytics (2019, pg. 4) são:
i) Independentemente da região, o uso de carvão para geração de energia precisa atingir o pico em 2020 e ser reduzido logo depois; ii) A geração de energia a carvão em todo o mundo deve ser reduzida até 2030 para 80% abaixo dos níveis de 2010, eliminado gradualmente antes de 2040, cerca de 10 anos antes das estimativas anteriores; iii) A maioria das reduções no carvão no setor de energia precisa acontecer até 2030, quando a participação do carvão na geração de eletricidade não deve exceder 13% em qualquer lugar, e girar em torno de 6% globalmente; iv) Entre 2030 e 2040, todas as regiões devem eliminar o carvão. As primeiras regiões a serem eliminadas são os países da OCDE, Europa Oriental e Antiga União Soviética – em 2031, seguidos por países latino-americanos em 2032, Oriente Médio e África em 2034 e, finalmente, Ásia não-OCDE em 2037, completando uma eliminação global do carvão antes de 2040.
Em outro trecho do documento Climate Analytics (2019, pg. 4):
Para manter a possibilidade de permanecer dentro do limite de 1,5 °C relacionado ao Acordo de Paris, os países precisarão planejar o fechamento antecipado de um grande número de usinas de carvão existentes, reduzir a capacidade daquelas que permanecem em atividade e abster-se de construir novas usinas térmicas a carvão. Existem alguns sinais de atuação no setor, o que dá motivos para otimismo quanto à possibilidade de uma transição acelerada longe do carvão. O número de novas usinas a carvão no planejadas encolheu em quase 75% globalmente entre 2015 e 2019, e vários países e investidores se comprometeram com restrições ou banimento total da nova geração de energia a partir do carvão. O fator de capacidade da frota operacional de carvão continua a diminuir em vários países, afetando a lucratividade das concessionárias de carvão e sua disposição de investir na expansão e renovação de ativos de carvão. Como resultado, os ativos de carvão estão se tornando cada vez mais vulneráveis a mudanças no mercado e nas políticas em todo o mundo.
Infelizmente, o governo federal do Brasil revelou-se profundamente negacionista em relação à gravidade da crise climática, boicotando qualquer encaminhamento conjunto internacional pós-Acordo de Paris, de 2015[19]. No que se refere ao país, o retrocesso a partir de 2019 resultou na extinção da Secretaria de Mudanças Climáticas e outros setores que incluíam acordos entre o governo e a sociedade relacionados ao tema.[20] Agora, no início de 2021, constatamos a redução drástica do orçamento para a pasta de meio ambiente para este ano, sendo a mais baixa do século, denotando o objetivo estratégico de desmonte da política ambiental[21].
Em agosto de 2020, o Ministério do Meio Ambiente, pressionado por países estrangeiros, acabou recriando – pelo menos teoricamente – a Secretaria ligada às Mudanças Climáticas. Mas o ex-ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, em entrevista para a Revista “O ECO”, declarou[22]:
A mudança de estrutura por si mesmo pode ser completamente fake, jogo de palavras. Ora, um governo que desmonta o Fundo Amazônia, paralisa o Fundo Clima, demite os diretores do Ibama que levavam a sério a fiscalização, desqualifica o INPE, desqualifica o Acordo de Paris, as mudanças climáticas… Então, a questão climática começa comprometida por essas atitudes, que resultam no aumento do desmatamento e das emissões.
A tentativa de retomada do Carvão no Rio Grande do Sul e seus impactos ambientais
O Rio Grande do Sul possui ao redor de 90% das reservas de carvão do Brasil. Quanto à tradição dos últimos governos do Rio Grande do Sul, imersos na mesma negação da crise climática, no aspecto referente à produção de energia, a tendência é a continuidade do incremento do uso de combustíveis fósseis, neste caso o carvão mineral. Em 2017 foi aprovada a Lei Estadual n° 15.047/17, que criou a Política Estadual do Carvão Mineral e instituiu o Polo Carboquímico do Rio Grande do Sul, dividido em dois Complexos (do Baixo Jacuí e da Campanha).
A criação e aprovação desta política resultou de um processo atropelado, sem espaço de debate com a sociedade e sem definição dos limites das áreas de abrangência das propostas de implantação dos complexos. Não houve estudos de viabilidade e licenciamentos conforme determina a Política Nacional de Meio Ambiente (Lei Federal nº 6.938/1981). Não foram consideradas as Políticas Nacional e Gaúcha sobre Mudanças Climáticas (Lei Estadual nº 13.594/2010? PGMC), e retrocede ao promover uma fonte de energia que está sendo banida por parte dos países que assinaram o Acordo de Paris[23].
Em 2017, foi criada a Coalisão Internacional para o Abandono do Carvão (Powering Past Coal Alliance – PPCA)[24], que reúne, até o momento, 34 países signatários do Acordo desde 2017, comprometidos a fechar as usinas térmicas a carvão até 2030. O grupo de países é liderado por Canadá e Reino Unido, incluindo, entre outros, Angola, Áustria, Bélgica, Costa Rica, Dinamarca, El Salvador, Finlândia, França, Holanda, Ilhas Fiji, Ilhas Marshall, Israel, Itália, Luxemburgo, México, Nova Zelândia, Peru, Portugal, Suécia e Suíça. Entre os compromissos do PPCA estão:
i) garantir compromissos de governos e do setor privado para eliminar gradualmente a energia de carvão mineral existente; ii) encorajar uma moratória global sobre a construção de novas usinas elétricas movidas a carvão; iii) mudar o investimento do carvão para energias renováveis e limpas, inclusive trabalhando para restringir o financiamento de projetos movidos a carvão; iv) alcançar a eliminação progressiva do carvão de uma forma sustentável e economicamente inclusiva, incluindo o apoio apropriado para trabalhadores e comunidades.
É importante destacar que o Brasil, sendo signatário do Acordo de Paris, comprometeu-se em envidar esforços para a redução, até 2025, da emissão dos gases de efeito estufa (GEE) em até 37% (comparados aos níveis de 2005), estendendo a meta para 43% até 2030[25].
O uso do carvão mineral na produção de energia elétrica no Brasil varia entre 2% a 3,5% a cada ano (Figura 2), entretanto está se tornando mais caro do que outras fontes renováveis[26], e segue dependendo de subsídios de parte do Estado. Seu patamar não se reduz, pois, com as mudanças climáticas, a fonte hídrica, que representa cerca de 60% das fontes de energia elétrica no país, está sendo afetada negativamente pela diminuição de chuvas e o consequente rebaixamento do nível dos reservatórios das hidrelétricas.
O governo do Rio Grande do Sul segue confiando no uso do carvão mineral, talvez pela potencial abundância, resistindo também em admitir que este combustível, existente no Estado, é de baixa qualidade e muito poluente, com elevado teor de enxofre e cinzas[27]. A Lei Estadual n° 15.047/2017, portanto, negligencia os enormes riscos de poluição da água, do ar, dos ecossistemas e os riscos à saúde humana representados pelo carvão mineral.
O maior uso previsto do carvão mineral no Estado seria vinculado ao Projeto Mina Guaíba[28], em processo de licenciamento na Fundação Estadual de Proteção Ambiental Henrique Luiz Roessler (FEPAM), que corresponderia à maior mina de carvão do Brasil (exploração de 166 milhões de toneladas de carvão em 23 anos). A mina, prevista para sua localização nos municípios de Eldorado do Sul e Charqueadas (a cerca de 16 km a oeste do limite com Porto Alegre), possui seu Estudo de Impacto Ambiental (EIA) com muitas falhas, recheado de dúvidas quanto aos riscos ambientais. No caso do risco de poluição das águas do rio Jacuí, o Departamento Municipal de Águas e Esgotos (DMAE) de Porto Alegre, responsável pelo abastecimento de água da cidade, admite que a captação desde esse rio pode ficar comprometida se for implantada a mina[29], declarando prováveis mudanças no plano de captação de água caso este projeto vingue.
No que concerne à biodiversidade do Baixo Jacuí, em relação à localização do projeto da mina e o potencial Complexo Carboquímico associado, torna-se evidente sua incompatibilidade e a fragilidade dos ecossistemas de áreas úmidas (Núcleo da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica) e o potencial risco às Unidades de Conservação Parque Estadual Delta do Jacuí e Área de Proteção Delta do Jacuí (BRACK, 2019). Do ponto de vista humano, o Complexo do Baixo Jacuí também não leva em consideração a presença e os direitos dos povos indígenas, comunidades tradicionais, agricultores do Assentamento Apolônio de Carvalho, agricultores agroecológicos e demais moradores. Da mesma forma, o Complexo Carboquímico da Campanha possui localização em Áreas de Geodiversidade e Áreas Prioritárias para a Biodiversidade, com destaque aqui à bacia do rio Camaquã, no centro do bioma Pampa, representando altíssimo risco a espécies ameaçadas, aos ecossistemas, à paisagem com atributos excepcionais do chamado Escudo Cristalino Sul-riograndense. Existem potenciais riscos também aos modos de vida locais, ao turismo, à saúde da população, com o agravante associado a outros projetos minerários que também estão sendo propostos para a região. Quanto à sociobiodiversidade que resiste[30], invisibilizada pelas políticas convencionais de “desenvolvimento”, é mister assinalar a presença de comunidades tradicionais, constituídas, entre outras, por quilombolas e pecuaristas familiares, que mantêm costumes e condições de vida digna, nos relevos ondulados e solos impróprios à expansão, praticamente sem limites no Pampa, das daninhas monoculturas de soja e de eucalipto.
Poluição do Carvão Mineral
A poluição do carvão mineral promove a liberação de uma série enorme de poluentes. Inicialmente, temos a acidificação das águas (drenagem ácida da mina), decorrentes do contato do enxofre com a água, o que inviabiliza a vida dos rios, bem como o gás sulfúrico, gases de nitrogênio, poeiras finas e particulados, metais pesados tóxicos, como mercúrio, cádmio e chumbo, trazendo problemas graves ao sistema respiratório humano, sistema nervoso e problemas cardíacos, entre outros. Mundialmente, segundo dados da ONU, morrem prematuramente sete milhões de pessoas[31] devido à poluição atmosférica, sendo 600 mil crianças; parte desta poluição é proveniente do carvão, especialmente no caso de particulados finos, gases de nitrogênio e ozônio, por exemplo. O Projeto Mina Guaíba acentuaria esses problemas no nosso Estado[32]
Desmatamentos, queimadas e seus efeitos ecológicos e sobre a saúde humana
Não por acaso, no ano de 2020, considerado o mais quente pela NASA, aconteceram os piores incêndios já verificados em partes do mundo, como na Austrália, nos Estados Unidos e no Brasil (Pantanal e Amazônia). Nuvens de fumaça cruzaram o oceano Pacífico e chegaram até o Sul do Brasil[33], situação que surpreendeu meteorologistas e chamou a atenção dos noticiários. Tal situação de viagens de fumaça e cinzas ao longo de milhares de quilômetros também ocorreu desde as queimadas da Amazônia e do Pantanal até o sul do Brasil, no meio do ano passado, na estação das secas no Norte e no Centro Oeste, onde parte importante das queimadas foi decorrente de desmatamentos e incêndios induzidos por atividades humanas [34].
Segundo a ONU, as fumaças das queimadas exercem prejuízos importantes à saúde, pois contêm uma mistura de gases e partículas perigosas: “Os efeitos da exposição e inalação de fumaça variam de irritação ocular e do trato respiratório a distúrbios mais graves, incluindo função pulmonar reduzida, bronquite, asma exacerbada e morte prematura”[35].
As queimadas, associadas à retirada de vegetação de muitas regiões do Brasil, em especial da Amazônia e Região Central, vêm trazendo problemas múltiplos, como o rompimento do ciclo de formação de nuvens de chuva, provenientes da evapotranspiração da floresta. A cobertura vegetal natural, seja florestal ou de outros tipos, além de manter condições para o ciclo da água, incluindo a infiltração e recarga do lençol freático, garante também, em épocas de pouca ou nenhuma chuva, percentuais de umidade ideais, na faixa entre 40% e 70%, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS). Abaixo de 30% (estado de atenção) ou 20% (estado de alerta), as condições são prejudiciais à saúde humana, principalmente ao aparelho respiratório. Devido ao desmatamento crescente, esta situação de baixa umidade relativa do ar está se tornando preocupante na Região Sudeste e Centro Oeste do Brasil, sendo que a vegetação ajuda a manter temperaturas mais amenas para os seres humanos. Nas cidades, a situação se agrava pela ausência de vegetação e predomínio de áreas de concreto ou asfalto, em superfícies expostas ao sol, que nas horas quentes do dia ou mesmo no início da noite pode alterar o microclima nas chamadas “ilhas térmicas”. Cabe destacar também que a vegetação tem papel importante na fixação de CO2, regulação de gases que afetam o clima, ciclagem de minerais, ciclo das águas, amortecimento das maiores amplitudes térmicas desfavoráveis à saúde humana, manutenção e polinizadores, entre outros.
Obviamente, no Brasil os fatores de promoção do fogo e do engessamento das políticas também foram agravantes. O aprofundamento da crise climática[36] de múltiplas e gigantescas proporções, o aumento da poluição, a perda da biodiversidade e da qualidade de vida, a desigualdade – como consequências do motor da Guerra contra a Natureza[37], como reconhece o secretário da ONU, estão se combinando de forma sinérgica para um quadro de perspectivas ambientais sombrias, de proporções inimagináveis.
Biodiversidade e Sociobiodiversidade
No tocante à biodiversidade, como assinalamos, o relatório internacional do IPBES de 2019 advertiu para a existência estimada de cerca de 1 milhão de espécies em risco de extinção[38], situação com reflexos à perda de qualidade de vida também a seres humanos. A temática da perda incorpora a sociobiodiversidade, relacionada também ao desaparecimento crescente de culturas como as dos povos indígenas e comunidades tradicionais, muitas vezes negligenciados quando da implantação de grandes projetos chamados de desenvolvimento, ferindo a Convenção no169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), quando da não consulta aos povos e comunidades tradicionais.
A perda da biodiversidade no Brasil está associada ao modelo calcado em monoculturas e em infraestrutura convencional concentradora em grandes obras de megaextrativismo (Energia, Mineração[39], Logística, Transporte e Circulação, etc.), que nega os direitos das comunidades locais e o direito ao meio ambiente equilibrado (Art. 225 da Constituição Federal). Monoculturas, mineração, megaempreendimentos hidrelétricos e expansão urbana descontrolada e sem planejamento vêm afetando a sociobiodiversidade mundial e brasileira, provocando a destruição de habitat e das diferentes formas de vida de nossos biomas (Amazônia, Caatinga, Cerrado, Mata Atlântica, Pampa e Pantanal) e Zona Costeira e Marinha brasileira. No Brasil, a condição de grande exportador de commodities (soja, minério de ferro, celulose, etc.) deixa a economia do país dependente da exportação de matérias-primas, provocando forte pressão econômica para garantir a grande escala de produção primária[40], sem necessariamente se produzir alimentos, implicando ainda em retrocessos na política regulatória socioambiental
Cabe destacar que o Brasil chegou a tornar-se um líder do continente no aprofundamento desta condição de gigantesca infraestrutura exportadora, por meio da IIRSA (Iniciativa de Integração de Infraestrutura Regional Sul-Americana), coordenado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), nas primeira década e meia deste século[41], com enormes impactos ambientais, já que contemplava grandes obras com gigantescos impactos ambientais, como o caso da Hidrelétrica de Belo Monte.
Infelizmente, estamos no Brasil distantes do debate necessário sobre temas como decrescimento econômico, descentralização, desmercantilização da vida, dos territórios e associados muitas vezes à privatização dos serviços essenciais, como água e saneamento. Apesar de possuirmos uma Constituição Federal que garantiria o direito ao meio ambiente equilibrado, em seu Art. 225, vimos a destruição dos processos ecológicos essenciais, da diversidade biológica e do papel social da propriedade, também defendidos por nossa Carta Magna.
Como contraponto ao grave cenário apresentado, é mister que se avance na agroecologia e na sociobiodiversidade. A demanda de produtos da biodiversidade brasileira incluiria milhares de espécies de nossa flora, nos distintos biomas, e que poderiam contribuir para a melhoria da qualidade de vida de nossa população. Na Amazônia, ou mesmo no Cerrado, no lugar de pastagens e desertos de soja, teríamos centenas de espécies de plantas alimentícias nativas associadas a comunidades que já vêm se organizando em cooperativas e mini-indústrias, podendo-se ressaltar aqui no Brasil o uso do açaí, burití, castanha-da-amazônia, pupunha, cupuaçu, baru, babaçu, guaraná, copaíba, camu-camu, tucumã, pitanga, araçá, várias espécies de maracujás, taioba, cará, araruta, gabiroba, uvaia, cagaita, araticuns, entre muitas centenas. No Estado do Rio Grande do Sul, lembramos a existência de mais de 200 espécies de plantas frutíferas nativas[42] e outras centenas de hortaliças nativas e espontâneas que são negligenciadas – muitas destas tratadas como daninhas, na agricultura empresarial ou convencional[43], que deveria ser superada para dar espaço à agroecologia. Sistemas florestais são o caminho de produção de alimentos, madeira, produtos industriais e melhor qualidade de vida. Destacaríamos, no Estado, a necessidade de incentivos a programas com erva-mate, araucária, juçara, entre outras espécies. No Pampa, a vocação é a pecuária familiar e a diversificação de produtos, e não a mineração ou as monoculturas.
Conclusões
As crises climática e da biodiversidade são ainda invisibilizadas, pelo menos na profundidade necessária, e sua relação às pautas econômicas, em especial por parte de governos, políticos e sociedade. Quando estes temas são tratados, frequentemente são abordados de forma superficial, desconectada das raízes políticas e da possibilidade de se viver fora do escopo do modelo capitalista, por natureza incompatível com a sustentabilidade ecológica e a igualdade social. A ausência de priorização da profundidade do problema, quiçá já em nível de colapso ambiental, traz ainda mais prejuízos para a qualidade de vida para seres humanos e a biodiversidade, multiplicando os custos econômicos para eventual remediação dos desastres que se avolumam.
As temperaturas mais elevadas predizem novos recordes, a não ser que se alterem os hábitos, neste caso os modelos econômicos de uso dos recursos naturais, hoje sem limites. As florestas e demais formas de vegetação nativa possuem funcionalidade, sendo mais rentáveis do que sua conversão a monoculturas, mantendo o ciclo da chuva e das águas, devendo ser mantidas ao máximo, proibindo-se derrubá-las para culturas de grãos ou pastagens. Temos milhares de plantas nativas alimentícias brasileiras em todos nossos biomas. Concordamos com muitas propostas da organização brasileira Observatório do Clima[44] , mas discordamos do plantio direto (de monoculturas, neste caso a convencional soja) e dos chamados “plantios florestais”, que nada mais são do que monoculturas arbóreas industriais, com eucalipto, pinus e outras espécies exóticas.
O setor industrial deveria ser induzido a investir pesado em tecnologias ligadas às energias renováveis, eficiência energética e consumo racional, com a priorização de geração de produtos sem a costumeira obsolescência programada, com longevidade em equipamentos e materiais, num círculo virtuoso que obedeça aos ciclos fechados da natureza, via, principalmente, o reaproveitamento e a reciclagem. O modelo de crescimento hegemônico é concentrador, poluente e promotor de esgotamento de recursos naturais, já que vivemos em um planeta finito. O secretário-geral da ONU faz apelos para que se considere a necessidade de mudanças radicais, pois não temos dois planetas Terra para suprir 80% do consumo de 20% da população do mundo, e o tempo é curto para as mudanças.
O legislativo deveria contribuir para a justiça ambiental e o enfrentamento das crises climáticas e da biodiversidade, da falta de emprego, da falta de infraestrutura em saúde, educação, entre tantos itens. Entretanto, sem romper o vínculo dos interesses de seus financiadores de campanha e de seus próprios interesses, isso não será logrado.
O crescimento econômico virou a antivida, como afirma a ecologista Vandana Shiva[45]. Não é possível seguir o imaginário do crescimento ilimitado em um planeta limitado, mesmo que alguns defendam um capitalismo “humanizado” de Estado ou de bem-estar social, mas já não mais possível dadas as crises evidentes e os rumos de esgotamento dos processos vitais que sustentam a Ecosfera.
*Biólogo, professor do Dep. de Botânica, do Instituto de Biociências da UFRGS, membro da coordenação do InGá (Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais), já tendo representado a entidade no COMAM de Porto Alegre, CONSEMA-RS e CONAMA, ex-membro da CTNBio, indicado pela sociedade (2006-2009). Fez parte da organização e coordenação de diferentes edições dos Fóruns Sobre Impacto das Hidrelétricas, I Encontro de Viveiros de Plantas Nativas do RS, I Seminário sobre Espécies Frutíferas do Rio Grande do Sul, e participação na Livro Espécies Nativas da Flora Brasileira de Valor Econômico Atual ou Potencial Plantas para o Futuro – Região Sul.
Referências
BRACK, Paulo. Improcedências sobre o meio biótico no diagnóstico da viabilidade ambiental da Mina Guaíba. Porto Alegre: Paginaria, 2019 (capítulo de livro)
IPBES .Summary for policymakers of the global assessment report on biodiversity and ecosystem services of the Intergovernmental Science-Policy Platform on Biodiversity and Ecosystem Services. IPBES secretariat, Bonn, Germany, 2019
TAIBO, Carlos. Colapso: capitalismo terminal, transição ecossocial, ecofascismo; (tradução: Campos, Andrade Marília Torales e Carvalho, Andréa Macedônio de). – Curitiba: Ed. UFPR, 2019.
Figura 1. Matriz energética mundial, com predomínio de cerca de 81% de combustíveis fósseis.
Figura 2. Matriz de energia de uso elétrico no Brasil, com uso de cerca de 15% de combustíveis fósseis e 79% de energias renováveis, com predomínio da energia hidrelétrica (60,9%)
[1] https://acervo.socioambiental.org/acervo/noticias/alarmismo-pouco-e-bobagem
[2]https://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/67247/Colapso.%20Capitalismo%20terminal%2C%20transicao%20ecossocial%2C%20ecofascimo.pdf?sequence=1&isAllowed=y
[3] https://noticiasanarquistas.noblogs.org/post/2018/04/10/espanha-carlos-taibo-defende-o-decrescimento-economico-como-ferramenta-frente-ao-colapso-ambiental/
[4] https://nacoesunidas.org/mudancas-climaticas-sao-ameaca-existencial-para-a-humanidade-diz-onu/
[5] https://ipbes.net/global-assessment
[6] https://www.un.org/sustainabledevelopment/blog/2019/05/nature-decline-unprecedented-report/
[7] https://sciam.com.br/ano-de-2020-pode-ter-sido-o-mais-quente-da-historia-afirma-nasa/
[9] https://moderndiplomacy.eu/2020/12/28/planet-warming-trend-continues-2020-closes-hottest-decade-on-record/
[10] http://www.observatoriodoclima.eco.br/nem-pandemia-diminuiu-concentracao-de-co2-na-atmosfera/
[11] https://climainfo.org.br/2020/07/22/crise-climatica-pode-tornar-ciclones-bomba-mais-frequentes-no-sul-do-brasil/
[12] https://www.cmjornal.pt/mundo/detalhe/subida-da-temperatura-na-terra-vai-ter-consequencias-imprevisiveis-mas-negativas-garante-nasa
[13] https://nacoesunidas.org/mudancas-climaticas-sao-ameaca-existencial-para-a-humanidade-diz-onu/
[14] https://news.un.org/pt/story/2018/11/1647741
[15] https://www.epe.gov.br/pt/abcdenergia/matriz-energetica-e-eletrica
[16] https://climateanalytics.org/media/report_coal_phase_out_2019.pdf
[17] https://www.wwf.org.br/informacoes/noticias_meio_ambiente_e_natureza/?77471/Acordo-de-Paris-completa-cinco-anos-com-licoes-aprendidas
[19] https://brasil.un.org/pt-br/node/88191
[20] https://www.oeco.org.br/reportagens/governo-extingue-orgaos-que-lideravam-negociacoes-do-brasil-sobre-mudancas-climaticas/
[21] http://www.observatoriodoclima.eco.br/orcamento-meio-ambiente-e-o-menor-em-21-anos/
[22] https://brasilamazoniaagora.com.br/ministerio-do-meio-ambiente-passa-por-nova-reestruturacao-entenda-que-mudou/
[23] https://www.terra.com.br/noticias/paises-formam-alianca-para-abandonar-carvao,c73a3b8fa1e06b4bb0417b4317ff2b30ms1gya5u.html
[24] https://poweringpastcoal.org/members
[25] https://www.gov.br/mre/pt-br/canais_atendimento/imprensa/notas-a-imprensa/2020/apresentacao-da-contribuicao-nacionalmente-determinada-do-brasil-perante-o-acordo-de-paris
[26] https://www.portalsolar.com.br/blog-solar/energia-renovavel/preco-de-renovaveis-ja-e-mais-baixo-do-que-o-do-carvao-aponta-irena.html
[27] ANEEL. 2008. Atlas de energia elétrica no Brasil. Capítulo 9. Carvão. Disponível em: http://www2.aneel.gov.br/arquivos/pdf/atlas_par3_cap9.pdf
[28] https://rsemrisco.files.wordpress.com/2019/12/painel-mina-guaicc81ba_digital_150-1.pdf
[29] https://gauchazh.clicrbs.com.br/porto-alegre/noticia/2020/01/em-documento-dmae-cogita-desistir-de-projeto-de-captacao-de-agua-no-jacui-em-razao-da-mina-guaiba-ck5ikbpdn00uf01ocs8aqtl4z.html
[30] https://images.sul21.com.br/file/sul21site/2020/10/20201023-carta-camaqua.pdf
[31] https://news.un.org/pt/story/2019/03/1662651
[32] . Um documento importante é o relatório denominado Painel de Especialistas (Comitê Estadual de Combate à Megamineração, 2019). Disponível em: https://rsemrisco.files.wordpress.com/2019/12/painel-mina-guaicc81ba_digital_150-1.pdf .
[33] https://www.climatempo.com.br/noticia/2020/01/08/mais-plumas-de-fumaca-devem-chegar-a-america-do-sul-nesta-4o-f-1180
[34] https://www.tecmundo.com.br/ciencia/177761-fumaca-incendios-pantanal-cruza-pais-atinge-o-sul.htm
[35] https://news.un.org/pt/story/2020/01/1701811
[36] https://www.bbc.com/portuguese/geral-46424720
[37] https://unric.org/pt/guterres-guerra-da-humanidade-contra-a-natureza-e-suicida/
[38] https://nacoesunidas.org/relatorio-da-onu-mostra-que-1-milhao-de-especies-de-animais-e-plantas-enfrentam-risco-de-extincao/
[39] https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/214709/2019-224p8-9.pdf?sequence=1&isAllowed=y
[40] http://viabiodiversa.blogspot.com/2020/09/agronegocio-dependencia-e-morte.html
[41] https://periodicos.ufms.br/index.php/AlbRHis/article/view/8929
[42] https://www.scielo.br/pdf/rod/v71/2175-7860-rod-71-e03102018.pdf
[43] https://www.sinprors.org.br/wp-content/uploads/2017/11/Textual_novembro_2017_completa-web-ajuste-reimpress%C3%A3o.compressed.pdf
[44] https://www.ecodebate.com.br/2020/12/08/observatorio-do-clima-defende-que-o-brasil-deve-reduzir-emissoes-em-81-ate-2030/
[45] Vandana Shiva, Doutora em Ciências Físicas, é uma das ecologistas e ecofeministas mais destacadas em nível mundial, tendo recebido o Prêmio Nobel Alternativo da Paz, em 1993. Sua declaração em relação ao crescimento econômico foi publicada no jornal inglês The Guardian. https://www.theguardian.com/commentisfree/2013/nov/01/how-economic-growth-has-become-anti-life