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A Segurança Pública como direito para todos é uma utopia?

Ana Paula Rosa dos Santos (1)

Bacharel em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mestranda em Segurança Cidadã no Programa de Pós-Graduação em Segurança Cidadã (PPGSEG) na mesma instituição.

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A Constituição Brasileira foi promulgada há 32 anos e, ainda hoje, o Estado brasileiro encontra dificuldades em garantir os direitos fundamentais previstos e que são a base para que os brasileiros tenham uma vida digna. Conforme o artigo 5º da Constituição e seus incisos, os direitos individuais e coletivos são os direitos ligados ao conceito de pessoa humana e à sua personalidade, tais como à vida, à igualdade, à dignidade, à segurança, à honra, à liberdade e à propriedade. Atualmente, as políticas públicas existentes, que deveriam colocar em prática a efetivação das garantias fundamentais, no geral, não têm dado conta da complexidade da nossa sociedade. Vivemos uma intensa desigualdade social e crescente violência que permeia todas as camadas da sociedade. Tais fenômenos se impõem como obstáculo a consolidação da cidadania, que tem como um dos pilares a segurança pública como direito.

Segundo a Constituição Brasileira de 1988, o Artigo 144 prevê:

A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: I – polícia federal; II –  polícia rodoviária federal; III –  polícia ferroviária federal; IV –  polícias civis; V –  polícias militares e corpos de bombeiros militares.

Isso, na prática, significa que o Estado e a sociedade devem agir para garantir a ordem pública, para preservar a vida e o patrimônio público e privado. E depois de tantos anos da constituição, qual a dificuldade em garantir o direito à segurança pública para todos os cidadãos hoje? Para refletir sobre essa questão devemos considerar, principalmente, o desenvolvimento histórico e os fatores socioeconômicos e políticos. Por um lado, a sociedade brasileira vem se transformando ao longo do tempo, sofremos efeitos da globalização, do desenvolvimento tecnológico, etc. Por outro lado, não podemos esquecer que ainda mantemos fortes resquícios da época do Brasil colonial: o racismo, o conservadorismo, a corrupção, entre outros.

Assim como, a nossa sociedade no geral, especificamente o crime também sofreu transformações importantes nas últimas décadas: por exemplo, a formação de redes internacionais de tráfico de drogas e a cyber pirataria. Outro importante fenômeno que contribuiu na mudança da dinâmica da criminalidade foi a superlotação do sistema carcerário, que tem como um de seus efeitos a formação (e sustentação) de organizações criminosas. As políticas públicas de segurança, o sistema de justiça criminal como um todo e, em especial, as polícias não acompanharam as mudanças concomitantemente. Sobretudo essa combinação de fatores nos traz resultados desastrosos que perpassam nossa história.

Durante a ditadura militar, a proposta da segurança pública era caçar as pessoas que eles consideravam “bandidos”, vide a Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento (1968), formulada pela Escola Superior de Guerra. Durante a década de 1990, continuou imperando o Estado penal e repressivo (Madeira e Rodrigues, 2014). Foi somente a partir do governo Fernando Henrique Cardoso (1994-2002) que tivemos um conjunto de ações e metas a fim de controlar a criminalidade e suprir a ineficiência das polícias. Segundo Adorno, o governo FHC

fixou quatro linhas de ação: a) cooperação com os estados e municípios na defesa da segurança pública; b) justiça mais rápida e acessível para todos; c) reaparelhamento e organização dos órgãos federais de segurança e fiscalização; d) implementação e aperfeiçoamento do sistema penitenciário previsto na legislação vigente (2009, p. 15).

Chamo a atenção aqui para o lançamento do I PNDH, Programa Nacional de Direitos Humanos, em 1996, a criação da Secretaria Nacional de Segurança Pública, a SENASP, em 1997 e o II Programa Nacional de Direitos Humanos, em 2000. Nesse momento, cria-se o terreno para a tentativa de troca de paradigma da segurança pública em segurança cidadã. Segundo José Vicente Tavares dos Santos e Cesar Barreira,

visualiza-se, de modo largo, a formação de um modelo de segurança do cidadão e da cidadã, composto por políticas sociais, projetos sociais preventivos, protagonizados pelas administrações públicas, pelo mundo associativo, o terceiro setor, as escolas: é a emergência da planificação emancipatória no campo da segurança, enfatizando a mediação de conflitos e a pacificação da sociedade contemporânea (2016, p. 31).

Assim, abre-se a perspectiva de mudar o foco da repressão para a prevenção. No início do primeiro mandato do governo Lula (2003-2006), houve a manutenção de algumas das propostas do governo anterior e o aprofundamento do novo conceito de segurança cidadã. Em 2003, foi criado o SUSP, Sistema Unificado de Segurança Pública. Houve um esforço para que os estados e municípios assumissem as diretrizes nacionais (a descentralização das políticas). Especialmente, a intensificação das relações governamentais, principalmente entre União e municípios e, assim, um processo de municipalização da segurança pública (SCHABBACH, 2014),

É possível perceber esse fenômeno a partir de dados como, por exemplo, convênios firmados entre União e entes federados. Segundo Schabbach (2014, p.224) no Rio Grande do Sul foram firmados 314 convênios entre 1996 e 2010, totalizando R$ 357.055.098,29 em recursos transferidos:

 

GRÁFICO 1: Distribuição dos convênios firmados com Ministério da Justiça, no Rio Grande do Sul, por período e proponente[2]

Fonte: SCHABBACH, 2014

 

Nota-se um aumento expressivo de convênios a partir de 2002 e especialmente com relação as prefeituras municipais. Quando analisadas as ações propostas percebe-se que àquelas relacionadas a prevenção tornam-se expressivas a partir de 2008[3]:

 

GRÁFICO 2: Distribuição dos convênios firmados com Ministério da Justiça, no Rio Grande do Sul, por período e tipos de ação

 

Fonte: SCHABBACH, 2014

 

Foi a partir do segundo mandato (2007-2010) que tivemos transformações importantes nas propostas e na implementação das políticas públicas. A SENASP adquire uma importância central na formulação das políticas e ações da segurança. Os projetos são implementados e dinamizados através dos GGIs, Gabinetes de Gestão Integrada. Cria-se a Matriz Curricular Nacional para os profissionais de Segurança Pública e se instaura um processo de formação contínua com ênfase nos direitos humanos. Lança-se o PRONASCI, o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania, sob o comando do Ministério da Justiça, que tinha como foco a prevenção à violência agindo nas causas. Segundo Madeira e Rodrigues (2015), os objetivos e programas do PRONASCI eram: (1) modernização institucional, através da modernização das instituições de segurança pública e do sistema prisional; (2) valorização profissional: de profissionais de segurança pública e agentes penitenciários; (3) enfrentamento à corrupção policial e ao crime organizado; (4) Território de Paz; (5) integração do jovem e da família; (6) segurança e convivência. Esses objetivos se desdobravam em diversas ações. Foi um período em que multiplicavam-se projetos nas áreas com maior índice de criminalidade e o combate à exclusão social.

Porém, a complexidade na execução de um programa tão amplo foi uma das causas de seu esvaziamento após 4 anos (a lei previa que ele duraria até 2012). Quero salientar aqui apenas dois pontos que tem relação com a questão inicial da garantia do direito à segurança pública e que podem fazer parte dos possíveis motivos do seu término: a reforma institucional das polícias e a falta de experiência dos estados e municípios em executar políticas de prevenção à violência.

A reforma institucional[4] é extremamente necessária, pois temos as atividades policiais segmentadas e isso contribui para a ineficiência das investigações e da prevenção dos crimes. Segundo dados do Conselho Nacional do Ministério Público (2014), a taxa de resolução dos homicídios não passava de 8%. Os cursos de formação continuada para os agentes das polícias sozinhos não foram suficientes para modificar uma cultura baseada na violência e repressão. A herança da ditadura segue atravessando nossa história. O outro fator é que, estando os estados e municípios inseridos nesse paradigma de repressão ao crime, não tinham experiência em políticas de prevenção. Isso somado à falta de recursos humanos, falta de recursos financeiros para as contrapartidas dos projetos, desinteresse por parte de governos de oposição ao governo federal, entre outros, fazia com que muitas ações do programa não chegassem em diversos territórios com alta vulnerabilidade social. Quando o PRONASCI chegou ao fim em 2012, restaram apenas algumas ações que aos poucos perderam a visibilidade e articulação.

Após esse programa, não houve mais iniciativas de ações coordenadas e articuladas nacionalmente com foco na segurança cidadã. Analisando de uma forma mais ampla, as políticas de segurança pública sempre estiveram vulneráveis à vontade dos governos e suas alianças. Em alguns momentos, predominou uma visão mais punitivista e em outros, mais cidadã. Mas, em nenhuma delas conseguimos garantir o direito à segurança de todos os cidadãos. Principalmente, os moradores das periferias que tem grandes dificuldades de acessar os direitos e a justiça previstos constitucionalmente. Sistematicamente, a polícia sempre tratou os moradores desses territórios com violência. É verdade que o uso excessivo da força é um problema em todas as regiões do país e sempre foi o modus operandi de resolver os conflitos. Mas, conforme o território, a intensidade da violência é maior ou menor.

A estratégia de abordagem policial é atravessada pelo racismo que é um dos fatores mais importantes a se considerar quando falamos em acesso à segurança como direito. A abordagem é determinada pela “fundada suspeita” que é construída analisando a raça, roupas, linguagem e idade do cidadão. Esses “suspeitos” são, geralmente, negros, jovens e moradores das periferias. Os jovens negros são as maiores vítimas da violência no Brasil. Segundo o Atlas da Violência de 2020, os negros foram 75,7% das vítimas de homicídios no Brasil. Conforme o gráfico abaixo, a chance de uma pessoa negra sofrer homicídio comparado à uma pessoa não negra vem amentando nos últimos anos. Em 2018, para cada pessoa não negra morta, 2,7 negras foram mortas.

 

GRÁFICO 3: Chance de uma pessoa negra ser morta em comparação a uma pessoa não negra no Brasil

Fonte: Atlas da Violência, 2020

 

Isso nos mostra a diferença expressiva de vulnerabilidade entre negros e não negros no nosso país. Também, os dados sobre a letalidade policial revelam que tal fenômeno tem aumentado consideravelmente. Segundo o Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2019 foram 6357 mortes realizadas pelos policiais, o que representou 13,3% das mortes violentas. Em 2018, o índice era de 10,7%. Em 2020, entre janeiro e junho, já havia atingido 3.181 mortes. O perfil das vítimas são homens (que correspondem a 99,2% dos casos), enquanto a distribuição etária aponta que 74,3% dos mortos pela polícia tinham menos de 29 anos. Na distribuição racial, a prevalência é de pretos e pardos, que representam 79,1% do total. Quando comparada a mortalidade entre pessoas negras por intervenções policiais, a taxa é 186% superior da verificada entre brancos. Os dados nos mostram que a violência tem endereço e cor.

Precisamos urgentemente que os cidadãos das periferias sejam tratados pelos agentes públicos com respeito, mesmo quando são suspeitos, e eliminar todas as formas de tortura. Todos têm direito à defesa, ao processo legal, com provas que tenham cumprido as normas técnicas, acesso ao Ministério Público e ao Judiciário, com a certeza de um julgamento justo baseado nos direitos humanos. Chegamos a um nível de violência onde ser negro e morador de periferia supera a questão da marginalidade no que diz respeito ao direito a segurança, para uma tendência de estar à margem, inclusive, no que diz respeito ao direito a vida. É urgente retomarmos a agenda de uma segurança mais cidadã, que não ignore o racismo estrutural, que tenha centralidade na prevenção e que não dependa de processos eleitorais, pois programas com a profundidade que precisamos só são possíveis efetivá-las a longo prazo.

 

Referências bibliográficas:

ADORNO, Sérgio. Políticas públicas de segurança e justiça penal. In: Cadernos Adenauer, nº4. Segurança Pública. Rio de Janeiro: Fundação Konrad Adenauer, janeiro, 2009.

AZEVEDO, R., NASCIMENTO, A. Desafios das reformas das polícias no Brasil. Civitas, Porto Alegre, v.16, n. 4, out-dez 2016.

BARREIRA, César, SANTOS, José V. T. A construção de um campo intelectual: violência e segurança cidadã na América Latina. In: Paradoxos da Segurança Cidadã. Tomo Editorial. 2016.

BRASIL Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Centro Gráfico, 1988.

BUENO, Samira. LIMA, Renato S. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020. Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

CERQUEIRA, Daniel. BUENO, Samira. Et al. Atlas da Violência, 2020. IPEA

MADEIRA, Ligia M., RODRIGUES Alexandre B. Novas bases para as políticas públicas de segurança no Brasil a partir das práticas do governo federal no período 2003-2011. Rev. Adm Pública. Jan/fev 2015

SCHABBACH, Letícia Maria. A agenda da segurança pública no Brasil e suas (novas) políticas. Avaliação de políticas públicas. Porto Alegre: UFRGS, 2014, p. 216-231

 

[1] Bacharel em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mestranda em Segurança Cidadã no Programa de Pós-Graduação em Segurança Cidadã (PPGSEG) na mesma instituição.

[2] A cor azul clara no gráfico corresponde as prefeituras municipais.

[3] Para uma análise mais refinada ver sobre em SCHABBACH, 2014

[4] Ver mais em Azevedo e Nascimento, 2016.

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