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Bolsonarismo e segurança pública – o discurso fake contra o crime

Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo

Sociólogo, professor titular da Escola de Direito da PUCRS, pesquisador do INCT-InEAC e bolsista em produtividade em pesquisa do CNPq.

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O presente artigo pretende colocar em discussão o conteúdo discursivo e aquilo que de prático tem sido efetivado no Brasil no âmbito de uma política nacional de segurança pública, desde a eleição e a posse de Jair Bolsonaro na Presidência da República. Sustenta-se a hipótese de que o atual governo representa uma ruptura em relação a uma trajetória de fortalecimento e consolidação do papel da União na elaboração e indução de políticas de segurança pública, desde 88 até o governo de Michel Temer, quando é criado o Ministério Extraordinário da Segurança Pública e editada a Lei 13.675/2018, que coloca marcos normativos importantes para um Sistema Único de Segurança Pública (SUSP). Com a posse de Bolsonaro, essa agenda é interrompida, e uma nova agenda se define na disputa entre Bolsonaro, que representa uma concepção de populismo punitivo e enfraquecimento das instituições de controle em vários âmbitos, e Sérgio Moro, que representa uma concepção de gerencialismo penal, vinculada ao reforço de um modelo inquisitorial e negocial de processo penal, mais focada no tema da corrupção, com o esvaziamento da Secretaria Nacional de Segurança Pública na produção e disseminação de políticas de segurança e formação policial. A desistência de Moro representa a consolidação do programa bolsonarista no âmbito da segurança pública, interessado em manter a base bolsonarista nas polícias militares, no aparelhamento das policiais judiciárias e demais órgãos de controle, e no livre funcionamento de milícias armadas como modelo de privatização da segurança pública.

 

1. A Segurança Pública na Redemocratização: de 1988 até 2018

Quando os integrantes da Assembleia Nacional Constituinte elaboraram nossa Carta Magna, afirmaram o desejo de um Estado de bem estar social, arrolando direitos civis, políticos e sociais e apontando os caminhos institucionais para a sua concretização. No capítulo sobre a segurança pública não houve criatividade e inovação para avançar em relação ao legado do período militar, ficando mantidas as mesmas estruturas policiais e a mesma divisão de atribuições, que já se demonstravam inadequadas para a garantia do direito à segurança.

Pesquisas indicam que, já naquela época, a confiança no sistema de justiça criminal era muito baixa, visto como lento, ineficaz, e parcial em favor dos ricos e poderosos. Os brasileiros raramente encaminham seus conflitos ao sistema formal de justiça, dependendo mais de redes de relações interpessoais para a sua resolução. A indústria da segurança privada crescia, e em regiões do país não era incomum o recurso a matadores profissionais e esquadrões da morte para eliminar supostos assaltantes ou mesmo políticos rivais, antecipando e estabelecendo as bases para as atuais milícias urbanas, controladas muitas vezes por ex-policiais, que cobram dos moradores para garantir a segurança da comunidade frente aos grupos de traficantes e pequenos assaltantes.

Tanto em São Paulo como no Rio de Janeiro, os primeiros governadores eleitos depois da ditadura militadura miliar, em 1982, como Franco Montoro em São Paulo e Leonel Brizola no Rio de Janeiro, estavam determinados a reduzir as violações aos direitos humanos e a reformar as polícias para minimizar a tortura e as execuções sumárias. No entanto, o crescimento da criminalidade, associado com a crise econômica, e a não efetivação de mecanismos de justiça de transição, mantendo intocados no exercício de suas funções policiais que haviam praticado toda sorte de abusos durante o período militar, resultou em uma grande resistência da polícia contra as reformas, e a defesa dos direitos humanos foi responsabilizada pelos agora oposicionistas e por boa parte da opinião pública como responsável pelo crescimento da criminalidade[1].

Os esforços por construir uma política de segurança pública comprometida com a garantia dos direitos civis e o controle da atividade policial, e voltada para a qualificação das funções de investigação policial e policiamento preventivo, levados a frente por sucessivos governos estaduais e por uma cada vez maior atuação do governo federal, esbarraram em resistências corporativas de estruturas policiais defasadas, ciosas de suas prerrogativas e impermeáveis à mudança. Sob os governos eleitos, os homicídios praticados pela polícia em ações violentas e pouco profissionais nas periferias urbanas, quase sempre impunes, ganharam a legitimidade do apoio popular, com o propósito ostensivo de controlar a criminalidade em uma situação onde não há confiança na justiça, e servindo muitas vezes como moeda de troca nos acertos entre policiais corruptos e grupos de traficantes.

Quando Fernando Collor de Melo assume a presidência em 1990, como primeiro Presidente eleito, depois de 26 anos de intervenção militar no sistema político, o governo federal não tinha maiores atribuições na área. A atuação do governo federal se dava, naquele contexto, muito mais pela iniciativa de projetos de lei de reforma penal e processual penal, como foi o caso da Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8.072/1990), encaminhada pelo Ministério da Justiça ao Congresso, e a agenda da segurança pública não estava na pauta política nacional, mas já pressionava os governos estaduais, como demonstrava a pressão da mídia sobre o governo Brizola no tema da segurança pública.

Somente no governo Fernando Henrique Cardoso, com o agravamento da percepção social sobre o colapso das instituições de segurança pública, especialmente no Rio de Janeiro, o governo federal passa a atuar diretamente, com a criação da Secretaria Nacional de Segurança Pública, vinculada ao Ministério da Justiça, do Fundo Nacional de Segurança Pública e do primeiro Plano Nacional de Segurança Pública, procurando articular a destinação de recursos federais com programas de melhoria da segurança pública nos estados, via especialmente o investimento nas policiais.

Nos governos de Luis Inácio Lula da Silva, se amplia o protagonismo do governo federal na área, elaborando planos nacionais e induzindo a sua implementação pelos estados, e é estimulada também a participação maior dos municípios na implementação de políticas de prevenção ao delito no âmbito local. Nos primeiros planos nacionais de segurança pública já se evidenciavam as ações de caráter preventivo: integração entre as polícias, qualificação profissional com o objetivo de diminuição da letalidade policial, estímulo à aplicação de penas alternativas, fortalecimento de estratégias de policiamento comunitário, controle de armas e garantia e promoção dos direitos humanos.

Em 2007, o Ministério da Justiça lança o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (PRONASCI), reconhecendo os avanços dos planos anteriores e assumindo a complexidade do fenômeno da violência, dando ênfase maior às questões das raízes socioculturais e dos agenciamentos subjacentes às dinâmicas das violências e da criminalidade, entendendo estarem imbricados à segurança outros problemas e fatores sociais, culturais, ambientais, tais como: educação, saúde, cultura e serviços de infraestrutura.

Dentre os principais projetos estruturais do PRONASCI estavam a valorização dos profissionais do sistema de segurança pública e justiça criminal; a reestruturação do sistema penitenciário; o combate à corrupção policial e ao crime organizado e o envolvimento comunitário. Sobre os programas locais merecem destaque os Território de Paz, o Mulheres da Paz, o PROTEJO e os programas de Justiça Comunitária. Tudo tendo como pressuposto a garantia do acesso à justiça e a recuperação dos espaços públicos, por meio de medidas de revitalização e urbanização.

Também houve aumento do investimento em formação policial, com a constituição da Rede Nacional de Altos Estudos em Segurança Pública, a criação do SINESP, garantindo uma maior transparência e abrangência na produção de dados no setor, e algumas inovações pontuais implementadas nos chamados territórios da paz, como os programas de Justiça Comunitária e de foco prioritário na disputa de adolescentes com o tráfico.

Também foi dada visibilidade e prioridade à violência contra a mulher, com novas experiências importantes de implementação das medidas protetivas previstas pela recém aprovada Lei Maria da Penha (2006). Mas faltaram iniciativas mais efetivas para enfrentar a superlotação carcerária e apoiar o egresso do sistema penitenciário e do sistema socioeducativo, cedendo ao domínio cada vez maior das chamadas facções ou coletivos criminais, fenômeno reforçado pela nova lei de drogas, aprovada em 2006, que elevou a pena mínima para o delito de tráfico, contribuindo de forma direta para a superlotação carcerária.

Não se avançou neste período na reestruturação das polícias, ficando em segundo plano o debate sobre ciclo completo de policiamento, fim da dupla entrada nas carreiras policiais e criação de mecanismos mais efetivos de controle sobre a atividade policial, apontados por pesquisadores como caminhos para uma mudança estrutural do setor. E não se efetivou a redefinição de atribuições da União, estados e municípios, dificultando a consolidação de um Sistema Único de Segurança, para dar permanência e organicidade às inovações.

Em que pese os avanços na concepção do PRONASCI e na vinculação das propostas e programas aos recursos para sua implementação, os resultados foram bastante fragmentados e dispersos, levando à identificação, pelos balanços realizados, de problemas relacionados com o pouco espaço para o questionamento das soluções apresentadas, com a pura e simples adesão dos municípios parceiros, a falta de mecanismos adequados de monitoramento das políticas e o abandono da agenda da reforma estrutural das organizações da segurança pública. Soma-se a isso a dificuldade do PT e demais partidos do campo de esquerda para assumir programaticamente uma pauta de segurança pública que considere a força pública como parte inerente à democracia, voltada à profissionalização e reestruturação das polícias, e desvinculada de interesses puramente corporativos

A situação se torna mais grave, no entanto, quando Dilma Rousseff, ao assumir em seu primeiro mandato, em 2011, descontinua o PRONASCI, com a alegação de que deveria ser reduzida a ação do governo federal no setor, uma vez que não havia previsão constitucional que obrigasse a União a atuar nesta área. No lugar do PRONASCI foi apresentado ao longo do mandato o Programa Brasil Mais Seguro, que ficou limitado a um projeto piloto no estado de Alagoas, e foram priorizadas as ações de Fronteira (ENAFRON), favorecendo a integração entre Polícia Federal e Exército, com poucos resultados efetivos. Foram também criados os Centros de Comando e Controle nas Capitais da Copa de 2014, e viabilizado o plano de realização da Olimpíada no Rio de Janeiro, com uma participação crescente das Forças Armadas na coordenação de ações na segurança urbana, voltadas para a manutenção da ordem pública.

Seja pela descontinuidade das políticas de prevenção e qualificação induzidas pelo governo federal em estados e municípios, seja pelo agravamento da crise econômica, com queda do crescimento e aumento das taxas de desemprego, o final do primeiro mandato da Presidente Dilma, marcado pelas manifestações de 2013 e o aumento das tensões sociais, sinalizava também o aumento das taxas de homicídio, trazendo mais um elemento para a crise política que se prenunciava. Identificando essa deficiência, ainda antes de Dilma iniciar o segundo mandato, em dezembro de 2014 o Ministro José Eduardo Cardozo chama a Brasília, um grupo de pesquisadores do tema da violência, para iniciar a elaboração de um Plano Nacional de Redução de Homicídios. Produzido às pressas e lançado em julho de 2015, o Plano previa a necessidade de um pacto nacional em torno do tema, mas o ambiente política estava mais propenso à polarização do que ao consenso, culminando com o impeachment de Dilma Rousseff em agosto de 2016.

Embora carente de legitimidade política, o governo Temer identificou no tema da segurança pública uma possibilidade de constituir uma marca na opinião pública, e tomou iniciativas importantes no curto período de 2016 até 2018. Criou o Ministério Extraordinário da Segurança Pública, que passou a ser dirigido pelo deputado Raul Jungmann. Articulou a intervenção federal/militar sobre o estado do Rio de Janeiro, através da qual o Exército passou a exercer as funções de comando do setor no estado, dirigindo a Secretaria de Segurança Pública. E aprovou, em 2018, a lei que estabeleceu o quadro normativo para a existência do SUSP – Sistema Único de Segurança Pública. Em pouco tempo, arranjos institucionais importantes foram encaminhados, mas já impactados pelo aumento da participação do Exército na formulação de políticas de segurança. No mesmo período, o Conselho Nacional de Justiça, sobre a presidência do ministro Ricardo Lewandowski, recomenda aos judiciários estaduais e federal a realização de audiências de custódia para avaliação, em 24h, pelo judiciário, sobre a legalidade da prisão, os métodos utilizados pela polícia e a conversão ou não da prisão em flagrante em prisão preventiva. Como resultado, nos últimos 3 anos houve uma redução de um total de 40% de presos preventivos sobre o total, para 31% segundo os dados mais recentes do Infopen e do CNJ.

 

2. A Ascensão do Bolsonarismo e a disputa entre Populismo Punitivo e Gerencialismo Inquisitorial

Jair Bolsonaro transitou durante 30 anos, como deputado, pelo submundo da política. Nunca tendo apresentado projeto importante ou tomado alguma iniciativa relevante na Câmara, Bolsonaro construiu uma carreira política representando os interesses de grupos de policiais militares e militares aposentados e em lutas corporativas, e estruturando uma rede de apoio nas favelas controladas por milícias armadas. O filho mais velho, o senador Flávio, é o ponto de contato com a rede miliciana, conforme mostram suas relações com Queiroz e companhia. O 02, Carluxo, vereador no Rio de Janeiro, é o especialista em redes na internet, que permite a conexão de todo tipo conteúdo neonazista, de grupos de extrema-direita, masculinistas, incels, trazendo para o Brasil um tipo de militância “conservadora”, que pode se conectar com as milícias e constituir uma ideologia para grupos armados controlando território ou fluxos de capital via mercados ilegais ou operações ilícitas não controladas pelas instituições. O 03, Eduardo, fez seu caminho ingressando como agente na Polícia Federal, e desenvolvendo, como o pai, um tipo de proselitismo político que junta interesses corporativos com uma ideologia tradicionalista e populista, que tem como inimigo o globalismo comunista, e articula o medo social da criminalidade com o conservadorismo moral e a defesa de uma política ultraliberal para a economia.

Estes três vetores conectam Bolsonaro a um momento internacional de crescimento de uma nova direita, com Trump nos EUA, Erdogan na Turquia, Victor Orgán na Hungria, entre vários outros, que se caracterizam pela linha dura (pelo menos em teoria) contra a criminalidade violenta, leniência com o aparelhamento e apropriação privada de recursos públicos de forma seletiva, somente para seus aliados, e dilapidação das regras de convivência, legais e costumeiras, na relação do governante com as instituições.

Um outro elemento quase sempre presente é o do estabelecimento de um vínculo importante entre o governo e as Forças Armadas, que acabam deixando seu papel de garantidores da soberania por sobre as disputas políticas internas, sobre as quais não deveriam se posicionar, diante do parlamento e do judiciário, instâncias de soberania popular e divisão de poderes que não dispõem de armas.

Quando chega a pandemia, há dúvida e dificuldade para se posicionar, diante do risco à saúde e da possibilidade de queda econômica abrupta. Aos poucos se constitui um consenso internacional, em torno da OMS e a partir dos resultados da forma como a pandemia foi conduzida na China, onde surgiu, e em alguns outros países, e dos problemas ocorridos na Europa, primeiro na Itália, depois na Espanha, Inglaterra, França, como os mais afetados e tendo iniciado tardiamente a política de isolamento ou distanciamento social.

No Brasil, enquanto Bolsonaro exerce sua compulsão à mentira, afirmando que era uma “gripezinha” sem maiores consequências, para proteger os indicadores de crescimento da economia, o Ministro Mandetta se conecta com o debate mundial e sustenta a necessidade de isolamento e monitoramento da pandemia, para não sobrecarregar o sistema de saúde e reduzir a curva de contágio. A duras penas, e com apoio dos governadores da grande maioria dos estados e com os prefeitos das capitais, assim como da Rede Globo, do Congresso e do STF, Mandetta obtém resultados importantes na condução da pandemia, achatando a curva de crescimento durante o mês de março, no final do qual é demitido, por se opor à política de “imunização de manada” defendida pelo Presidente.

Incentivo a aglomerações sociais, defesa da abertura inclusive de escolas, e minimização das possíveis mortes, são defendidos diariamente em coletivas, lives e aglomerações, tentando convencer a sociedade de que ele, o mito, é o único preocupado com a renda das pessoas, enquanto que todos os demais embarcaram em uma fraude contra ele, para derrubá-lo. O mundo construído em torno de fake news como as mamadeiras de piroca e o avanço do comunismo chinês pode ser uma narrativa convincente, mas como é irreal, acaba afetando a capacidade de leitura do cenário, para entender a importância do Estado para a contenção da doença em uma sociedade desorganizada como a brasileira.

Até aquele momento, á área da Segurança Pública estava subordinada ao “todo poderoso” Ministro Sérgio Moro, que assumiu mediante o compromisso de liberdade de ação e apoio incondicional a suas propostas de combate ao crime e à corrupção. Na prática, Moro nunca deu prioridade à questão da criminalidade urbana, deixada na mão dos estados, e teve como foco, de um lado, um discurso de endurecimento penal para constranger o Poder Judiciário, e de outro uma proposta legislativa, o “Pacote anticrime”, que propunha medidas tendentes a aprofundar a tradição inquisitiva do processo penal no Brasil, utilizando o “modelo Lava Jato” como base para a ampliação dos poderes do juiz e a introdução de mecanismos de justiça penal negocial no sistema brasileiro. Sem sustentação do Presidente, o projeto foi bastante alterado no Congresso, e quando aprovado limitou as pretensões de Moro, ao rejeitar, por exemplo, a plea bargaining, e incluir a figura do juiz de garantias para acompanhar a fase da investigação criminal.

A reunião que sela o destino do ministro Sérgio Moro, em março de 2020, gravada e transmitida para todo o país, teve como principal ponto de pauta colocá-lo na parede para que trocasse o superintendente da Polícia Federal do Rio de Janeiro, para proteção dos filhos e amigos do Presidente, que o expressou com todas as letras. Junto com isso, graças ao ministro Celso de Mello, que agiu bem ao oferecer à Nação o retrato acabado do atual governante e de seus principais assessores na empreitada de governar o país, ficamos sabendo que a defesa de liberação maciça de armamento para a população civil, concretizada por meio de uma portaria interministerial publicada no dia seguinte à reunião e assinada por Sérgio Moro, ainda ministro, e o ministro da Defesa Fernando Azevedo e Silva, não tinha por objetivo a defesa dos chamados cidadãos de bem contra o crime, e sim a resistência armada contra prefeitos, governadores e juízes pelo país que se oponham às ordens do governo federal, e que sustentem, por exemplo, medidas de rigoroso isolamento social para conter a pandemia.

Desde então, o programa bolsonarista para a segurança pública se consolida: fragilização dos mecanismos de controle público sobre a corrupção e a violência estatal abusiva; desmantelamento dos mecanismos de proteção ambiental e dos territórios indígenas; protagonismo das polícias militares em detrimento das polícias investigativas, vistas como alvo do aparelhamento para direcionar a investigação com objetivos políticos, como já se verificou no caso envolvendo a utilização da estrutura da Agência Brasileira de Inteligência para a defesa judicial de Flávio Bolsonaro; questionamento do monopólio estatal da violência legítima, com a ampliação maciça das armas em circulação e a legitimação crescente de grupos milicianos, atuando como seguranças privados e comercializando a segurança.

 

3. Compreender para articular a resistência

Compreender a ascensão do bolsonarismo no Brasil é imprescindível para identificar a sua agenda e articular a resistência. Os limites da democracia representativa e a crise de representação dos partidos políticos explicam em parte a sustentação política de Bolsonaro, porque também estão presentes em outros países como Turquia, Hungria, Polônia. No caso brasileiro, é necessária uma imersão nas razões societárias, nas profundas transformações por que passam os laços e vínculos de sociabilidade.

Compreender o apoio popular a governantes como Bolsonaro implica em discutir o mundo cotidiano das paixões e emoções, frustrações pessoais, desejos por ordem, etc. Reconhecer os diferentes significados do medo para distintos grupos sociais, e suas implicações para o enfrentamento dos problemas cotidianos, do cuidado e proteção dos filhos em situações muito adversas, venha essa proteção da igreja local, do traficante da esquina ou da milícia armada. A questão é entender como Bolsonaro mobilizou e mobiliza esses sentimentos e foi capaz com êxito de promover tanta adesão.

Desde os anos 2000, pelo menos, os movimentos sociais – especialmente o movimento feminista, o movimento negro, o movimento de pobres urbanos por moradia, renda e serviços públicos adequados – estão nos convidando a olhar as instituições que temos com um olhar crítico. A eleição de Trump nos EUA em 2016 estimulou uma série muito interessante de estudos sobre a “crise” da democracia – uma crítica liberal à democracia liberal. A crítica dos movimentos é de outra natureza: ela interroga outras possibilidades da democracia enquanto experiência histórica. Ambas as vertentes foram fundamentais para a vitória democrata nos EUA, pondo fim à aventura trumpista, em que pese os sérios danos à democracia e à convivência democrática que ainda podem perdurar por muito tempo.

Para além dessas questões apontadas, seria importante incluir, no caso brasileiro, o esgotamento do projeto político da esquerda para o país, uma vez que não formulou respostas à crise econômica, não avançou no aperfeiçoamento gerencial da administração pública e permaneceu refém de experiências políticas como o chavismo e o castrismo, bloqueando a formulação de estratégias para o país no contexto da globalização econômica e de multilateralismo. Restrita a em torno de 30% de um eleitorado cativo ao Lulismo (e em declínio), a esquerda tem se mostrado incapaz de compor e atrair setores sociais mais amplos e com preocupações legítimas frente à burocracia estatal e ao exercício de direitos, e conter o fascismo societal incorporado a política institucional.

A defesa do Estado no Brasil se tornou um tema delicado, tendo em vista a dificuldade de enfrentar os vícios do modelo patrimonialista. É preciso uma agenda mais ampla neste momento, que inclua o desenvolvimento econômico em moldes capitalistas, a maior eficiência da máquina pública na promoção de direitos e dinamização da vida social, o controle público sobre todas as dimensões de funcionamento do Estado. E que dialogue tanto com os movimentos chamados identitários, incorporando sua militância e suas pautas, como com lideranças do meio empresarial, da mídia, da academia, na elaboração de políticas públicas e na formação e incorporação de novas lideranças ao sistema político. É preciso convencer a esquerda de que esta é uma pauta viável não só para derrotar o bolsonarismo na eleição de 22, mas para retormar a possibilidade de formulação de um projeto para o país, que conquiste o apoio e a credibilidade da maioria da sociedade, inclusive na segurança pública.

 

[1] Para uma análise das políticas de segurança pública pós ditadura militar, vide MINGARDI, Guaracy. Tiras, Gansos e Trutas – Cotidiano e Reforma na Polícia Civil. São Paulo: Scrita Editorial, 1992; SOARES, Luiz Eduardo. Meu Casaco de General. São Paulo: Cia. Das Letras, 2000.  ADORNO, Sérgio… Insegurança versus direitos humanos: entre a lei e a ordem. Revista Tempo Social, São Paulo, v. 11, n. 2, p. 129-153, 1999; e ADORNO, Sérgio. Lei e Ordem no segundo Governo FHC. Tempo Social nov. 2003, vol.15, n. 2, p. 103-140.

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