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Um novo olhar dogmático: a anistia na transição conciliada

Tarso Genro

Advogado e ex-ministro da Justiça

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Com a reinstitucionalização operacional da Comissão de Anistia, é novamente aberta oportunidade de retomar os processos políticos e jurídicos que orientam a nossa complexa Justiça de Transição.

Numa aula magna na Academia, ainda como titular do Ministério da Justiça e com ajuda do então presidente da Comissão de Anistia, professor Paulo Abrão Pires Júnior, ressaltei o seguinte sobre o tema ora reposto: “a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça tem procurado implementar um efetivo programa de Justiça de Transição (e assim) o Direito e a Política marcam encontro e reciprocamente interagem (…)”.

Através de uma ação judicial da OAB (de descumprimento de preceito constitucional), o tema da tortura, o mais crítico dos temas na transição conciliada, foi (então) posto em questão, a partir não somente da Lei de Anistia, mas também a partir dos fundamentos da Constituição de 88.

Menciono em outro texto estes “fundamentos”, que se projetam a partir da hipotética “norma fundamental” [1]Os ‘fundamentos’ de uma constituição, no caso da nossa carta, ‘a igualdade perante a lei’ e a ‘inviolabilidade dos direitos’ (artigo 5º da CF), sustentam todos os direitos e determinam todos os deveres, que a ‘norma fundamental’ enseja respeitar. O raciocínio é elementar: caso não ocorra essa conexão (hermenêutica) entre os fundamentos e a norma fundamental, todas as demais regras do ordenamento podem deixar de ser aplicadas pelo arbítrio de quem decide” [2].

A dogmática conservadora e democrática do Direito Constitucional moderno, que reflete por inteiro na nossa tradição jurídica, foi assim exposta por Ruy Cirne Lima: “o Estado-pessoa-jurídica é (…) chamado à existência, primariamente, para fazer o direito vivo positivo (…). Quer dizer, anunciá-lo, aplicá-lo e executá-lo. No cumprimento dessa missão o estado há de conservar-se, entretanto, subordinado ainda, à norma jurídica” [3].

O mestre aponta o círculo de coerência formal dos sistemas e das normas, que dão credibilidade e eficácia à ordem jurídica, círculo esse que constitui a base e coerência sistêmica para o intérprete entender a anistia e a autoanistia, como não contraditórios formalmente. Esta dogmática, aqui aplicável, é uma consequência negativa da transição conciliada e da superação imperfeita da ditadura, mas dela podem ser tiradas outras consequências.

A anistia, nesta contextualização, não é apenas um perdão dos vencedores que promoveram a exceção ilegal pela ditadura imposta aos vencidos, mas é sobretudo um “pedido de desculpas do Estado” pelas violências que cometeu fora da lei e da Constituição derrocada, processo que não pode ser mais aceito como “um instrumento de amnésia histórica” [4], já que, em cada momento de aplicação das normas que anistiaram, fica entendido que o Estado revive a totalidade da transição para o Estado de Direito. No caso em tela, revive, inclusive, por anistiar crimes que não foram apreciados no devido processo legal.

Na decisão do STF, pela qual o Estado supostamente negou-se a “revisar” a Lei da Anistia (na verdade se recusou a interpretá-la corretamente), foi decidido, em abstrato, que as torturas cometidas pela repressão policial — no regime de exceção — eram “crimes conexos”, o que implicou torná-los análogos aos crimes políticos, o que, como fato novo na Justiça de Transição, fez “equivaler” o tratamento dado a ambos os lados, com consequências diferentes: os anistiados políticos em regra não tiveram seus direitos protegidos de forma total, mas os que cometeram torturas ou agiram fora da legalidade da própria exceção ditatorial, obtiveram a proteção máxima: sequer foram processados!

O entendimento do STF que se baseou numa leitura superficial do artigo 1º § da Lei 6.683 de 28/08/1979, considerou como conexos “os crimes de qualquer natureza”, relacionados com “crimes políticos” ou praticados por motivação política. Pela sua exegese, portanto, os insurgentes contra a ditadura, bem como os que se serviram dela para cometer atrocidades nos seus porões, estariam abrigados pelos mesmos valores. Assim, a tortura não pesava mais como um crime contra a humanidade, impossível de ser perdoado ou “desculpado”, mas crime conexo, análogo ao “político”! (Consultor Jurídico, 1 de maio, 2010,13h e 34 — “Reação de militares sobre decisão do STF é de alívio”).

Ao sentenciar dessa forma sobre a questão da anistia “ampla e irrestrita”, o STF gerou uma situação absurda, pois grande parte dos atingidos pela violência nos cárceres da ditadura não tiveram os seus direitos repostos de maneira integral e completa, mas os autores de delitos comuns e das barbáries — nos cárceres subterrâneos ou “legais” do regime — mantiveram as suas relações jurídicas com o Estado íntegras, sem qualquer processo penal pendente sobre as suas condutas e sem sofrer qualquer dano – não só quanto às suas carreiras funcionais públicas — mas também nas suas relações sociais e familiares.

Trata-se de um tratamento desigual e incoerente, no processo de transição negociada, no qual mais do que uma “anistia”, mas uma “autoanistia”, estabeleceu proteções superiores para dar apoio selvagem aos que usurparam o Estado de Direito derrocado.

Cabe lembrar aqui, por coerência dogmática (em acordo com a própria interpretação dada pela decisão acima referida), que se os torturadores foram anistiados antes de processados, mantendo, assim, todos os seus direitos intactos, os tocados pela violência do regime ditatorial não poderiam ter um tratamento pior do que o deles, pois “no que diz com a utilização da dignidade da pessoa humana como critério de interpretação do ordenamento jurídico” a anistia envolve [5] em bloco a defesa dos direitos fundamentais.

Audiência pública promovida pela Comissão de Anistia em 31 de julho de 2008 — para debater se ela abrigava, ou não, os que cometeram o crime de tortura (…), hoje pode ser vista como uma colaboração ímpar para a superação da leitura, então dominante, de que a anistia seria um instrumento de amnésia histórica (…) [6]: a “transição negociada”, no mínimo, não pode ser destinada a desigualar torturadores e torturados, em favor daqueles. E o “perdão” ou as “desculpas” oferecidas aos “vencidos”, objetivamente não podem ser consideradas parciais, em relação a uns e totais, em relação a outros.

 

– Colaborou com a pesquisa o advogado Juliano Genro.