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SÍNCOPE NA COMPOSIÇÃO DO ESPAÇO PÚBLICO BRASILEIRO

Síncope na composição do espaço público brasileiro

Alfredo Attié

Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ/SP), graduado em Direito e em História na Universidade de São Paulo (USP) e Doutor em Filosofia pela mesma instituição. Presidente da Academia Paulista de Direito,

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“Do not play this peace fast.
It is never right to play Ragtime fast”[1]

“Agora vou mudar minha conduta
Eu vou pra luta pois eu quero me aprumar
Vou tratar você com a força bruta
Pra poder me reabilitar (…)
Com que roupa que eu vou
Pro samba que você me convidou?”[2]

“Je ne sais, dit-il, quels barbares sont ceux-ci (…)
mais la disposition de cette armée que je vois, n’est aucunement barbare.”[3]

1. Um diagnóstico autóptico

Há sete anos, em junho de 2013, tornou-se visível, nas grandes cidades brasileiras, uma mudança radical na política. De repente, milhares de pessoas foram às ruas, para protestar contra muitas coisas, que pareciam desconectadas e envolver múltiplas razões, interesses, até pretextos.

Aparatos tradicionais de exercício da política tentaram entender o que havia, envolver-se na revolta, mas foram rechaçados, com desconfiança e brutalidade automática. Intelectuais tradicionais também tentaram solver o enigma, mas formularam hipóteses muito pouco convincentes, balizadas, o mais das vezes, por critérios, teorias e análises conjunturais que pareciam não mais aderir ao curso dos eventos. Como toda aquela eclosão de marchas e expressão de palavras em aparente desordem faziam-se à flor da pele, sem reivindicar qualquer vinculação estrutural ou sistêmica, na superfície do asfalto e das ondas corporais de negação e de pautas, aos olhos de muitos, desimportantes – porque desvinculadas dos agentes tradicionais da política e dos movimentos tradicionais, esses sim considerados como portadores de pautas relevantes – inúmeras correntes de ação puderam se imiscuir na movimentação dos corpos, inserir temas e pautas particulares e imediatas. Havia violência, exposição, moralismo e imoralismo, política, oposição ao aumento abusivo de tarifas de transporte público, luta pelo passe livre, mas igualmente um nada e um não-sei-quê, ou ser “contra tudo isso que está aí”, “cruzada anticorrupção”, “fora PT”, “intervenção militar, já”, “não vai ter Copa”, ofensas a alguns políticos, ofensas a todos os políticos, negação da política, pular catracas, mídias tradicionais, mídias novas e alternativas. Houve até tentativa de usar o movimento para fazer pressão pela aprovação de lei sobre teses “contra a corrupção”, por parte do Ministério Público Federal, sem discussão pelo Parlamento e pela sociedade. Pessoas gritavam, jovens saltavam e dançavam, desafiavam como black blocks, reivindicavam, como moradores, estudantes e trabalhadores das múltiplas periferias das cidades. Entretanto, vinha igualmente gente dos centros, que falava da corrupção e também dirigia acusações e gritava palavras de ordem.

Inexistia, contudo, qualquer centro, mesmo qualquer vínculo sólido entre os que cerravam fileiras nesse mover-se pelas cidades. Líderes não despontavam nem se apresentavam. As fontes de informação e os vínculos com estruturas ou mecanismos de informação eram muito diversos e dispersos, assim com redes sociais, com coletivos, com a mídia tradicional e a mídia alternativa.

As passeatas iam se sucedendo, dia após dia, tornando caótico o trânsito já carregado das grandes cidades. Eram feitos compromissos com as autoridades desse trânsito, as passeatas corriam bem, sem confronto manifesto, no início, mas sempre terminavam em violência. Aproximava-se a Copa das Confederações de futebol. Havia um compromisso do governo brasileiro com a FIFA, que precisava ser cumprido. Houve um concerto entre as esferas de segurança federal e estaduais, no sentido de que havia necessidade de conter e reprimir o movimento, que tomava uma figuração cada vez menos inteligível e, por isso, ameaçadora. Numa das noites, os rebeldes e manifestantes percorreram a Esplanada dos Ministérios, no Distrito Federal, chegaram ao Congresso, subiram em sua laje, dirigiram-se ao Palácio do Planalto, onde estava Dilma Rousseff. Secretários de Segurança dos Estados do Sudeste tendo-se reunido, em Brasília, tomaram a resolução de combater o movimento, incumbindo as Polícias Militares da ação. Essas polícias traçaram um plano de atuação e o puseram em execução. Foi uma repressão violenta, com táticas de combate de guerra urbana, muita gente foi ferida, inclusive jornalistas. Muita gente foi presa e mesmo processada.

O movimento arrefeceu, começou a deixar as ruas. Em pouco tempo, os protagonistas que permaneceram ou que se apresentaram, começaram não mais a ocupar ruas nos dias de semana, ao final do trabalho, mas em horário confortável, após o almoço de fim de semana. O estilo dos manifestantes também mudou. Em vez dos lenços que cobriam os rostos e das roupas mais simples, as pessoas vinham com camisetas da seleção brasileira, querendo demonstrar patriotismo, confraternizavam com os policiais militares, traziam trens elétricos para realizar comícios, em que lideranças surgiam, para tornar a pauta de protesto monocórdica: fim da corrupção, bonecos infláveis gigantes com as feições da governante do País, do ex-governante do País e de outros participantes dos Governos, a maioria deles ligados à sigla do Partido dos Trabalhadores e à esquerda, taxada de corrupta em si e por natureza, merecedora de processos, prisão e impeachment.

Minha intenção neste texto não é a de explicar em toda a sua configuração esses fatos, citados de modo não exaustivo na breve narração que o abre. Isso fica para um outro texto. O que desejo fazer aqui, seguindo o método mais autêntico da história, é mostrar algumas das forças que corriam aparentemente submersas a essas questões, a esse mundo conturbado que expressa a nossa política em seu estado atual. Não falo da natureza da política brasileira, mas de uma certa configuração, de uma estrutura específica que ajuda a entender essa conturbação, esse mundo aparentemente fora de lugar, e a propor, em conjunto com as pessoas e os movimentos efetivamente preocupados com a construção da democracia, do desenvolvimento sustentável, da justiça social, algumas soluções e caminhos que permitam saltar dessa situação de impasse para um tempo que retrate e resgate o que daquele instante de 2013 representou o melhor da rebeldia e da busca de uma mudança para um modo da política realmente inovador e sedento de liberdade e inclusão.

Com certeza, políticos e governantes da época não entenderam o que houve. Mesmo parece terem-se esforçado muito pouco para compreender o significado das passeatas que abalaram a crença nas atividades de Estado de que se ocupavam. O processo eleitoral de 2014 seguiu um curso tradicional e desligado do que ocorrera no ano anterior. De modo artificial e esquemático, diria que o projeto da situação – uma coalizão de centro-esquerda com uma parcela da centro-direita – parece ter rechaçado o movimento, entendendo-o como de índole de classe média, levado a cabo pelos descontentes das reformas que essa coalizão realizara nos anos anteriores, sobretudo sob os dois governos do Presidente Lula. Havia razão para esse entendimento, e para essa relação de antagonismo entre a imagem e o próprio movimento das ruas e o governo Rousseff, bastando lembrar das ofensas gritadas pela multidão de torcedores brasileiros, que comparecia aos estádios para assistir aos jogos da Copa do Mundo de 2014, pagando ingressos relativamente caros. Do lado da oposição, que envolvia uma coalizão de centro-direita, comandada pelo PSDB, a visão do movimento era mais pragmática, pois as críticas que restaram nas ruas, após a repressão e o arrefecimento, dirigiam-se contra o governo. Quem vestira a camisa da seleção nos estádios, pagando caro pela peça, viria a aproveitar a vestimenta para se apresentar de verde-amarelo nos protestos pelo impeachment.

Esse uso diferente da imagem dos protestos já indica que havia uma clara correspondência entre discurso da política e a própria prática daqueles que agiram para conter e reprimir os protestos. Essa coincidência está em, numa interpretação bastante sumária e superficial, terem visto os inúmeros grupos de manifestantes e rebeldes como constituindo um todo monolítico. E essa interpretação, em verdade, foi elaborada no curso da ação e repressão, tendo resultado, em verdade, dessa ação de repressão.

 

2. Anacrítica da Interpretação-Repressão do Movimento

O que ocorreu, portanto, foi que a repressão forjou o modo como o movimento foi visto. O modo de repressão, claramente, baseou-se na concepção de que havia desordeiros e bagunceiros nas ruas, que deviam ser e foram violentamente reprimidos, tratados por meio de emboscadas, lançamento de bombas e balas de borracha, cassetetes e prisões. Esses não tinham nada de autêntico a reivindicar. Apenas estavam inconformados com a situação. Mas não apenas bagunceiros e desordeiros. Estariam presentes também amigos da ordem, sem que deixassem de merecer de certa repressão, muito embora de violência apenas latente e não manifesta, carecentes de disciplina. Estes seriam os manifestantes autênticos, portadores de palavras verdadeiramente de ordem, dirigidas contra as pessoas certas – os governantes e políticos da situação, portanto de esquerda – e voltadas à moralização da política, entendida como autêntica.

A repressão separou o movimento em duas partes. Retirou das ruas, violentamente, quem acreditava representar o lado ruim, ao mesmo tempo em que abriu espaço para a permanência do outro lado, considerado de bem, indicando como deveria manifestar-se daí em diante. Um lado foi reprimido pela força. O outro, pela disciplina.

Mas houve uma outra dualidade estabelecida pela repressão-interpretação do movimento. Dessa não foi responsável apenas a polícia encarregada de conter e reprimir. Também a mídia tradicional e alguns setores ou forças no interior da sociedade contribuíram para a ideia de que teria havido outras duas facetas nas passeatas e protestos. Uma consciente, outra inconsciente. Aquele lado visto como desordeiro correspondia, grosso modo, à inconsciência. O lado da ordem, ao contrário, à consciência. Portanto, muito embora aqueles tenham apanhado nas ruas e sido levados à prisão, não estariam errados em protestar, muito embora não soubessem a razão de protestarem, nem o objetivo de reivindicarem. Se clamavam por algo, seu clamor estava equivocado, pois não tinham compreendido bem a razão verdadeira de seu protesto. Esse lado da razão e da clareza de objetivo estava com o lado consciente, correspondente, grosso modo, à faceta ordeira. Era esse lado o responsável pelo aspecto racional. O lado consciente falava pelo inconsciente.

Se a primeira divisão de repressão e intepretação do movimento o repartia de modo absoluto, a segunda refazia sua unidade. E o que era essa unidade para essa interpretação-repressão, era o resultado da ação policial, ou seja, o slogan remanescente, que levou ao impeachment e à criminalização da política, em geral, e à tipificação e condenação concreta dos governantes e políticos de esquerda.

Essa repressão forjou o desfecho do movimento e a interpretação que se guardaria dele. Enfim, o uso político eleitoral que se fez dele.

Essa ação disciplinadora – que acabou criando uma aliança entre o poder militar, representado pelas polícias militares e pelos aparatos de segurança dos Estados, e os manifestantes, sobretudo oriundos das classes médias tradicionais – já mostrava efeitos visíveis, mesmo a partir de 2013, durante a Copa das Confederações, e daí em diante até a Copa do Mundo de 2014, quando os manifestantes dirigiram palavrões, logo após a audição do Hino Nacional brasileiro, à governante. Os cartazes que os manifestantes passaram a portar dentro dos estádios de futebol, principalmente, mas também nas ruas,  passaram a fazer alusão ao termo “padrão FIFA”, conectando-o a expressões de tipo: “queremos educação e saúde padrão FIFA”, fazendo referência às exigências contratuais relativas às reformas e à apresentação dos estádios (construídos ou totalmente reformados, por valores extraordinários) e seu entorno.

Muito bem, assim narrados, em resumo breve e não exaustivo, os acontecimentos de 2013, é preciso apontar alguns dos elementos que me permitiram, ao início, caracterizar esse conjunto de práticas e discursos como mudança radical na política.

Mudança, em primeiro lugar, porque o ir às ruas no processo político brasileiro da época não foi fato isolado no cenário internacional. Desde o início do século XXI, a movimentação dos povos nesse cenário já se dirigia à reinvindicação de novas formas políticas,[4] inclusive com a postulação de instauração democrática em Países cuja tradição tinha sido a de absoluta submissão dos povos a formas de poder mais ou menos teocráticos, fora da esfera do que se convencionou chamar de cultura ocidental, como no caso da “Primavera Árabe”. Mas havia, igualmente, movimentos fortes de ordem nacionalista, como no caso da Ucrânia, coevo ao movimento brasileiro. Nesse particular, é preciso salientar uma questão semântica importante para o desenvolvimento da argumentação do presente artigo. A mídia tradicional brasileira em nenhum momento deixou de conceder aos agentes dos atos na Ucrânia a denominação de “manifestantes”, diferentemente do caso brasileiro, em que era comum a utilização dos termos “vandalismo” e “vândalos”, para qualificar ao menos parcela dos atores brasileiros.

Bem por isso, estou usando, desde o início, uma dupla denominação para os que participaram dos atos no Brasil.

Digo de “manifestantes” e “rebeldes”, para referir, em primeiro lugar, aproximadamente, aquela dicotomia estabelecida pelo que chamei de repressão-interpretação do movimento, ou se se preferir, a interpretação pela repressão do movimento. Mas minha intenção é também fazer uma distinção, entre essas duas categorias, que me parece importante para recortar temporalmente sua inserção e seu significado nesse movimento. Sim, porque uma das características fundamentais que me permitem referir essa mudança como radical está em que essa distinção significa o golpe fatal num processo de deslegitimação das estruturas e dos caracteres da política tradicional.

Portanto, havia duas éticas diferentes e opostas, de fato, em meio ao movimento da multidão. Uma da rebeldia, outra da manifestação, como as estou denominando no presente texto. É minha hipótese a de que essas formas distintas de dizer ou desempenhar distinguiam-se não somente por suas formações éticas. Essa diferença ia além, alcançando um aspecto essencial, que diz respeito a suas estéticas, ou, mais que isso, da conexão entre determinadas éticas e as estéticas que lhe correspondem. Portanto, coexistiam no movimento espacial, mas divergiam no seu tempo, na sua dinâmica, no seu compasso e no seu ritmo.

A ética e a estética da rebeldia foram silenciadas ou afastadas da rua pela ação militar. A ética e a estética da manifestação permaneceram, selecionadas por aquela ação policial, disciplinadas por ela. Se o estopim do movimento, o início da manifestação foi a rebeldia, diante do aumento abusivo do valor da passagem dos transportes públicos, a interpretação-repressão fez com que se transformasse ou findasse como súplica pelo “padrão Fifa” para serviços públicos, como se a qualidade da saúde, da educação, da segurança, dos transportes dependesse não de uma decisão comum do povo, mas de um contrato entre os governantes e uma entidade qualquer estrangeira, que sequer prestasse os serviços, mas apenas exigisse que fossem realizados de acordo com certo standard estabelecido não pelos cidadãos, mas por empresas transnacionais, por entes situados fora do controle e da fiscalização do próprio povo. Mais grave era o fato de esse padrão corresponder ao exercício de uma atividade por uma instituição envolvida em investigações sérias de corrupção, como veremos mais à frente. Em outros termos, se o impulso inicial era de ordem política, sua transmutação interpretativo-repressiva fez com que se tornasse da ordem econômica. Se desejarem, de um começo verdadeiramente constitucional tornou-se um fim meramente administrativo. Para usar uma metáfora, retiraram o caos lúdico e a insubmissão do samba da avenida e o levaram como espetáculo ao sambódromo, deixando na avenida apenas uma marcha disciplinada e submissa.

 

3. As cinco forças que sustentam o projeto de poder vencedor

Vou retomar, um pouco a distinção, para, a seguir, analisá-la e estendê-la. De um lado, rebeldia de natureza constitucional e de insubmissão. De outro, manifestação, de natureza administrativa e de submissão. Quero salientar que as duas naturezas caminharam juntas, com suas éticas e estéticas distintas, sem se misturarem, sem sequer se comunicarem. Não se confrontaram, não se rechaçaram mutuamente, não se enfrentaram. Estavam lado a lado, como nas disposições dos combates da Antiguidade romana, em que os povos aliados formavam lado a lado com as legiões de Roma, guardando seus próprios modos de combate e interesses no território e no butim. Mas, depois da guerra, separavam-se, prosseguindo seus caminhos para o centro e a periferia, sem se tocarem, a não ser nas relações de domínio e obediência. Roma colocava sob seu domínio os povos que conquistava e que se tornavam seus súditos e aliados. Súditos, nas relações de paz. Aliados, nas de guerra. De algum modo essa dualidade de relações se reproduzia nos movimentos. Os programas de rebeldes e manifestantes eram diversos, como eram diversos seus interesses e os móveis de sua ação. Antes de se juntarem nas ruas, a relação que guardavam entre si era de domínio e obediência, entre centros e periferias. Na manifestação, caminhando lado a lado, com suas bandeiras, cores, trajes, slogans e cartazes, eram iguais. Mas, além disso, a diferença entre rebeldes e manifestantes era da ordem da finalidade, do alvo.

A insatisfação com a situação limite, que levou todos a se erguerem contra o regime, era de espécie diferente. Uma mais próxima de uma situação concreta de medo e indignação, representada pelo aumento das tarifas, que era uma questão de sobrevivência para estudantes e trabalhadores, e que permitiu a exploração de um espectro de reivindicações mais amplo: por exemplo, o movimento pelo passe livre, que representaria um salto nas relações entre o poder público e a parcela majoritária do povo das cidades, que precisa do transporte para estudar e trabalhar, e que vê corroído seu orçamento já modesto, pela imposição tarifária: o transporte é chamado de público, mas é gerido como privado. Estabelecer o passe livre significaria mexer com essa equação, questionar o lucro da atividade e levar a uma alteração de paradigma. Transporte para todos e de graça significaria transporte de todos. Portanto, havia, aqui, uma reivindicação de ordem profunda, constitucional das relações de poder no interior das cidades.

Do ponto de vista dos manifestantes, porém, a insatisfação correspondia a uma expressão da crise econômica, que já assombrava a segunda metade da primeira Administração Rousseff, e seria um dos temas mais debatidos na campanha eleitoral de 2014, temperada com a criminalização da política, sob o slogan anticorrupção e a liderança da classe jurídica, representada pelas operações da Polícia e do Ministério Público federais, sobretudo levadas a julgamento na Vara federal especializada de Curitiba. Aqui, é importante salientar que a pauta dessa liderança, que se pode chamar de lavajatismo, estava revelada pela existência de um instrumento de comunicação interna de seus atores, por meio de redes sociais, consoante levantou e demonstrou o The Intercept Brasil.

De comum, entre ambos, estava a oposição à Copa do Mundo, uma pauta ambígua, pois o compromisso tinha sido visto como uma vitória do ex-Presidente Lula, um coroamento dos êxitos de sua Administração, que logrou trazer para o Brasil eventos esportivos de grandeza, resultado da admiração internacional pelo sucesso econômico e de redistribuição de renda. Ocorre que, entre a obtenção da decisão de sediar Copa de futebol, Olimpíadas e, antes, os Jogos Pan-Americanos, a euforia havia-se arrefecido, pois o cenário internacional mudara, em resultado da crise iniciada em 2008, e que demorou a aportar no Brasil, mas chegou, enfim, exatamente na Administração da sucessora de Lula. Além disso, havia uma pressão da mídia, comandada pelas revelações de casos de corrupção envolvendo grandes empreiteiras e a Petrobrás, na forma manipulada pelas operações referidas. Havia também um ânimo contrário à FIFA, também envolvida em escândalo milionário de corrupção, e que tratava as autoridades brasileiras com certo desdém, oriundo de sua posição contratual relativa à organização da Copa, empreitada extremamente lucrativa para a entidade, mas geradora de elevadas despesas para o País que a sediasse, se não prejuízos e comprometimento orçamentário incompatível com o cenário da crise. A alegoria, aqui, é a de um deus exigindo de Noé a construção de uma arca gigantesca, para abrigar todos os seres de sua criação, porque decidido a inundar o Mundo, levando ao esgotamento físico e de recursos de seu escolhido e de toda a sua família. A ambiguidade estava em que mesmo que percebendo o peso que causaria todo esse processo de preparação do evento esportivo, havia sinais inseguros da parte de governantes e de oposição política a respeito do significado e do valor dos investimentos a fundo perdido.

Essa e outras ambiguidades iriam atuar, como fatores perversos, na transformação da rebeldia em manifestação disciplinada. Sem poder aderir plenamente à pauta tout court do “Não vai ter Copa” ou “Go Home FIFA”, a passagem para o insólito programa “queremos serviços públicos padrão FIFA,” explica-se, sem muito esforço de imaginação.

As outras ambiguidades, fundantes dessa relativa à Copa, estavam em que as passeatas se voltavam contra a situação estabelecida, portanto, contra os governos do momento, que eram de centro-esquerda (Federal, Estaduais e Municipais), mesclado, aqui e ali, com governos de centro-direita (caso do governo Estadual de São Paulo, por exemplo). E questionavam a herança da era-Lula, o que era, até certo ponto um paradoxo, tendo em vista os avanços obtidos exatamente no aspecto social, da diminuição da pobreza e da desigualdade. Essas contradições permitiram o avanço de slogans e da disposição de ânimo contra políticos em particular, não apenas contra a política em geral. O governo Federal já tinha sofrido, mas superado, o desgaste do processo do Mensalão. Mas o alvo, no momento, era o próprio ex-Presidente. As ambiguidades permitiram e contribuíram para que esse ânimo negativo se acirrasse. Ao ponto de um inconformismo de classe média tradicional em ter de suportar como companheiros de consumo e de viagem membros das novas classes médias, cujo padrão de consumo havia melhorado sensivelmente, ter-se tornado uma aversão absoluta e irracional. Para muitos que reconheciam os benefícios das Administrações Lula, a passagem para o slogan da qualidade dos serviços pareceu natural, pois amenizava a rebeldia. Para o lado dos manifestantes, era natural essa passagem, pois o que desejavam não tinha a ver com qualquer mudança mais radical.

Essas ambiguidades faziam-se também contradições, que estabeleciam uma pauta comum, na diversidade e pluralidade dos questionamentos e protestos. Talvez a maior coincidência de pauta entre os rebeldes e os manifestantes tenha sido a questão da representação política. Todos pareciam coincidir na negação de que a representação ainda fosse democrática. Negavam que houvesse liames de representatividade na política e tinham pautas afirmativas que desejavam veicular por meio do movimento, a rebeldia ou a manifestação, diretamente. Do lado dos rebeldes, a ideia era de que era necessária uma nova forma de democracia, muito embora não perfeitamente elaborada. Uma democracia de identidades, como veremos mais à frente. Do lado dos manifestantes, a contestação da democracia representativa baseava-se numa imagem contemporânea, por uma lado, e saudosista ou reacionária, por outro, O contemporâneo dizia respeito aos meios técnicos de comunicação, como internet, smartphones, redes sociais, considerados hábeis a estabelecer contatos entre povo e política sem a intermediação de políticos ou mesmo da política, considerada propriamente. Como veremos, em uma de suas facetas principais, os manifestantes visavam a afirmar as relações do social e do econômico, principalmente, sem o político. Refletiam, assim, as mudanças técnicas ou tecnológicas dos negócios, das empresas, numa perspectiva aproximada do neoliberalismo: menos Estado, menos política, relações diretas, novo empreendedorismo, de cunho tecnológico, novo trabalho, de cunho tecnológico. Do lado saudosista ou reacionário, o que empreendiam, ao dizer que com e de seus smartphones podiam resolver tudo, sem necessidade da esfera pública, era que as relações pessoais entre eles é que eram relevantes, pelo que era possível e desejável excluir o outro, os outros que não compunham suas redes. As redes ditas sociais são privadas e não públicas. Exclusivas e excludentes e não inclusivas e includentes. Fechadas e não abertas. Manifestantes sonhavam com um mundo de privilégios restaurados.

Os rebeldes, com um mundo de direitos espraiados, mas de reconhecimento, portanto fragmentários e não mais universais. As estruturas da democracia representativa não lhes serviam mais. Essa crítica pesada contra a democracia, digamos, realmente existente, lembram muito as críticas à democracia do início do século XX, do processo de ascensão dos totalitarismos na Europa. Mas são diferentes porque o solo jurídico-constitucional é diferente, as técnicas são diferentes, tanto de dominação quanto de resistência, e as estruturas de relacionamento, as práticas materiais e discursivas são diferentes, como veremos.

Assim, portanto, operou-se a transformação da rebeldia em manifestação. A irresignação inicial, a pauta mais radical de alteração da própria constituição das relações de poder, no palco inicial dos serviços de transporte público, deu espaço para a reivindicação amena e meramente administrativa da qualidade.

Ao mesmo tempo, porém, em que a rebeldia dos rebeldes arrefecia, a manifestação dos manifestantes se inflamava. Porque a ambiguidade jogava oxigênio a seu favor, sobretudo por causa do argumento, ainda hoje forte, da corrupção. FIFA e governo, futebol e política, a presença de autoridades da FIFA e da CBF ao lado de figuras do governo, o presidente da primeira afastado por causa dos escândalos de corrupção da entidade, o presidente da segunda afastado e preso pelo envolvimento na corrupção, somente restava pensar que a governante brasileira também deveria aguardar uma punição, ao mesmo simbólica. Essa poderia ter vindo pela derrota na eleição, o que não ocorreu. Veio pela fragilização plena da coalizão de governo, com a parcela de centro-direita aliada debandando para buscar um projeto próprio, com o apoio do candidato derrotado na eleição de 2014, que aparecia nas fotos ao lado dos novos ministros da República, políticos velhos que ressurgiram, como que brotando do subsolo dos palácios de Brasília, logo a seguir do afastamento de Rousseff, a tempo de ouvir os discursos recheados de mesóclises e permeados de intervalos para tosses, aqui e ali, do ex-vice.

Mas o disciplinamento dos manifestantes foi facilitado porque eles, ao contrário dos rebeldes, já traziam em si o princípio da disciplina, da organização. Esse princípio era resultado de forças submersas à pauta dos manifestantes, e que explicam o compromisso que levará o País não apenas ao impeachment, em 2016, mas à prisão de Lula, em 2018, em plena campanha eleitoral, e à vitória de Bolsonaro.

Falava-se em populismo. Populismo é um nome geral, que pode ser aplicado a diferentes regimes de poder, existentes em diversos lugares e em diversos tempos. Como palavra genérica, porém, não tem o condão de explicar esses diferentes espaços e momentos, todos eles intrinsicamente distintos entre si.

Para explicar um regime de poder, há necessidade de analisar as relações passíveis de observação entre os elementos que o constituem. Práticas e discursos, que compõem as condições e a natureza desse regime. Compreendidas essas práticas (efetivas e discursivas), podemos então arranjar os agentes dessas práticas e os fatos que caracterizam o regime num quadro explicativo mais condizente com o que realmente ocorre ou ocorreu. Essa forma de organizar a composição de uma explicação, afiliada à história, permite a visão de conjunto da tela e a descoberta da função de cada um de seus elementos.

Quais foram as forças que, agindo de modo latente e até mesmo manifesto foram responsáveis por essa mudança radical?

O que se diz ser populismo, é na verdade a composição ou cooperação, voluntária ou não, de pelo menos cinco elementos, cuja síntese expressa uma capacidade, uma potência contra a democracia: bolsonarismo, lavajatismo, evangelicalismo, militarismo e redesocialismo ou fakenewsismo. São essas as forças que conformam o lado pesado do movimento que eclodiu em 2013, e aos poucos vão se unir para encaminhar à eleição de Bolsonaro e ao regime de governo que impõe ao Brasil. Esse regime, que muitos chamam de estado de exceção, é na verdade um regime anticonstitucional. Portanto, um movimento antidemocrático que encaminha um regime anticonstitucional. Vou resumir minha explicação aos aspectos relevantes para a compreensão da conexão que se estabeleceu entre esses cinco elementos, deixando para outro momento a tarefa de reconstituir a história de cada um deles, suas contradições e a maneira como se encontraram para sustentar o projeto político que ora governa o Brasil.

3.a. Evangelicalismo

Bolsonaro, ao receber a notícia de sua vitória na campanha para a Presidência da República, reuniu-se com seguidores, no condomínio em que morava, no Rio de Janeiro, e participou de um ritual religioso evangélico, depois, ajoelhou-se para receber a benção do bispo evangélico Edir Macedo, confirmando a índole de seu mote de campanha: “Brasil acima de tudo e Deus acima de todos” e sua citação evangélica favorita: “conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. Nomeou a pastora Damares Alves para o importante Ministério dos Direitos Humanos, da Família e das Mulheres, tem o apoio irrestrito da bancada evangélica do Congresso Nacional e das mídias ligadas ao evangelicalismo, como as redes de televisão Record e RedeTV.

3.b. Lavajatismo

Bolsonaro convidou e nomeou o então juiz Sergio Moro para o cargo de Ministro da Justiça e da Segurança. No curso do processo eleitoral, o ex-juiz federal havia condenado à prisão o ex-Presidente Lula, assim como foi o responsável pela execução dessa ordem de prisão, ainda antes do trânsito em julgado definitivo da sentença, por força de uma decisão do Supremo Tribunal Federal que autorizava a prisão automática do réu após julgamento de recurso por colegiado, jurisprudência essa recentemente alterada. Um dos Procuradores da República responsáveis pela Operação Lava-Jato e de posição de evidência junto às mídias tradicional e social, Deltan Dallagnol, manifestou-se contra a alteração da jurisprudência referida do STF, tendo, inclusive, realizado greve de fome contra a adequação do entendimento daquele Tribunal ao princípio constitucional da presunção de inocência. Esse Procurador apresenta-se como evangélico, assim como o atual Ministro da Justiça e da Segurança, nomeado logo após a saída de Moro do Ministério. A própria concepção do que seja ministério para Bolsonaro mais se aproxima da visão teológica do que da jurídica. O ministro não desempenha uma função, mas representa apenas a direção de uma autoridade superior.

De qualquer sorte, porém, esses são apenas alguns dos nomes associados à corrente do lavajatismo, que não se restringe ao universo das operações policiais referidas, mas envolve, principalmente, uma convicção de que haveria uma missão a ser assumida e executada pelos juristas, sobretudo os que exercem funções públicas entre as profissões do direito, e, entre elas, a do Ministério Público e a da Judicatura. O lavajatismo possui várias fontes de inspiração e pilares de sustentação. Os principais estão na convicção da existência dessa missão evangelizadora e moralizante da sociedade a partir da ação jurídica. Ela é um dos aspectos do chamado ativismo judicial, que encontra espaço especificamente na tendência ainda crescente de judicializar questões atinentes à política em geral, à Administração pública, em particular, e às políticas públicas.  Esse lavajatismo se baseia numa interpretação errônea e, propositalmente, abusiva do exercício da jurisprudência nos Países da common law. Além disso, ele se funda numa autoimagem vaidosa e hipócrita dos juristas em geral, e dos membros do Judiciário, em particular. Não é à toa que as várias funções do direito vivem numa espécie de gladiatura permanente, um espetáculo que atrai a atenção de leigos não apenas sobre filmes e pecas teatrais que retratem cenas de julgamentos, mas, no Brasil, para os embates performáticos em sessões do Supremo Tribunal Federal. O lavajatismo representa uma forte militância não apenas contra a Constituição, ou anticonstitucional, precisamente, mas sobretudo contra a própria política. Há uma aversão a tudo aquilo que é político, a tudo o que se faz por meio da publicidade, do debate público, do espaço público. Isso fica claro não apenas pelo modo como, no curso de investigações e processos relativos a operações chamadas de anticorrupção e anticrime, as informações eram transmitidas à sociedade, por meio da imprensa, em que havia uma seleção que impedia a apreensão plena de eventos e contextos, mas igualmente pelo fato de se haver feito uso de grupos em redes sociais, como WhatsApp e Telegram, para trocar mensagens entre partes e judiciário, não sujeitas ao controle da publicidade, à fiscalização de outras partes e de seus representantes. Foi o levantamento elaborado por The Intercept Brasil que trouxe isso à tona, com o auxílio de outros veículos da imprensa, como a Folha/UOL, sendo que boa parte dos fatos não foi negada pelos envolvidos, sobretudo a existência desses grupos e essa forma de comunicação secreta, que o processo judicial brasileiro, por normas de ordem pública, não autoriza. Apresenta-se, igualmente, esse mesmo caráter antipolítica nas declarações mais recentes do próprio ex-Ministro da Justiça e da Segurança, no sentido de que suas propostas – significativamente denominadas de “anticrime” – teriam sido descaracterizadas pela tramitação no Congresso Nacional e por falta de empenho do Presidente da República. Ora, é o próprio cerne da democracia representativa que é desprezado, pois a legitimidade para fazer as leis é do poder legislativo, que envolve a participação exatamente do Congresso e da presidência. Na república e na democracia, na vida política, não há imposição por um órgão destituído de legitimidade – que não possui status de representação, somente reconhecida pela Constituição por meio da eleição – de normas que devem ser aceitas pelos órgãos de representação democrática. Isso sem falar, claro, dos defeitos flagrantes, inclusive de ordem inconstitucional, da proposta originalmente formulada pelo gabinete do ex-Ministro. As mesmas críticas foram recentemente reiteradas em artigo da imprensa por membro desse gabinete, que, ainda, afirmou, no mesmo texto, que o ex-juiz “desconhecia” (sic) aquele que o convidou e nomeou ao Ministério, o que denota e acentua ainda mais esse sentimento de desafeição e depreciação pela política e pela democracia. O lavajatismo se quer uma instância acima da vida política, dotada de qualidades religiosas, de pureza jurídica, contrárias, portanto, ao próprio sistema jurídico de que acredita ser a encarnação verdadeira. Há um ataque constante à política e aos políticos, que não estariam interessados em findar com a corrupção, porque nela envolvidos estruturalmente, por natureza. A política seria atividade corrupta em si, atividade mesmo indigna, que deveria ser corrigida pela ação dos juristas, de modo contramajoritário, ou seja, contra o povo e o princípio democrático. O lavajatismo se vê imbuído desse espírito de agente corretor da sociedade política.

O exemplo mais claro dessa autoimagem está num artigo em que o Ministro Luís Roberto Barroso do STF afirma que a suprema corte tem a função de modular ou manter o equilíbrio entre o que aponta como os “três componentes essenciais do Estado Democrático de Direito,” que seriam “governo da maioria, limitação de poder e respeito aos direitos fundamentais” (sic). Ou seja, ele interpreta a seu próprio juízo quais seriam os elementos essenciais do regime constitucional. É simples refutar essa interpretação inventiva e predatória do sistema constitucional brasileiro. Basta ler a Constituição. Ao pretender ser inovador e moderno, o jurista interpreta de modo ultrapassado e errôneo o princípio democrático e a importância dos direitos humanos. Para ele, tomado aqui como importante representante do lavajatismo, a democracia e os direitos humanos estão sub iudice, ou, para ser mais preciso, sob a avaliação e direção de um poder que se considera acima da própria democracia e dos direitos humanos, portanto, não o poder judicial, mas um imaginário poder moderador – extinto, no Brasil, desde a Constituição republicana de 1891. Pior, tal poder moderador, no Brasil, representava a expressão de um poder absoluto, tendo em vista a interpretação, não por coincidência, também inventiva e predatória que aqui se fez do tema benjaminconstantiano. Portanto, o lavajatismo não compreende a função e o lugar do Poder Judiciário e quer que ele seja muito mais do que é: um moderador de democracia e de direitos humanos. Nesse sentido, ele considera ser possível – e de fato, pratica isso, efetivamente – afastar a democracia e direitos humanos quando lhe for conveniente e adequado, sob a justificativa de que precisa aplicar essa ou aquela direção normativa. Para ele, democracia é “governo da maioria” e “limitação de poder.” Ora, democracia não é isso, claro, do ponto de vista das experiências históricas do regime democrático. Porém, mais importante, não é isso que a Constituição diz ser democracia. Somente o lavajatismo pode levar a cabo essa tarefa de escolher como deve entender isso ou aquilo, esquecendo-se de que a primeira adesão do juiz é à Constituição, a que está submetido. Não está aí para julgar a Constituição, mas para adequar a ordem jurídica ao que a Constituição estabelece. E a Constituição não diz que o Judiciário estaria acima da lei nem dos demais Poderes. Pelo contrário, o principal Poder, segundo a Constituição não é o Judiciário, mas o Legislativo. É a lei que diz o que se pode ou não fazer. É a lei que obriga e desobriga. Não o juiz. Ao dizer Estado Democrático de Direito, a Constituição está dizendo Estado de Direito, fundado no princípio da legalidade, império do direito, rule of law. Mas esse Estado é Democrático: todo poder emana do povo e em seu nome é exercido, por representantes eleitos (seria preciso lembrar aos lavajatistas que nenhum juiz foi eleito, muito menos o ministro do STF?), ou diretamente, por meio de conselhos de participação, ainda indiretamente, por meio de referendos, plebiscitos e leis de iniciativa popular. Essa função de “limitar o poder” é usurpadora, pois aquele que prega ter poder para fazer isso está dizendo que o poder do povo não importa, a democracia não importa. E dizer que a democracia é simplesmente o “governo da maioria” é absolutamente errôneo, pois os modos de impedir que os direitos humanos sejam desrespeitados decorre da própria democracia, ou seja, da declaração constitucional de direitos e garantias fundamentais, e, mais do que isso, do fato de os direitos e garantias estabelecidos no sistema internacional de direitos humanos, por meio de tratados e convenções subscritos pelo Brasil, têm status constitucional (coisa que o STF, como um todo, parece não entender, até hoje). Ou seja, não cabe ao Judiciário limitar o poder, pois é a Constituição que o faz. O Judiciário deve aplicar a Constituição e não julgar a Constituição e modular o que ela estabelece. Não há espaço, portanto, para as três funções do STF imaginadas pelo lavajatismo: ser “contramajoritário, representativo e iluminista” (sic). Contramajoritário ele não é nem pode ser. Ele aplica regras de controle que estão postas pela Constituição e pelo titular do poder. Ele não pode inventar as suas próprias. Representativo? Qual foi o mandato recebido? Nenhum. A Constituição somente reconhece a representação legitimada pela eleição. Iluminista… Aqueles que encontram intenções feias nas belas coisas são corrompidos sem sedução, como dizia Oscar Wilde, num prefácio interessante e famoso, traduzido por João do Rio. E isso é verdadeiramente um crime, como considerava o escritor. Não cabe senão à vontade de dominação querer impor sua visão de mundo aos demais. Claro, no despotismo, tudo é possível. E o lavajatismo parece guardar esse desejo que o aproxima dos demais aspectos que fundam o exercício do poder político no presente, e que denominei de anticonstitucional. Não foi senão como corolário desse ideal antidemocrático que o mesmo Ministro, em decisão de processo extremamente sensível para o destino democrático brasileiro, e que selou o caminho do bolsonarismo à titularidade da Presidência da República, afirmou que o “princípio constitucional” (sic – na verdade é uma regra que proíbe clara e diretamente que se dê a qualquer pessoa o tratamento de culpado, antes de a decisão se tornar definitiva) da presunção de inocência deve ser cotejado com outro princípio, segundo ele, o da “efetividade mínima do sistema penal” (sic – princípio concebido pelo iluminismo judicial, muito provavelmente). Em outras palavras, ele afirmou que uma garantia estabelecida por uma norma constitucional deve ceder diante – pasmem leigos e especialistas – da necessidade de executar uma decisão judicial. Para ser mais claro. Se eu decido isso, deve ser cumprido, mesmo contra uma garantia constitucional, pois o que importa não é o sistema de direitos humanos, as que minha ordem seja cumprida. O lavajatismo, aqui desenhado a partir dessas características e exemplificado por essa opinião antijurídica, é uma forma de decisionismo despótico. É significativo que, em entrevista recente, já na qualidade de Ministro do Tribunal Superior Eleitoral, ao sugerir o adiamento das eleições municipais, tenha dito, em entrevista à imprensa não estar preocupado com a crise da democracia, mas com a pandemia. De fato, a partir de sua perspectiva, ele não pode enxergar ameaça à democracia. Interessante é que no mesmo julgamento do Habeas Corpus mencionado, A Ministra Rosa Weber, para sustentar a não atuação da norma constitucional da presunção de inocência, contra sua convicção, aplicou um princípio ou regra inexistente na Constituição, o do “colegiado” (sic), emprestado, de forma insólita, da doutrina alemã. O Judiciário, contudo, existe para garantir a aplicação da Constituição, julgar segundo a Constituição, e não para julgar a Constituição, escolhendo nela o que interessa e o que não interessa, muito menos julgar contra a Constituição. O Brasil tem uma longa tradição de declaração meramente formal de direitos. A Constituição de 1988 pretendia findar com essa hipocrisia constitucional, estabelecendo mecanismos de efetivação.

No âmbito das próprias operações que dão nome a essa faceta que dá sustentação ao projeto de poder, ainda é preciso salientar dois aspectos. O primeiro diz respeito ao modo como se deram processo, condenação e prisão do principal representante do projeto político que essa coalizão visa a eliminar da cena pública. Desde o julgamento do Mensalão – tantas vezes citado como precedente, no julgamento do Tríplex do Guarujá – a justiça penal brasileira abandonou a expressão “estreme de dúvidas” e passou a adotar “além de dúvida razoável”, emprestada da expressão inglesa “beyond reasonable doubt”. E foi essa expressão que levou à conclusão do julgamento do recurso da sentença condenatória do ex-presidente Lula, que foi celebrada como “técnica” (sic) pela imprensa, ou como “encantadora” (sic), pelo jurista carioca Joaquim Falcão, que, aliás, é defensor das teses, aqui criticadas, do ministro Barroso, a propósito da função do STF. A expressão, em verdade, é uma armadilha. Em inglês corresponde a uma doutrina, segundo a qual se deve condenar alguém se a prova demonstra que os atos se deram de uma determinada forma e não há como imaginar que pudessem ocorrer de outra forma. Quer dizer: existe prova de que ocorreram de um modo. E o julgador deve refletir se a mesma prova admite que os atos não poderiam ter ocorrido de outro modo. Como, no Brasil, a expressão foi tomada? Assim: não há prova definitiva de que os atos se tenham dado de uma forma, mas não se pode acreditar que tenham ocorrido de outra forma. Portanto, assim se aplica e desvirtua a doutrina americana: não há prova de que os atos se tenham dado desse modo, mas também não se consegue imaginar que tenham ocorrido de outro modo. Se aplicado o raciocínio brasileiro num julgamento americano, teríamos a absolvição e não a condenação, pois o raciocínio errôneo leva à conclusão de que a questão permanece “within reasonable doubt” e não “beyond”. Vou inventar um diálogo, para demonstrar a falácia da interpretação original lavajatistas. M e D discutem, pelo Telegram, se Luís apanhou a chave do apartamento. M constrói uma tese, sem fundamento na realidade, que lhe permite acreditar, e não demonstrar, que Luís ficou com a chave. D adere a essa crença, sem base nos fatos. Vejamos:

M. “Você acha que foi o Luís que apanhou a chave?”

D. “Não sei, ninguém viu, ele nunca foi visto com a chave, nem está com a chave”

M. “Mas ele queria muito aquela chave”

D. “Sim, ele me disse que queria a chave e chegou a tocar a chave, com jeito de que a desejava mesmo”

M. “Mas a chave está aqui, com o Paulo”

D. “Estou desconfiado de que o Paulo está guardando a chave para o Luís”

M. “Claro, dizem que Paulo deve favores ao Luís”

D. “Por quê?”

M. “Porque Maria e Clara disseram que o Paulo somente conseguiu o trabalho na empresa que o Luís dirigia por causa de Silvio e Pedro, que arrumaram um esquema para o Paulo trabalhar e ganhar um bom sustento”

D. “Mas o Luís sabia disso?”

M. “Não tinha como não saber”

D.” Então é isso. Essa chave que está com o Paulo é do Luís”

M e D: “Não podia ser de outro jeito”

A. “Mas cadê a prova?”

M, D, B, F, C e L e… Z: “Você duvida? Ingênuo”.

Ou seja, “beyond reasonable doubt” foi tomado e traduzido de modo conveniente para “está acima de qualquer prova,” a verdade da crença não necessita de prova, pois basta a crença, que se põe acima da prova, subvertendo não apenas uma garantia constitucional, mas toda uma tradição centenária de garantia de um processo público e justo. De prestar contas à sociedade de uma decisão. Aqui se reproduziu, em menor escala, a tese de que o STF estaria acima da Constituição, estendida a todo o Judiciário, que passa a fazer a lei, interpretando máximas que desvirtuam o sentido e a finalidade das normas jurídicas. A dúvida não mais protege aquele que é processado, mas sustenta a crença de que é culpado. Isso representa, igualmente, o fato de o direito estrangeiro imiscuir-se na aplicação do sistema jurídico, sem que um juízo crítico discrimine o que é cabível ou não, e como se deve dar essa influência externa, quais são as consequências de se adotar uma perspectiva da doutrina ou da jurisprudência estrangeiras.

Quanto ao segundo aspecto, louva-se representantes do lavajatismo por terem estudado ou tido lições por pouco ou algum tempo em instituições norte-americanas. Esse estágio em instituições, universitárias ou não, dos Estados Unidos, tem-se tornado comum. Em geral, são escritórios jurídicos que enviam seus profissionais para realizarem estudos. Os cursos de pequena duração e os LLM são especializações, em geral, bem organizadas, que passam informações importantes sobre o moco de atuar e os m´todos de aplicação do direito norte-americano, além de fascinarem pela degustação breve da cultura jurídica da common law, como praticada nesse ou naquele Estado daquele País. Nenhum problema haveria, como não há, se o profissional que se submete a tal estágio possui base sólida de conhecimento ou de experiência no direito e na cultura jurídica de seu próprio País, ou daquele em que, findo o programa, irá exercer sua atividade. Na maioria dos casos, contudo, não é isso que acontece, pois os fundamentos do ensino jurídico no Brasil não são seguros o suficiente, para garantir essa assimilação mais crítica e inteligente. Claro, para a área privada, a importância do modo de assimilação tem menor importância, pois o que é decisivo é prestar aos clientes, em geral corporações nacionais, internacionais e transnacionais, que necessitam de especialização no idioma inglês e na técnica do direito norte-americano, para poderem desenvolver suas atividades em vários Países. Tudo se dá como se esses especialistas se tornassem os representantes ou executores da cultura jurídica dominante nos demais Países. Portanto quanto mais desvinculadas da cultura local do País de origem a preparação e a mentalidade do profissional, melhor. Ainda mais se souber submeter a análise do direito local aos parâmetros apreendidos nesses cursos que têm uma feição técnica e não de reflexão. No caso, contudo, dos juristas que exercem uma função de Estado, a situação se torna altamente preocupante. Sobretudo se esse treinamento técnico se der, como ocorre na imensa maioria dos casos, nos cursos de um mês ou nos céleres LLM, e o profissional não tem formação suficiente para adaptar o que aprendeu, ou melhor, foi treinado a fazer, sem reflexão embasada em formação jurídica de bom nível ou cultural de nível, ao menos, razoável. O resultado é aplicar a doutrina estrangeira, sem dar importância ao sistema em que está sendo aplicada. Adotar mesmo uma interpretação insólita dos conceitos e institutos estrangeiros – recebidos de modo passivo e incapaz de gerar, pela ausência de conhecimento e de experiência cultural suficientes, e mesmo de um sistema de correção adequado – sem controle nem fiscalização.

É o que ocorreu no lavajatismo, com a agravante de, em julgamentos de processamento demasiadamente céleres, terem levado, contra a Constituição, à prisão, tornada espetáculo de pré-candidato à eleição de 2014, no curso de formação do processo eleitoral, quando esse candidato era o principal opositor da opção bolsonarista, e possuía, em todas as pesquisas de intenção de voto, número superior aos de todos os demais candidatos somados – o que permaneceu, mesmo após a prisão inconstitucional, enquanto o nome do candidato foi submetido como opção nas pesquisas. Deu-se, ainda, a prisão, quando o candidato percorria o País em caravana, com imenso apoio popular, e foi atacado por militantes da futura coalizão de governo, tendo um dos veículos de sua caravana sido alvo de disparos de armas de fogo. Na noite da prisão, conhecido proprietário de casa noturna de exploração de prostituição em São Paulo, realizou, como prometera, uma festa grotesca em lugar público, com a oferta gratuita de bebida. Fotografias flagraram a apresentação de corpos nus de mulheres, em uma espécie de palco decorado, no qual eram exibidas fotografias do ex-juiz Moro e da então presidente do STF, ministra Carmen Lúcia. A prisão se deu após o julgamento de improcedência de habeas-corpus pelo STF, impetrado em favor do candidato, por maioria de votos, em que o voto de desempate se embasou no princípio do colegiado.  Logo antes do julgamento, houve declarações públicas de militares, que depois vieram a compor o governo da coalizão de forças vencedoras, no sentido de que não admitiriam uma decisão favorável ao candidato condenado e preso no curso do processo da eleição. Houve, no mesmo sentido, manifestação de representantes de profissões jurídicas estatais. E se realizou a greve de fome de um dos membros do lavajatismo. Durante o julgamento, apenas o Ministro Celso de Mello criticou tais formas de manifestação, sem que os demais Ministros e Ministras, inclusive a Presidente do Tribunal, tivessem feito referência a elas, sequer, aparentemente, endossado a declaração veemente do Decano.

3.c. Militarismo

O militarismo é uma herança da ditadura, e da incapacidade de os constituintes de 1987/88 de lidarem com os instrumentos jurídicos à sua disposição para realizar não apenas uma transição branda, mas sobretudo uma ruptura com as práticas, a cultura e os mecanismos de intervenção constante dos militares nos aspectos da vida social e política. É também uma permanente marca da violência que caracteriza as relações sociais, e da impossibilidade de o exercício do poder, nas várias esferas da Federação, haver-se sem a tutela da polícia e da força que representa o pretendido monopólio do uso da violência, que, sem mecanismos de controle, torna-se impregnado de ilegitimidade e agente de mediação entre a realidade e a informação, de constante atuação,  repressão e interpretação da realidade. O espaço público e mesmo privado brasileiro está plenamente ocupado pelo militarismo. A polícia está onde nenhum outro setor ou serviço do Estado está. E está em todos os lugares de direção civil do Estado, nos gabinetes de Secretários, Ministros, Prefeitos, Vereadores, Deputados, Governadores, Presidente e Congressistas, assim como no Poder Judiciário. E onde a polícia aparentemente não está, aparece seu outro lado, por exemplo, na liderança de guardas municipais, no assessoramento de autoridades e de políticas públicas, e o lado mais obscuro da participação nos serviços privados de segurança e nas milícias. Onde a polícia aparentemente não está para tomar conta do povo, está a milícia, que faz esse papel em relação direta, não mediada pela esfera pública, com quem detém o poder econômico local. Isso não é resultado da índole, mas do modo como a Constituição federal tratou da segurança pública como segurança do Estado e não do povo, ao estabelecer o estatuto jurídico das polícias, e ao deixar permanecer a atividade de prevenção nas mãos da polícia que chamou de reserva das Forças Armadas. Disso resultam os altos índices de violência estatal no Brasil. Uma reforma profunda na concepção de segurança, na concepção do serviço público da segurança e nas polícias é imprescindível para poder continuar a construir a democracia no Brasil, nos moldes dos valores estabelecidos nos primeiros dispositivos da Constituição federal.

3.d. Redesocialismo

A presença marcante das redes sociais no Mundo contemporâneo trouxe inúmeros benefícios. Mas, para o que nos interessa, aqui, potencializou a construção de redes de associação contrárias e mesmo de franca oposição à política. Recentemente, Deputada Federal eleita na onda e no partido do bolsonarismo, Carla Zambelli, desafiou o Presidente da Câmara dos Deputados a comparar as curtidas nas redes sociais recebidas por ele com as recebidas por ela, para ver quem possuiria maior aprovação popular. Ou seja, o princípio da representação política foi simplesmente ignorado ou desprezado, passando os posts das redes a valer mais do que os votos. A mesma lógica está naqueles que pensam que a política e as instituições tradicionais de representação política não são mais necessárias, pois o smartphone permite que cada um faça tudo e tome as decisões de que necessita para a vida. A questão mais grave não reside nesses dois exemplos, contudo. Ela está na capacidade e na convicção de que o universo de informações que circula nas redes sociais pode constituir uma verdade em si, ou que se pode construir uma verdade válida apenas pelo efeito de circular nas redes sociais. A virtualidade da circulação confirmaria a veracidade de qualquer afirmação ou argumento. As fake news superam a velha prática da fofoca. A fofoca é uma forma perversa de sociabilidade. Muito embora corrosiva a informação transmitida pelo meio tradicional da troca de mexericos boca a boca, ela permite, no limite a contraposição da verdade, pelo que toda fofoca, muito embora agrade e excite o transmissor e o receptor da informação, é sempre transmitida e recebida sob um estado de suspensão: a advertência “não se sabe, mas estão dizendo,” ou, mais condescendente, “não sei se é verdade, mas veja o que todo mundo está comentando.” Na circulação de uma fake news, inexiste esse caveat. A informação falsa é transmitida não à guisa de fofocar, mas de informar falsamente. Ela aparece travestida de notícia verdadeira. Maquilada, coberta pela aparência de verdadeira. Assim, a fake news é a crença no universo virtual levada ao paroxismo.

3.e. Bolsonarismo

Finalmente, o bolsonarismo é uma nova versão do caudilhismo latino-americano e da feitoria colonial. Não é uma forma de despotismo, de ditadura, nem de tirania. A melhor aproximação para a figura encarnada no atual residente do Palácio da Alvorada é a da feitoria. Ela guarda com o despotismo a tentativa de assimilação do espaço público com o espaço doméstico, ou de redução da política ao modo de vida privado, em que o chefe se comporta como quer e deseja, lidando com escravos e inferiores. Guarda com a ditadura o desejo firme e consciente de destruir os vínculos sociais entre os cidadãos para os substituir por vínculos de mando e obediência absolutos entre o comandante e subordinados. Guarda com a tirania a busca da tomada de medidas excepcionais sob o pretexto de ligação com o interesse do povo ou de uma parcela dele. Mas ele é, em verdade, uma atividade de feitoria, baseada nos três pês da velha administração colonial dos engenhos brasileiros: “pano, pão e pau.” O caudilho exerce uma liderança vinculada a setores mais conservadores ou mesmo reacionários da sociedade. Ele exerce o poder visando a atender ao interesse dos membros desses setores e em detrimento da maioria do povo. Sua liderança, pois, não é independente nem autônoma. Ele está submetido ao comando coletivo desse agrupamento minoritário de que é expressão visível. De maneira um pouco mais característica, o feitor é o fazedor, o executor, o administrador de bens alheios. Ele é o lado nu e cru da liderança, o que grita, ameaça, age com violência. Expressa o lado obscuro do poder. Ele precisa dar conta do serviço daqueles que estão submetidos à sua ordem, por isso, nada de bom ele pode oferecer aos subordinados. Apenas o mínimo necessário para sobreviver e servir: a vestimenta e o alimento. E a mão armada com o instrumento da violência, o bastão. Para a ditadura, o despotismo e a tirania há necessidade da soberania, que não reconhece nenhum poder igual ou superior a ela. Para o caudilho e o feitor, o exercício de poder é limitado por um poder superior.

O bolsonarismo se vincula ao chamado antiglobalismo, nas relações exteriores. O globalismo, como ente imaginário no entendimento desse seu antípoda, seria uma prática das relações internacionais estabelecida no seio do multilateralismo, portanto, na concepção de que o espaço de internacionalidade seria administrável por meio de foros de decisão comum e negociada, Mais ainda, por meio da formulação de razões e interesses internacionais e da apreensão de valores válidos universalmente, como os direitos humanos, por exemplo. O antiglobalismo, ao negar tal figuração do espaço internacional, passa a conceber esse universo como correspondendo a uma arena de poder desigualmente distribuído, em que há conflito entre potências de forças desiguais. Portanto, para agir nesse sistema é necessário avaliar quem são os atores dotados de maior capacidade de ação e influência, seja do ponto de vista econômico seja cultural, seja militar. Feita essa identificação, então nada mais resta do que fazer uma opção de aliança, em condições inferiores, claro, com aquele que é mais poderoso e que pode garantir um espaço seguro de atuação mais restrita para o menos poderoso e aliado. O aliado é subordinado ou súdito do mais forte, agindo para proteger o interesse desse, na esperança de alcançar a segurança de sua guarda ou anteparo. Ora, o regime político do Estado que se submete dessa forma não pode ser democrático, mas não chega a ser despótico. Ele é mero caudilhismo e feitoria, no interesse daquele a quem se submete.

Na aliança entre bolsonarismo e lavajatismo, este último antecedeu e preparou o caminho para aquele, ao ter estabelecido como foco de atuação jurídica não apenas a principal estatal brasileira, a Petrobrás, como igualmente as grandes empreiteiras. Ao agir contra administradores acusados de corrupção, nada fez para possibilitar a separação entre má administração e empresa, negando importante princípio da ciência da insolvência empresarial. De se sublinhar que isso ocorreu exatamente no momento em que houve a descoberta de jazidas de petróleo na camada pré-sal.

Além disso, o bolsonarismo já no início de seu governo buscou quebrar laços com antigas associações regionais americanas, latino-americanas e sul-americanas, enfraquecendo a capacidade de negociação dos Estados da região. A ligação com interesses do agronegócio exportador de commodities e matérias-primas, em detrimento do desenvolvimento humano, industrial, cultural, educacional e tecnológico. O fim de políticas públicas e de políticas de proteção a indígenas, a flexibilização do controle de armamentos, de proteção de bens culturais, do meio ambiente, da Amazônia, especificamente, tudo isso determina a conclusão de que o intento era o de abrir mão de soberania e não de preservá-la ou conquistá-la.

O aspecto de feitoria ainda mais se agudiza quando se pensa nas reformas supressoras de direitos e garantias trabalhistas e previdenciários, duas duras reformas impostas logo no início do governo Temer e do governo Bolsonaro. Essa supressão não tem sabor nem finalidade modernizadora, mas nostálgica de um tempo em que bastava ao trabalhador pano, pão e pau.

Ao combater a presença da China, ao atacar a cultura e as religiões e bens culturais afro, assim como ao apontar adesão a Israel, em detrimento de uma posição imparcial e mais positiva na solução dos conflitos do Oriente Médio, o bolsonarismo preme o botão do evangelicalismo.

Essa constituição da política externa do bolsonarismo, vinculada a esses princípios e às demais facetas que referi remete aos conceitos e às práticas do imperialismo e do totalitarismo, em certo sentido. Da mesma forma à questão do autoritarismo no Brasil. O Brasil tem uma característica muito interessante, que é a persistência de utilização de categorias sem suporte social. Por exemplo, o de cidadão destituído de cidadania, o de abolição da escravatura sem que se deem garantias de liberdade, o de declaração sem eficácia de direitos, o de instituição republicana sem rompimento com práticas e institutos não republicanos, o de dar cabo de ditaduras sem se desvincular com instituições e mecanismos estabelecidos por elas.

O bolsonarismo caracteriza-se pelo uso constante do que posso chamar de tecnologia colonial ou colonialismo. Ele infringe, numa antipolítica internacional, de ordem colonialista, o princípio constitucional da soberania. Mas sobretudo ele nega a existência do Brasil como Estado soberano. O que ele busca na cena internacional é o colonizador e não relações de ordem comercial ou públicas. Na órbita interna, a sua postura é de levar a cabo uma empreitada colonial, de exploração do território e opressão da população, da qual retira o caráter de povo. Daí a razão pela qual há carta branca para destruição ambiental, exploração extensiva de áreas, aliança com agronegócio, retirada de direitos e garantias trabalhistas e previdenciários, flexibilização de fiscalização ambiental e trabalhista, de modo a alterar a posição relativamente à existência de mão de obra escravizada, abandono absoluto de políticas de proteção e de promoção relativas aos povos originários ou indígenas, franquia para a continuidade e o crescimento dos homicídios de indígenas e suas lideranças, assim como dos defensores do meio ambiente, além do pouco caso e de uma lógica de eliminação no que diz respeito à pandemia. Sobrevive quem pode e do jeito que puder, pois a população é descartável, sobretudo aquela que é vista como inimiga, e que constitui a maioria do povo brasileiro, que é negra. Há desprezo e criminalização das estéticas de periferia, às políticas e manifestações de gênero. Um moralismo de tipo senhor de engenho, em que o corpo humano feminino é visto como objeto. O corpo, em geral é pecaminoso e seus movimentos devem ser contidos, seus desejos, reprimidos, num amoldamento a uma ética catequizadora, no retorno da conversão, ao ponto em que até a homossexualidade é vista como doença passível de tratamento e de cura, por meios quase-religiosos.[5] O seu representante principal, que lhe concede o nome, não perdeu, em nenhum momento de sua vida político-profissional, oportunidade de elogiar e defender a ditadura, de tomar como ídolos os sucessivos presidentes que, em seu curso, exerceram a função de ditadores, e torturadores reconhecidos e assim apontados pela Comissão Nacional da Verdade, ainda detratando vítimas reconhecidas de atos de tortura, sequestro ou desaparecimento forçado, e homicídio por ação das forças estatais no período ditatorial. Ele guarda, pois, uma índole destrutiva, de desprezo pela vida e pela dignidade humana.

 

4. A Marcha e a Síncope

Após ter caracterizado essas forças como categorias que permitem a compreensão de uma certa prática histórica, gostaria de trabalhar um pouco com o outro lado dessa dicotomia. O outro tempo. Eu gostaria de empregar uma metáfora para construir essa caracterização antagônica de peso antidemocrático e leveza democrática. Encontro essa metáfora na arte, em geral, e na música, em particular. Vou chamar o peso antidemocrático das características que acabei de descrever, do lado da manifestação, segundo minha visão, de marcha, enquanto as características democráticas da rebeldia vou chamar de samba.

Uma das epígrafes do presente artigo corresponde a trecho da segunda música gravada por Noel Rosa, em 1930. Um dos compositores brasileiros responsáveis pelo desenvolvimento do samba, música de características afro-europeias, como muitas que surgem no Brasil na passagem do século XIX para o XX, apartando-o do maxixe, que era uma evolução do lundu, surgido no século XVIII, mas que também possuía a mesma característica da mestiçagem. Eram expressões lúdicas da diáspora africana, que se apresentavam como variações melódicas de estilos dominantes na sociedade, de origem europeia. Essas variações operavam verdadeiros deslocamentos melódicos, mediante o uso em profusão de síncopes. A síncope, com efeito, é uma característica de muitas músicas ou estilos musicais, não apenas no Brasil, mas em toda a América escravocrata, que têm na origem essa tentativa de modificar um som dominante de matriz europeia pela introdução de deslocamentos mais próximos da música popular, seja de matriz europeia, seja de origem africana. Música popular que emprega recursos tanto do modalismo quanto do tonalismo, sem a preocupação formal da música de elite ou de erudição. Esses deslocamentos ou desdobramentos podem ser chamados de deslocamentos de resistência, de subversão ou de sublevação cultural. Esses estilos musicais e sua expressão, em danças consideradas sensuais e indignas pelas classes dominantes, eram malvistos e proibidos, muito embora se expandissem de forma contínua, até porque acabavam atraindo membros das próprias classes dominantes, devido à qualidade da música e a seu encantamento lúdico, enfrentando todo tipo de censura e perseguição. Músicas de crítica social e de diversão, acabaram se tornando símbolos dos próprios Países que as proibiram no início, mesmo funcionando como agentes de influência e, no limite, até de colonização cultural de outros povos, o que não deixa de ser paradoxal.

A síncope ou síncopa é um artifício de composição musical, mediante o qual se opera um deslocamento do padrão rítmico do tempo forte para o tempo fraco, pelo prolongamento desse último sobre aquele. É ela que concede ao ritmo o seu aspecto de dobra e desdobramento curvilíneos, de idas e vindas, de requebro, de dança, enfim. Diferentemente da marcha, em que os tempos são estabelecidos de modo menos dinâmico, fixos, para provocar avanços coletivos disciplinados, a música sincopada é mais apta a permitir a expressão individual ou coletiva mais livre das amarras da contagem rígida dos tempos nos compassos, no sentido de liberar a improvisação e os movimentos soltos.

Nisso há uma competição interessante entre a marcha e o samba (tomado aqui como tipo da composição sincopada). Tanto uma quanto outra tendem a envolver o seu público. A marcha, pela repetição constante das batidas de tempo forte, impulsiona o ouvinte ou o espectador do curso de um desfile militar, por excelência, a sentir o avanço, a afirmação de uma força que incentiva a um combate e enfrenta a formação oponente, segundo a tática estipulada pelo comandante. Ela é empregada não apenas no campo de batalha, claro, mas também na exibição de forças armadas ou de grupos belicosos, conformando o espetáculo marcial, que gera o sentimento de pertencimento coletivo e o direcionamento em um único sentido, que é o de combate do inimigo, do adversário. Incita a um movimento não relaxado dos corpos, que se enrijecem porque estão imbuídos de que o objetivo estabelecido pela tática do líder militar corresponde ao único objetivo possível, que não há razão para olhar para trás nem para os lados, mas que tudo impele a avançar, atemorizar o oponente e lutar, para que o coletivo a que se pertence saia vitorioso do campo. A marcha marca o compasso dessa vibração coletiva. Quem vê o espetáculo marcial sente esse mesmo vigor da formação que desfaz as individualidades e faz com que todos os corações pulsem no mesmo ritmo, sentindo-se parte dessa evolução conjunta.

A música de dança também tende a gerar esse sentimento de pertencimento ao coletivo. Isso porque tradicionalmente, ela segue regras também rigorosas quanto à disposição dos corpos, seus gestos e movimentos. Ela se faz como um jogo, que aproxima as pessoas para seguir determinadas normas de convivência importantes para a comunidade, sua existência e reprodução. Há uma estrutura que estabelece e explica as ligações entre os participantes desse espetáculo lúdico. Para gerar esse impulso para dançar usam-se estruturas de compasso, construções em determinados tempos, apropriados a cada dança, figuras musicais que permitem o envolvimento e a atuação.

A síncope tem uma história longa, de tempestades e contratempestades, na construção da música ocidental. Ela surge, ou melhor, seu uso aparece com o sentimento de que opera algo de irregular no andamento musical. Tanto assim é que até sua consolidação como artifício sério e bem fundamentado, houve detrações de toda ordem, com a consideração de arritmia, por exemplo, hipônimo de erro, falha de ordem técnica, que pode ser avaliada como incapacidade artística. Quando Stravinski descreveu seu modo de compor, como se sabe, plenamente marcado pela originalidade rítmica, do domínio do tempo, fez uma descrição interessante sobre “acentuar as notas sincopadas e a começar o fraseado antes…”, e observou: “as orquestras alemãs são incapazes de fazê-lo, tanto quanto os japoneses de pronunciar o ‘l’.” Não estou endossando esse juízo, claro, mas apenas tentando apontar, por meio desse exemplo, que a arte da síncope guarda efetivamente um segredo (para além mesmo da técnica do contratempo), que introduz um desconforto ao ouvido e ao gesto de quem domina uma arte prevalecente e consolidada. Sem desejar, agora, aprofundar a análise no âmbito da tecnologia musical, que me causaria embaraços, confesso, o que desejo estabelecer é a originalidade dos compositores populares de encontrar no emprego da síncope um modo de alterar os ritmos herdados da colonização, ao amalgamá-los com ritmos oriundos da manifestações populares de divertimento e ação estético-política. Isso tudo sem especificar quem influenciou e quem foi influenciado, como indicou o gênio de Mario de Andrade. A forma sincopada permitiu esse desvio, na criação da genial música de comunicação de duas vias, de ida e volta, de dobra e desdobramento de influências e invenções. Assim, o maxixe e o samba, no Brasil, o ragtime e o jazz, nos Estados Unidos e tantas outras formas que se fundiram e difundiram nas colônias e ex-colônias.

“Com que roupa” foi composta pelo jovem Noel, numa época em que as paródias do Hino Nacional brasileiro eram frequentes. Estamos no início dos anos trinta, na então Capital federal. Já haviam avançado as vanguardas artísticas, sobretudo na São Paulo de ritmo alucinado, da industrialização nascente e acelerada, da presença dos imigrantes, da antropofagia, da elite que será derrotada pela revolução e na guerra civil que ocorreria dois anos depois, pós-tenentismo, na passagem de regime da República Velha para a Nova, passando pelo Estado Novo, a ditadura Vargas, e assim por diante.

O compositor queria que sua música fosse uma metáfora de um “Brasil de tanga, pobre e maltrapilho,” em contradição ao tom ufanista do Hino. Samba contra marcha, síncope como contramarcha. Noel constrói – não sozinho, pois seu conhecimento musical não lhe permitiu, na época, conscientemente empreender esse desvio, talvez com a ajuda de Homero Dornelas – a melodia de “Com que roupa” como um espelho de Hino Nacional. Basta cantarolar os primeiros versos do samba e da marcha para perceber a semelhança e a alteração de cadência:

“Ouviram do Ipiranga às margens plácidas
De um povo heróico o brado retumbante,
E o sol da liberdade, em raios fúlgidos,
Brilhou no céu da Pátria nesse instante,
Se o penhor dessa igualdade
Conseguimos conquistar com braço forte,
Em teu seio, ó, Liberdade,
Desafia o nosso peito a própria morte!
Ó Pátria amada, Idolatrada, Salve! Salve!
Brasil, um sonho intenso, um raio vívido,
De amor e de esperança à terra desce,
Se em teu formoso céu, risonho e límpido,
A imagem do Cruzeiro resplandece.
Gigante pela própria natureza,
És belo, és forte, impávido colosso,
E o teu futuro espelha essa grandeza.
Terra adorada, Entre outras mil,
És tu, Brasil, Ó Pátria amada!
Dos filhos deste solo és mãe gentil,
Pátria amada, Brasil!.”
“Agora vou mudar minha conduta
Eu vou pra luta pois eu quero me aprumar
Vou tratar você com a força bruta
Pra poder me reabilitar
Pois esta vida não está sopa (…)
Agora eu não ando mais fagueiro
Pois o dinheiro não é fácil de ganhar
Mesmo eu sendo um cabra trapaceiro
Não consigo ter nem pra gastar
Eu já corri de vento em popa (…)
Eu hoje estou pulando como sapo
Pra ver se escapo desta praga de urubu
Já estou coberto de farrapo
Eu vou acabar ficando nu
Meu terno já virou estopa
E eu nem sei mais com que roupa
Com que roupa que eu vou
Pro samba que você me convidou?
Com que roupa que eu vou
Pro samba que você me convidou”

Nos demais versos, o que conta é a ironia econômica, social e política. As imagens grandiosas da marcha transmudam-se no samba em cisões de farrapos, de estopa, ou a quase nudez de quem tem de se virar e, e mesmo à custa de trapaças não consegue ter nem para gastar. Com que roupa ir ao samba é a indagação, que é festa no espaço aparentemente particular, para a qual alguém convida. Já o desfile exige uma roupa mais arrumada, ele se dá no espaço público, sem convite, mas quem é que pode estar lá vestido para acompanhar? A ironia, pois, mostra a situação de inversão dos domínios público e privado, entre a realidade oficial anunciada publicamente, como uma ocupação, um apossamento por poucos do espaço que deveria ou poderia ser de todos, e a realidade cochichada no espaço coletivo reservado, em que a imaginação e a crítica se expressam com relativa liberdade. São essas duas formas de individuação estética que vão se apresentar como movimento nas ruas de 2013. A marcha e o samba vão ao passeio público lado a lado, sem se enfrentar. A reação é de o braço armado do Hino entrar em cena, para expulsar novamente o samba e reordenar a marcha.

Mas é preciso acrescentar mais um elemento. Não é apenas a marcha militar e seu contar marcial que vão expressos do lado ou da perspectiva da manifestação. Há também o religioso da procissão que vai se impor. Seja para carregar a imagem do ídolo, seja para demonizar a imagem do inimigo, representado pelos bonecos infláveis. É uma estética religiosa que se apõe, no início, e, depois, opõe-se, ao caminhar dos corpos, dos saltos, dos lançamentos de objetos, da dança do lado ou sob a perspectiva da rebeldia. Ela é religiosa no entusiasmo da crença, que inflama a uma militância. Esse caráter religioso, sempre associado ao cristianismo, de modo evangelical ou não, é que vai implicar a associação com o militarismo. A melodia que é entoada no cortejo religioso é de caráter da marcha, igualmente. E implica uma distinção entre o crente e o não-crente, que é da natureza da exclusão, pela diferenciação que inferioriza o outro, o diferente. O crente é milites, enquanto o não crente é paganus, o rústico, o tosco, o camponês, o civil de comportamento indisciplinado, politeísta e tíbio de moral. O milites é monoteísta, monotemático, fiel, ordenado, ardoroso, aguerrido. Militarismo e evangelicalismo marcham, isto é, deixam suas marcas no asfalto sujo, ocupado antes pelo povo sem fé, sem lei e sem rei. Convertem o espaço público em algo de seu, mais puro e fervoroso. Isso explica a crescente agressividade dos militantes do bolsonarismo e as ofensas que dirigem, sem temor. Eles vivem uma batalha contra a impureza do mundo. Vieram para desentortá-lo, mostrar-lhe o que é direito. Nada de politeísmos e pluralismos, apenas a dualidade bem disciplinada de rosa e azul.

Tudo isso é a força incansável dessas cinco facetas dos que, a partir da tomada das ruas e dos estádios, assumiram o poder, em meio a uma eleição em que o que processou e prendeu o adversário torna-se ministro, e em que as redes sociais substituíram  verdade e voto como formas de comunicação, realização e expressão políticas. Força antidemocrática porque se opõe ao povo e ao poder do povo. O povo que não é direito nem de bem deve ser excluído e uma nova ordem jurídica deve ser imposta, “prendendo todos esses vagabundos.” Essa gramática é a da desterritorialização, da ocupação dos territórios comuns, empurrando o povo para áreas restritas, periféricas. Essa marginalização, periferialização estabeleceu-se por meio da interpretação-repressão do movimento, que obrigou a faceta da rebeldia a se afastar do espaço público por meio do uso intensivo da violência policial.

4.a. O Regime Anticonstitucional

O regime que forma é um regime anticonstitucional. É uma militância de bolsonarismo, lavajatismo, evangelicalismo, militarismo e redesocialismo contra o Estado Democrático de Direito, contra seus pilares consistentes no império da lei, na democracia e nos direitos humanos. Contra seus valores, consistentes na liberdade, na igualdade e na solidariedade. Contra seus princípios, consistentes na soberania, na cidadania, na dignidade da pessoa humana, no trabalho, na livre iniciativa, no pluralismo político. Contra seus objetivos de construção de uma sociedade livre e solidária, erradicada da pobreza e da marginalização, integrada regionalmente, sem preconceitos, desenvolvida para o bem de todos. Contra sua determinação histórica de independência nacional, sob a prevalência dos direitos humanos, respeitando a autodeterminação dos povos, sob o compromisso da não-intervenção, da consideração da igualdade entre os Estados, da defesa da paz, da solução pacífica dos conflitos, do repúdio repúdio ao terrorismo e ao racismo, da cooperação entre os povos para o progresso da humanidade, da concessão de asilo político, e da busca de integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações. Cada uma dessas normas constitucionais é quotidianamente desrespeitada por cada uma dessas perspectivas ou concepções de mundo e do espaço do direito e da política.

 

5. A rebeldia ou o Povo

Dito isso, é necessário, para finalizar minha contribuição, no presente artigo, caracterizar o lado da rebeldia ou da leveza e do samba, para, na conclusão, explicar qual o regime político que o lado da manifestação deseja impor e a razão de não lograr obter seu intento, especificamente porque não há coordenação possível entre as práticas pretendidas de governo e a estrutura que, efetivamente, corresponde aos governados, suas práticas e seu discurso.

Afirmei, no início, que o movimento de junho de 2013 representou uma mudança radical da política. E que a política somente se concebe e se compreende por meio da análise das práticas e das práticas discursivas, em busca de seu significado, de sua explicação estrutural. Portanto, não há como compreender a política pensando-se apenas no poder, muito menos no modo como é exercido pelo seu titular do momento. É preciso entender a relação de governantes e governados, vencedores e vencidos aparentes de disputas políticas, de eleições, de golpes, de modos, enfim, de tomada do controle político em um determinado tempo.

É de Maquiavel a convicção de que o conflito faz bem à República. Uma sociedade bem ordenada nasce dos bons exemplos de virtude, que são o resultado da boa educação, que, por sua vez, advém de boas leis. Mas as boas leis resultam do conflito entre os grandes ou poderosos e o povo. Com efeito, em todos os governos haveria uma dissensão entre o interesse daqueles e desses, e todas as leis “para proteger a liberdade” nascem dessa oposição. O desejo que tem o povo de ser livre, diz o Secretário Florentino, raramente prejudica a liberdade, pois nasce do temos de ser oprimido. O povo pode cometer erros, mas os debates em praça pública servem para corrigi-lo. E mesmo o povo mergulhado em ignorância pode reconhecer a verdade, indicada por alguém de sua confiança. As leis, portanto, não são o resultado de imposição de poucos sobre muitos, nem de muitos sobre poucos, mas o produto do embate entre governantes e governados. É da sabedoria do curso republicano manter sempre o conflito aberto. Quando um dos lados derrota o outro e assume o poder sem contestação, sem resistência, sem permanência da luta política, então o regime se perde, desfaz-se o liame que o configura como República. Para entender esse regime e o modo particular como ele se apresenta em um determinado tempo é necessário entender a natureza desse conflito, ao compreender quem forma esses dois lados, pois eles vivem de alimentar constantemente o conflito que os divide e reúne, na sociedade política.

Essa contraposição dinâmica de dois protagonistas, que caracteriza o pensamento sobre a cena política tem uma longa tradição. Marx vai retomar essa imagem, ao dizer que o móvel da história é a oposição de classes, em pares, celebrando, assim, a dialética hegeliana: guerra ininterrupta, ora franca, ora reprimida, entre opressores e oprimidos, até que uma transformação suceda e leve à extinção dos dois antagonistas, chamando à arena novos candidatos.

Os rebeldes de 2013 voltaram à cena em 2016 – em movimento paralelo aos manifestantes, que retornaram, também em 2016, para prosseguir sua pauta e exigir o impeachment – , no movimento dos chamados secundaristas, de ocupação das escolas públicas e reivindicação de ensino e educação de verdade.[6] Aqui, os slogans perpetuam, de modo criativo, a rebeldia das ruas: “Criança que brinca e que luta”, “Ocupar a escola para subir em Árvores”, “Ocupemos o Presente para não invadirem o Futuro”, “Sair da Cadeira e Lutar”, “Dar Corpo ao que se Sente”, “Um Professor Vivo acorda outros Corpos”, “Ocupo minha Beleza”, “Não é só pela Merenda”, “Ocupo pela Comida Digna, Fresca e Colorida”, “Lutar, Criar!”, “Ocupo pra Ouvir e Ser Ouvido, Ver e ser Visto”, “Ocupo para Existir”, “Ocupo para Afrontar a Ausência de Direitos”, “Ocupo o Mundo”, “Ocupo para Abrir a Escola Pro Mundo”, “Ocupo pela Amizade contra a Concorrência.” Os estudantes ocupam as Escolas, mudam a disposição das carteiras em sala de aula, formam círculos. Levam as cadeiras para o pátio e formam outras rodas para estudar e discutir o que aprendem e seu futuro, ampliando a sala. Percorrem a escola com liberdade, veem do que se forja. Sobem a laje da Escola e olham para seu bairro, inserindo a escola em suas vidas. Descobrem a verdade do ensino e a verdadeira educação. Formam barricadas para evitar a invasão policial. No final, apanham as carteiras, resumem o que aprenderam e ensinaram em cartazes, e saem à rua, disfarçados de estudantes, para comunicaram o que viram e envolver a escola no mundo e trazer o mundo para a escola.

Esse foi o lado rebelde de 2013, que se prolongava nessas ocupações. Que levaram um documento e foram ouvidas em audiência pública pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Deram um salto dos bairros para o mundo. Emiti um parecer à mesma Comissão IDH, entregando-o pessoalmente ao então Comissário, em Washington, em dezembro de 2016, ressaltando os aspectos jurídicos do movimento estudantil, plenamente favoráveis ao que fizeram e ao que pretendiam, lamentavelmente interrompido pela invasão policial e retirada forçada determinada pelos Governadores dos Estados em que as escolas foram ocupadas e se transformaram, por pouco tempo, em mecanismos e corpos de ensino reais.

O que explica esse movimento rebelde sobre o aspecto da rebeldia de 2013 é a mudança radical na constituição do povo brasileiro, construída com enormes dificuldades e obstáculos no curso da democracia instaurada em 1988, com a nova Constituição. Sociedade e direito mudaram-se reciprocamente nesse período. O que a Constituição chamava de povo, em 1988, não corresponde mais ao que hoje o povo se faz. Primeiro, houve uma expansão enorme dos movimentos sociais, que adquiriram uma conformação fragmentária, mais extensa na distribuição de diferenças, mais profunda na exploração de identidades. A extensão das diversidades e o aprofundamento das identidades dificultaram, naturalmente, a comunicação entre os vários corpos intermediários fragmentados. Mas esses dois aspectos seguiram seu curso, seja por vocação de uma juventude que não viveu as agruras do período ditatorial, portanto tinha e tem o direito de forjar um modo de vida com menos rancor e menos culpa; seja porque cada geração tem o direito de forjar suas raízes, buscar no passado aquilo que é relevante para a sua formação, construir as pontes que considera necessárias para conectar suas vidas a seus antepassados por eleição. Mas essa nova geração despertou, por meios alternativos ou não, deficientes ou não, de educação, para o fato de que, assim como as gerações precedentes, não tem acesso ao espaço público, não tem meios de alcançar o que sonha, se não fizer ocupar aquilo que se chama de público mas não guarda essa função na realidade. Assim como o tema era o transporte, em 2013, agora, em 2016, é a educação. E, muito provavelmente, serão a saúde, a vida, o trabalho e a cidade os temas de 2020/2021/2022, quando a quarentena terminar, e as atividades tiverem de voltar ao normal da disputa entre os centros e as periferias, em mais um tempo de paz, de consensos artificiais.

Esse povo de 32 anos da Constituição expressou-se por meio de coletivos, por meio de múltiplas culturas e estéticas de periferia. Tematizou a violência a que assiste todos os dias, a desigualdade. Italo Calvino disse, à véspera do século XXI, que uma das características do novo milênio seria a leveza, que se contrapõe ao peso da vida. Georges Didi-Huberman, em 2016, denominou de soulèvements (sublevações) os movimentos de rebeldia, na arte e na política, retratados e expostos na exposição no Jeu de Paume, que seguiu caminho para outros Países de língua espanhola.

Vejamos quais são as características que vislumbro no lado rebelde, que corresponde ao que chamo de povo, propriamente, esse que deve ser levado em consideração nas definições políticas, mas sobretudo jurídicas. Esse que se transformou radicalmente no curso da vigência ora conturbada da Constituição.

5.a. Diversidade, Identidade e Anticolonialismo

O que move e se move com a síncope contra a marcha.

Como disse, a sublevação é multifacetada, extensa na diversidade e profunda na identidade.

Trata-se de uma rebeldia de natureza anticolonial ou descolonialista. Em toda a parte, estátuas devotadas à memória de antigos heróis, pretensamente comuns, são atacadas, depredadas, destruídas, derrubadas, numa pressão para que governos as retirem dos espaços públicos.  Há aqui intenção e intensão (firme e agressiva) de livrar-se de um passado que não guarda boas lembranças para as múltiplas identidades, pelo contrário. É um passado não a se louvar, mas a se vilipendiar, porque correlato a uma história contada pelos vencedores, em que os antepassados da rebeldia foram oprimidos e explorados. Na perspectiva étnica, foram desapossados de território, cultura, vida, empurrado para as periferias e capturados para a escravidão, deixando de ser protagonistas do novo mundo em que adentraram de moco forçado.

5.b. Novos Passado, Memória e História

A sublevação é étnica e de gênero. Desse ponto de vista, cumpre a cada uma das múltiplas identidades resgatar o seu passado, o que lhe pertence, seja de modo histórico, seja ficcional. Seja realizando novo caminho de descoberta, seja de invenção. As várias identidades querem refazer a memória, em palavras, gestos, ações, símbolos. Construir suas próprias pontes, encontrar seus próprios heróis e heroínas. Há uma contradição, claro, que matiza iconoclastia com nova idolatria. Porque essas sublevações são fortemente imagéticas, sonoras e cinéticas. Impregnadas de uma concepção e de uma atuação estéticas notáveis. Há uma exibição quase obsessiva de imagens, que mostram esses ídolos antigos e novos, em sucessão rápida, isto é, símbolos e ídolos são recuperados e são criados com extrema celeridade, substituindo-se uns aos outros, sem dar tempo de uma reflexão sobre significados e conhecimentos. O tempo que se permite é o da pesquisa nos instrumentos de busca da internet. E é preciso estar a par das imagens, das falas, dos gestos recuperados ou criados por protagonistas de vários tempos. É preciso exibir essas imagens, sobretudo, para que se crie e recrie um impulso político constante, um incentivo para a ação coletiva, de inclusão e expressão. Numa expansão sempre avassaladora, pois, transmitida de modo simples, na forma de uma máxima ou de um desenho, impregnada de senso e sensibilidade, gera afetos e adesões quase imediatos. É preciso dizer, também, mostrar, também, acompanhar, ir às ruas e às redes e repetir os termos e as posturas.

5.c. Etnias, Gênero e Linguagens

A linguagem tem estilo breve, entrecortado, com múltiplas conexões abertas. Ela busca não representar, mas expor. É a busca de narrar e renarrar, sempre, para que as veias se abram e se possa ver as entranhas das relações sócias, econômicas, jurídicas, políticas. A linguagem diz mais pelo que não diz, porque é, ao mesmo tempo doce, salgada, amarga, azeda, na afirmação da negação. Unir pela negação é uma estratégia importante, porque as várias identidades, na extensão das diversidades, e em seu aprofundamento identitário, acabam por encontrar no encontro com o outro numa posição em que o diálogo não é impossível, mas é recusado, porque, para a rebeldia, em suas histórias, o diálogo foi empregado como instrumento de dominação, de engodo, de fraude, de usurpação. Foi posto pelo dominador para submeter os dominados. A conversa, pois, entre as identidades plurais tem de ser permeada de afeto, de compaixão, mas deve-se nutrir da superfície, para evitar o combustível de um conflito restaurado de conflitos. Em decorrência, o que há, nos encontros, são discursos tribocentrados, da identidade, empoderados, que se fixam no lugar da fala, para mais expor do que demonstrar a experiência real de quem diz ou vicária em relação à história que se quer contar ou reivindicar. Esses discursos buscam menos a comunicação do que a legitimação pela experiência. E dos encontros resultam, numa comunicação sumária e superficial, em que o importante é mais solidarizar-se do que responder, arguir e argumentar, debater, enfim. São encontros de paixão. E essa paixão apropriada ao afeto da solidariedade é compaixão, como virtude descritiva do povo. As alianças de luta ou para a luta comum são mais tênues do que os compromissos, pois não há pontos comuns na profundidade se não na extensão. Não há estruturas fincadas, apenas estacas posicionadas temporariamente, que podem ser retiradas para o deslocamento constante e nômade de identidades que se espalham na busca de novos percursos, novos espaços e tempos de ação, novas metas, novas restaurações, novas narrativas. Há uma multiplicação infinita de diversidades, de novas identidades. Sempre é possível e desejável encontrar novas histórias, contar novas histórias, inventar detalhes de distinção.

5.d. Expressão, Arte e Reparação: Novas Cosmogonias e Teogonias

Por isso tudo, preferencialmente, o modo de expressão é artístico, em muitos casos estabelecendo as expressões no modo da religação com o sagrado. Daí a razão pela qual há vedações, tabus, proibições de nomes e palavras a pronunciar, gestos a performar, argumentos a por em jogo. Porque esses foram e podem voltar a ser os instrumentos da dominação, da violência simbólica ou material. Não podem mais ser reproduzidos nem pronunciados, porque militariam como uma espécie de feitiço reestruturador da velha ordem, que é negada e não deve mais, com razão, com legitimidade, ser revivida. Um novo mundo gerado. O ato de criação é sagrado e precisa ser respeitado. Entramos em novo território, que é o da reapropriação importante dos espaços e dos tempos perdidos pelas identidades massacradas, vilipendiadas, e que agora hão de ter a sua vez, na fundação de um mundo mais justo.

Em consequência, a expressão da rebeldia exige reparação, por vários mecanismos sócias, econômicos e jurídicos. A dominação, a desapropriação, a exploração e a opressão geraram débitos históricos, que devem ser resgatados. Não há perdão sem indenização.

O desejo comum da extensão das diversidades e do aprofundamento das identidades é o de diferentes cosmogonia e teogonia, originar uma nova história, uma nova geografia e nova cartografia do mundo. Não há mais lugar para os velhos mitos, deuses e heróis. Nessa missão de busca e resgate dos novos demiurgos e taumaturgos, pois, existe uma carga do próprio passado, que impõe peso e mesmo rancor. Para as novas fúrias é impraticável esquecer e deixar passar as culpas, impor as penas.  Um basta! Na sina de apagar o passado que foi imposto, iludir, é preciso derrubar monumentos, decompor símbolos, fazer ver, ouvir, sentir e reparar, pagar, por meio de sanções de várias ordens, fazer assumir responsabilidades.

5.e. Estéticas de Periferia

Esse desejo encontra na arte a potência para instaurar o novo desenho, a nova cena, os novos objetos, gestos, sons, palavras, canções, imagens, movimentos, numa mestiçagem de tudo isso em direção à memória e ao futuro sonhados. A expressão é nua, crua, agressiva, em sua efemeridade. Segmentária e fragmentária. Divisível ao infinito, por meio de especificações e detalhes, sílabas, interjeições, modos. “Da palavra à estética, a periferia é poética”, afirmou, em 2017, o slammer Emerson Alcalde, explicando que o slam é apresentar-se sem adereços nem instrumentos musicais, “é você e a palavra.” Na verdade são batalhas de poesia, que se resolvem em no máximo três minutos, nas quais “todo mundo por si e, às vezes, mais por nós,” É a voz poética das periferias, de várias quebradas, vários territórios, em que todas as “zonas de SP podem ser inclusas, ficando juntas”, analisou a slammer Mariana Felix, ao referir a programação do evento “Estética de Periferias” de 2017, na cidade de São Paulo. A slammer Roberta Estrela D’Alva define a poetry slam como “uma competição de poesia falada, um espaço para livre expressão poética, uma ágora onde questões da atualidade são debatidas ou até mesmo mais uma forma de entretenimento (…) Ele se tornou, além de um acontecimento poético, um movimento social, cultural, artístico que se expande progressivamente e é celebrado em comunidades em todo mundo.” A palavra slam se associa às finais de tudo ou nada dos torneios esportivos norte-americanos, e à onomatopeia da batida de uma porta ou janela, frequentemente usada nos quadrinhos. É, portanto, junto com o rap ou hip-hop, sentido pelos habitantes dos centros das cidades, que compuseram parte dos manifestantes que referi no início do texto, como um ruído nas cidades, a batida da música que contramarcha, contratemporaliza – e não contemporiza com – o compasso da cultura dominante. É a cultura brasileira da oralidade forte a se confrontar com a do letramento frágil.[7]

Bem por isso, vem sendo utilizado inclusive como instrumento de ensino nas escolas públicas, também de periferia. Isso chama a atenção para o fato importante de que há sempre uma tentativa de afirmação desses atos de rebeldia, de uprising de movimentos sociais, na direção dos espaços tradicionais da cultura tradicional. Na abertura de Estética de Periferias, em 2017, na auditório Oscar Niemeyer do Parque do Ibirapuera de São Paulo, tive a oportunidade de discorrer aos presentes, todos artistas e estetas dessas correntes de rebeldia, sobre a necessidade de os diversos espaços e tempos da cultura porem-se a ouvir essas expressões, para aprenderem e se transformarem pela ação afirmativa delas e por suas críticas. Um dos slammers presentes referiu sua tentativa de comparecer a um dos espaços mais disseminados na vida urbana que são os comitês de segurança, em geral compostos por residentes, empresários e representantes das polícias civil e militar. Ali, ele foi dizer da necessidade que os eventos de periferia tinham também de segurança, de participação do poder público, no sentido de dispor meios de realização segura das performances e competições. Ele contou do estranhamento que causou, pois, para os membros do comitê, esses eventos seriam o alvo das reclamações e não o sujeito das reivindicações de segurança. A cidade, pois, percebe poetry slams e hip-hop como perturbação, como deslocamento, síncope de seu andamento usual, monótono. Presume que barulhos de automóveis e buzinas se categorizam como sons.

O hip-hop ou música rap é gênero musical igualmente criado na cena urbana norte-americana, principalmente por afroamericanos e latino-americanos, que também se apresenta como um conjunto de expressões culturais, definidas por certos elementos de estilo: MCing ou rapping, que uma forma musical vocal que incorpora rima, ritmo, discurso e gíria das ruas, que é performada de múltiplas formas, com acompanhamento, em geral, de marcação de ritmo por instrumento de percussão ou musical, em geral; DJing ou scratching com turntables (toca-discos, vitrola), que é uma técnica artística (turntablism) de DJs de mover um ou mais discos de vinil para a frente e para trás, em uma ou mais vitrolas ou toca-discos, para produzir sons rítmicos e musicais; break dancing, que é uma dança de rua, executada em estilo atlético; e grafite ou grafitagem. No rap, ainda, usam-se sintetizadores, amplificadores e caixas acústicas para o acompanhamento das performances. É uma expressão cultural que remete ao convívio nas quadras ou bairros de grandes centros urbanos, e se estabelece de modo inter- ou mesmo transcultural. Em Negro Drama, música dos Racionais MC’s, a letra é ríspida na denúncia:

“Negro drama
entre o sucesso e a lama
Dinheiro, problemas, inveja, luxo, fama
Negro drama
Cabelo crespo e a pele escura
a ferida, a chaga, à procura da cura
Negro drama
Tenta ver e não vê nada
a não ser uma estrela
longe, meio ofuscada
Sente o drama, o preço, a cobrança
no amor, no ódio, a insana vingança
Negro drama
Eu sei quem trama e quem tá comigo
o trauma que eu carrego
pra não ser mais um preto fodido
O drama da cadeia e favela
túmulo, sangue, sirene, choros e velas
Passageiros do Brasil, São Paulo
agonia que sobrevive
em meio a zorra e covardias
Periferias, vielas, cortiços
Você deve estar pensando o que você tem a ver com isso
Desde o início, por ouro e prata
olha quem morre, então veja você quem mata
Recebe o mérito a farda que pratica o mal
Me ver pobre, preso ou morto já é cultural.”

Afirmação de identidade e denúncia profundas. O perceber esse som como ruído que não é, significa a recusa de observar o drama que se desenrola e se desenvolve no espaço e no tempo de uma Brasil dividido. Essa afirmação de identidade – que se distingue em meio a outras identidades e se recusa a ser reduzida a mera parte do todo, todo que representa a negação do conflito e da desigualdade e do caráter afirmativo de ser diferente e expressar sua posição e sua posição de inferioridade, abertamente o preconceito e o racismo presente na sociedade brasileira – deve, aqui ser distinguida da pretensão à univocidade, tão característica da propaganda estatal no curso da ditadura. Veja-se, por exemplo, um dos hinos preferidos do período, que celebra a vitória da seleção brasileira na Copa do Mundo de 1970, havida durante a época mais violenta da ditadura, sob a égide do Ato Institucional no. 5, em que o chamado “amor à pátria” era um dever que deveria anular qualquer dissensão:

“Noventa milhões em ação
Pra frente Brasil, no meu coração
Todos juntos, vamos pra frente Brasil
Salve a seleção!!!
De repente é aquela corrente pra frente,
Parece que todo o Brasil deu a mão!
Todos ligados na mesma emoção,
Tudo é um só coração!
Todos juntos vamos pra frente Brasil!
Salve a seleção! (…)
Somos milhões em ação
Pra frente Brasil, no meu coração
Todos juntos, vamos pra frente Brasil
Salve a seleção!
De repente é aquela corrente pra frente,
Parece que todo o Brasil deu a mão!
Todos ligados na mesma emoção,
Tudo é um só coração!”

A pulsação de marcha é referida na própria letra, quando refere que todos se ligam na mesma emoção porque tudo é um só coração. Portanto, não há efetivamente necessidade de justificar essa unidade, porque ela se dá na emoção, no próprio mover-se obrigatório na mesma direção e sentido, pra frente, como numa corrente. É a ordem da marcha militar e religiosa que atua, mais uma vez aqui, como contraponto ao que virá a expressar o rap, numa sociedade livre. A corrente pra frente é a corrente religiosa, que antes se manifestara na autodenominada “Marcha da Família com Deus pela Liberdade,” uma da série de marchas de conclamação à reação e à deposição do presidente João Goulart, em março de 1964, menos de quinze dias antes do golpe ditatorial, e menos de uma semana após o comício da Central do Brasil, pensado por essas manifestações como de natureza comunista. Preparada por várias entidades femininas, contou com apoio, por exemplo, da Federação e do Centro das Indústrias do Estado de São Paulo, e a participação de políticos como Auro de Moura Andrade, presidente do Senado, Carlos Lacerda, governador da Guanabara, e Ademar de Barros, governador de São Paulo. A marcha foi finalizada pela celebração de um culto religioso, consistente em “missa pela salvação da democracia.” A letra da música, porém, vai além, a anunciar que não apenas há uma só pulsação, mas que essa se dá em torno de uma seleção, isto é, uma escolha, um recorte de ungidos, em torno dos quais haveria apenas a presença de uma torcida. O povo estaria postado nas arquibancadas ou ao lado dos aparelhos de rádio de então, apenas acompanhando o que se faz e o que se decide no âmbito dos que efetivamente contam, que correspondem à seleção. Mais grave do que isso é o que a alegoria concede como consequência de adoção desse modelo. Como no futebol, em geral, e brasileiro, em especial, os jogadores faziam o papel de escravizados, cujos passes eram de propriedade de empresários e clubes – e federações de clubes, confederações, como a antiga Confederação Brasileira de Desportos, hoje Confederação Brasileira de Futebol e assim sucessivamente, até alçar-se à organização internacional, a FIFA – e que recebiam salários, para a maioria irrisórios, e participações também de valor relativamente modesto, diante dos lucros que a atividade gerava, que se multiplicaram no cenário nacional e internacional, desde aquela época. A FIFA era uma empresa de status internacional, de natureza jurídica e tratada como uma pessoa jurídica internacional, que gozava de isenções, e paulatinamente foi adquirindo direitos sobre marcas geradas pela atividade dos trabalhadores escravizados da bola, realizando cada vez mais diretamente parcerias e contratos com grandes corporações internacionais, de propaganda e de transmissão de jogos e eventos.  A concepção que tiveram seus sucessivos presidentes – apenas dois desde então, um brasileiro sucedido por um suíço – era a de que a entidade constituía uma “grande família”, a “família FIFA.” Isto é, um exercício de uma atividade a partir de um poder de natureza doméstica. Sobre a natureza despótica desse poder, tomada como modelo, no período ditatorial brasileiro, a conclusão do presente texto fará maiores considerações. O que importa, aqui, é observar que a cosmovisão tomada desse modo de ser, o da pulsação de emoções unívocas em torno de uma seleção empregada como aparência e máscara de um poder corrosivo das relações culturais e sócias, era a que se impunha à configuração do povo brasileiro. Deixou sequelas nada desprezíveis, que eclodiram no lado dos manifestantes de 2013 e 2016.

5.f. Territórios: Fragmentação e Internacionalização

A rebeldia, por seu lado, muito embora pesadamente territorial ou de caráter local, alça voos e estabelece liames mais internacionais do que nacionais. É como se o povo saltasse etapas de conexão, libertando-se das barreiras, das altas paredes e muros que Minos impôs a Dédalo e Ícaro, de isolamento. Ele se comunica internacionalmente. Cada uma das identidades conecta-se dessa forma com aa cena internacional. Por tal motivo, torna-se praticamente impossível coadunar esse novo povo com o espaço tradicional do Estado, com o território nacional, que não existe para ele. Porque, exatamente, ele foi expulso, desalojado, empurrado para as bordas, onde lhe foram impostas muralhas materiais e simbólicas, mas todas de violência, opressão e exploração. Suas atividades de submissão se dão nesse território que, a cultura dominante não cansa de significar, não lhe pertence. Mas sua expressão cultural ultrapassa essa condenação. Aquele nomadismo e desenraizamento que referi encontra nisso um de seus fundamentos. O desenraizamento como atividade de resistência e de afirmação artística, cultural, política. O estabelecer ligações fluidas e transcendentes. Há uma procura de ir além do local, da comunidade, pulando os empecilhos políticos da representação desvirtuada, muito embora o pertencimento permaneça, seja como tema de expressão, seja como motivo de legitimação.

As pautas dos movimentos sociais de tipo coletivo não se coadunam com pactos com o poder nacional ou estatal, pois elas geram alianças concretas ou potenciais no nível internacional. Portanto não é que lhes falte legitimidade, pelo contrário, eles têm uma nova legitimidade que é de tipo pandêmico e não mais orgânico ou interno, mas identitário. Enquanto isso, o poder estatal ou nacional carece de legitimidade para ser entendido como agente de realizar um compromisso ou pacto com esses movimentos. O nacional é, em verdade, afastado por dois motivos. O primeiro diz respeito ao fato de o Estado ser visto como herdeiro do processo de dominação, que descaracterizou a cultura e o modo de vida dos povos oprimidos. Não há nacional para as pautas da diversidade e da identidade, mas, se se quiser, apenas plurinacional, multinacional. Segundo porque não há fundamento mais para confiar na capacidade de o Estado realizar cometimentos se ele mesmo não assume a soberania como sua característica, se ele se recusa a ser Estado e retoma a natureza de Colônia. Então, é preciso ir além do Estado, buscar estruturas transestatais ou transnacionais. A par disso, os coletivos culturais, sociais e políticos organizando-se juridicamente, como ONG, ou como projetos para obter financiamento, não encontram no Estado presente resposta, recebendo de instituições estrangeiras os valores e o incentivo de que necessitam. Isso não vale apenas para as organizações sociais, vale igualmente para entidades supraestatais, caso do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos, que depende de doações europeias para o seu funcionamento administrativo. Isso significa que os órgãos internacionais tendem a ser mais valorizados na conexão que empreendem com esse lado da rebeldia. Todavia, sobretudo que não se pode mais pensar o direito como direito dos Estados. O direito internacional reaparece na cena, no jogo dos direitos, e tende a se tornar um jogador sempre escalado para cumprir posições cada vez mais essenciais.

5.g. Novo Direito para Nova Democracia e Crítica do Constitucionalismo

A volta ao palco do internacionalismo e do transnacionalismo exige novas teorias de fundamentação tanto do direito, em geral, quanto das disciplinas jurídicas, especialmente do direito constitucional. O direito constitucional é a parte mais frágil da teoria jurídica dos Países ex-colônias, pós-coloniais. Eles carecem de uma reflexão a respeito desse ramo que deveria, em teoria, fundar as relações jurídicas, os laços que unem os povos. Mas esses Países são deficientes no entendimento de que o direito constitucional funciona por meio de relações concretas, quer dizer, ele não pode se resumir à descrição abstrata de institutos e instituições. A teoria e a doutrina do direito constitucional, no Brasil, são muito pouco desenvolvidas, muito frágeis. Isso tem a ver com o seu caráter excessivamente abstrato, em primeiro lugar. O direito constitucional é estudado como se fosse uma espécie de filosofia do direito. Ele descreve situações que não existem, não são experimentadas. Os manualistas se dão ao luxo de nada dizer sobre a realidade, sobre as práticas materiais e discursivas. Além disso, são fascinados pelas doutrinas estrangeiras e, das doutrinas estrangeiras apreendem – e muito mal, de modo desvirtuado, o mais das vezes, exatamente por não saberem observar e refletir sobre as diferenças, por não saberem comparar, por não compreenderem o caráter dinâmico das experiências, por não terem mesmo sensibilidade para as experiências. No Brasil, não se considera a ação constitucional como fazendo parte do direito constitucional. Portanto, as políticas públicas são ignoradas nesse ramo do direito, e, dentre elas, a política pública externa, que seria fundamental. Além de tudo isso, o meio jurídico se satisfaz com manuais de nível ruim, manuais de estudo para cursinhos, para a preparação para fazer provas e prestar concursos. Para entender isso, basta observar que a maior parte das publicações jurídicas em nosso País estão voltadas para esse mercado dos concursos. Boa parte do ensino jurídico, no Brasil, está condicionada pelo modelo dos cursinhos. Há muitos exemplos, mas bastam dois para ilustrar essas críticas. Duas figuras importantes das figuras políticas brasileiras, importantes pelos cargos que ocupam ou ocuparam, são autoras de manuais desse nível didático muito raso de concursos, o ex-Presidente Michel Temer e o Ministro Alexandre de Moraes.

O direito constitucional está desligado do mundo das relações jurídicas concretas. A história do desligamento do direito da realidade[8] é antiga, e não é possível recuperá-la no presente texto. Quanto ao direito constitucional, isso é resultado sobretudo da experiência da última ditadura civil-militar brasileira (1964-1985/6), que optou por estabelecer uma legislação de exceção paralela à manutenção de diplomas meramente formais, que referiam normas de direito constitucional e até de direitos humanos, normas essas que não tinham eficácia, sequer vigência. Isso levou a uma certa esquizofrenia do ensino jurídico, que esteve em pleno avanço durante o mesmo período, com a abertura de inúmeras escolas, até chegar ao tempo presente em que o Brasil possui o maior número de faculdades de direito do mundo, número que supera o de faculdades de todos os outros Países e regiões somados. O problema está em que, muito embora não houvesse direito no Brasil, o direito continuava a ser ensinado, como se nada estivesse ocorrendo. Havia a disciplina de direito constitucional, que era uma continuação da disciplina de teoria geral do Estado, uma espécie de ramo desgarrado de uma teoria política, mais conectado com o direito. Mas as normas de direito constitucional eram ensinadas e estudadas como se fossem normas de direito administrativo. Daí a razão do excessivo dogmatismo e do não entendimento dos fins dessas normas e de suas implicações com relação ao funcionamento da sociedade política e os direitos humanos. É muita típica dessa forma de ver o direito constitucional a distinção entre direitos humanos e fundamentais, de origem num formalismo muito pouco refletido, muito pouco crítico. Mas a verdade está em que sequer os direitos humanos eram estudados na disciplina de direito constitucional sob a égide das Constituições de 1967 e 1969 (chamada oficialmente de Emenda Constitucional no. 1, exatamente por pretender mascarar o novo ato constituinte originário dos detentores do poder, no caso, a Junta militar, e deixar a imagem de que se resumiria a mera manifestação de poder constituinte derivado). Hoje os valores e direitos estão logo na abertura da Constituição. Naquelas cartas outorgadas, estavam numa posição que permitia que o programa de estudos não alcançasse o momento de leitura e explicação de tais valores e direitos.

Contudo, era de se esperar que, finda a ditadura, chegada a nova Constituição, o ensino do direito sofresse uma grande reflexão crítica, uma grande reforma, se não uma verdadeira transformação, ao menos uma adequação. A discussão esperada deveria ser pública e não restrita aos juristas, aos profissionais do direito, aos professores e professoras, alunos e alunas. O direito, como se sabe, é muito importante para ser assunto apenas dos juristas. Essa revisão não ocorreu até hoje. Pelo contrário, a situação de ensino ainda se agravou com o incremento do número de bacharéis e de escolas. Não há uma unidade mínima de formação segura. Disso resulta um nível muito desigual, claro. Mas os juristas desconhecem a sua função, a importância da matéria com que lidam para a sociedade, não têm ideia das finalidades do manejo do direito. Ausente essa revisão, os juristas continuam a ser treinados com desconfiança dos dois elementos da democracia, o povo e o poder do povo. Não se ensina democracia nas faculdades de direito, apenas, quando muito, o princípio democrático, de modo extremamente formal, como se se tratasse de mera norma administrativa. A educação jurídica ficou sem uma mudança, assim como a vida constitucional pós-ditadura também não abandonou vários dos institutos e práticas ditatoriais, de tal sorte que se pode dizer que a ditadura está presente na democracia brasileira. O que dá fundamento e munição para as cinco correntes que referi, que sustentam o regime anticonstitucional pelo qual passamos.

5.h. Transnacionalização Cultural e Animismo

Voltando ao tema da internacionalização e da transnacionalização, pela vocação plurinacional e transnacional do movimento, em seu lado de rebeldia, pelas características de organização povo que venho descrevendo, gostaria de lembrar que esses dois aspectos podem ser considerados como ínsitos aos movimentos de natureza libertária. Dentre eles, por exemplo, o abolicionismo do século XIX, no qual a vinculação e a comunicação entre os vários movimentos, no Brasil, nos Estados Unidos e na Europa, foram extremamente importantes, com o aprendizado de pautas e táticas e a troca de informações, como apontaram historiadores e historiadoras, em estudos mais recentes. No século XIX, esses movimentos foram neutralizados pelas abolições nacionais, inclusive em decorrência de guerra civil manifesta, caso dos Estados Unidos. Essas abolições formais, precárias, abolições de abandono à própria sorte dos formalmente libertos, dissolveram os movimentos e neutralizaram as alianças internacionais. A par disso, é importante salientar que a luta popular por educação, no Brasil, é bastante antiga, podendo ser datado seu início pelo menos no mesmo século XIX, ainda antes da abolição, pelas cartas dirigidas pela população mais pobre de algumas regiões ao poder público, em que reivindicavam que escolas fossem trazidas para suas localidades. Já no âmbito da República, é interessante a releitura do romance São Bernardo, de Graciliano Ramos, sob esse viés, mostrando os conflitos entre educação e o mandonismo local e nacional. Isso tudo somente vai retornar no século XXI, com os movimentos das ditas minorias e que prefiro chamar de movimentos da diversidade, na extensão, e das identidades, na profundidade.

Uma última característica desse lado do movimento, é um certo animismo, isto é, sua ligação com a natureza de maneira quase sacra, em que se vê os entes não humanos como dotados de sentido político e de personalidade e capacidade jurídicas. A natureza é sujeito da vida política, assim como as entidades materiais que a compõem, e espirituais que a povoariam. Isso se observa, por exemplo, na reivindicação dos direitos da natureza, dos rios, das plantas, dos animais. Pensa-se numa maneira de proteção que ultrapasse a necessidade moderna da relação de propriedade entre pessoas e coisas. As coisas têm proteção em si mesmas, recebem a capacidade jurídica de se protegerem, sem necessidade da vinculação a uma pessoa, a uma coletividade. Isso remete tanto a mitos e crenças pré-coloniais, dos povos originários ou indígenas – Pachamama, por exemplo, no caso andino, mas também crenças dos indígenas brasileiros e de povos africanos, asiáticos e aborígenes da Oceania, mesmo europeus mais antigos. Mas é igualmente um sinal de recuperação de estruturas antigas do direito romano, abandonadas, no curso de sua evolução na Antiguidade tardia, medieval e moderna. Por exemplo a concepção de que o direito era uma ciência das coisas e da natureza, muito ligada à influência estoica e epicurista, no desenvolvimento do direito romano clássico.[9]

5.i. Governantes e Governados: um Governo Des (Tres) lo(u)cado

Essas são as características do lado rebelde do movimento de 2013, que correspondem ao modo como o povo brasileiro se apresenta em meio as práticas de poder atuais. Demonstram que o governo brasileiro atual e o regime anticonstitucional que vem impondo não se coadunam com os governados. Esse governo não se adapta ao povo. Essa inadequação é relevante porque é salientada pelo modo como se resiste às medidas que deseja impor. Há uma organização, não ideal, evidentemente, do povo que impede os avanços desse regime, sito porque parece que, como resultado mesmo dessa evolução, há uma parcela relevante da elite que se alia à maioria, guardando a memória das ações que levaram à pressão conjunta da sociedade civil brasileira para o fim do regime ditatorial. O povo de hoje não adota medidas que o povo que viveu sob a ditadura e sua instalação progressiva adotou. Não há revide, não há opção armada. Há, isso sim, uma agressividade de resistência, que não se faz violência, não reproduz a violência de Estado, na conformação da resistência. Retira legitimidade de qualquer ação simbólica ou concreta de violência do regime. Isso ocorre apesar da destruição que o regime empreende do patrimônio natural, cultural e humano do povo. O número de mortes causados por policiais é assustador. O desprezo pela vida, pelos direitos e pela segurança da maioria do povo é inadmissível.

 

6. O Direito Constitucional e os Regimes da Política

Creio que a análise pelo método que empreendi, aqui, serve para demonstrar como o direito constitucional deve ser construído. Baseando-se não na leitura e reprodução abstrata de modelos, conceitos, abstrações, não na narrativa de fatos por ouvir dizer, mas pela observação cuidadosa pessoal, pela reflexão da experiência. A experiência é uma luz que ilumina a si mesma. E é preciso estar presente, engajar-se na vida política, saber do que se está, por ter tocado os lugares e as pessoas, ter feito parte das relações, ter participado das práticas materiais e discursivas, e tentar entender que há vários lados e múltiplas facetas e interpretações que disputam um lugar e um tempo nessa construção propriamente histórica. E saber encontrar as estruturas de explicação que surgem dessa prática. A ciência da história, irmã do direito constitucional, já na Antiguidade helenística, salientava a importância da narração derivada da análise original, observação própria, da experiência, confrontada com o juízo crítico sobre o depoimento de outros, que também viveram o momento que se desejaria percorrer e retratar: a autopsía (αὐτοψία – exame atento realizado pelos próprios olhos) e a anákrisis (ἀνάκρισις – o inquérito judicial, o exame judicioso). Digo irmã desse ramo do direito porque as características relativas a, por exemplo, formas de governo, regime político, exercício e controle do poder, as qualidades de uma constituição, extraem-se da observação histórica, entendida quase de modo positivista, como a descrição das ações de governantes e governados como efetivamente se dão ou se deram, sem a intermediação de palavras cujo sentido pressupomos como universal e eterno. Negar, portanto, o poder das palavras ou nomes que acreditamos representarem uma realidade objetiva imutável, isso é, um conceito imune ao tempo. Ao descrever atitudes, sem os entraves dos conceitos abstratos de um direito constitucional eterno ou determinado pelas fontes de uma ciência considerada superior (por exemplo, hoje, as jurisprudências ou jurisciências alemã e norte-americana, antes, francesa e inglesa), podemos forjar os significados aptos ao entendimento efetivo dessas atitudes, desses comportamentos. E designar as estruturas realmente constitucionais, em vez de tentarmos adaptar essas estruturas existentes às categorias que pensamos atemporais e superiores, de que decorre sempre tacharmos nossa realidade como irregular, incorreta, defeituosa, absurda. Esse é um procedimento lamentavelmente comum da muito pouco atenta atividade jusconstitucionalista no Brasil e em muito Países pós-coloniais. A realidade nunca se encaixa na imagem fantasmagórica dos juristas que não têm paciência de investigar e observar, mas mostram-se sempre dispostos a louvar algum manual ou mestre estrangeiro.

6.a. Anaciclose: a Dinâmica da Democracia e dos Regimes

Dito isso, é preciso ter coragem de enfrentar duas questões. A primeira a de definir nossa democracia a partir das características de nosso povo. A democracia é um atributo, uma qualidade do povo, é seu poder, a expressão de seu poder. Insisto, é a expressão de um povo concreto e de um poder concreto desse povo. Não há democracia em abstrato, mas democracia vinculada a um certo povo, que se comporta de determinado modo, circunscrito a uma relação histórica de poder, de governo, de governança.

Para definir a democracia, portanto, há necessidade de empregar aquelas características que acoplamos ao povo brasileiro. Quem é, em determinado processo, e como age, como se comporta (conjunto de processos, de ações e paixões) em relação à vida comum, o povo brasileiro.

A segunda questão diz respeito ao regime político, ao regime de governo presente, para além da perquirição das características da democracia. Ou seja, qual regime resulta da análise do confronto entre governantes e governados. Da comparação que fizemos entre dois modos de agir na política, entre dois projetos políticos e jurídicos, que pretendi explicar a partir da observação e análise do movimento de 2013, desembocando na divisão em 2016 e nas forças ou estruturas de sustentação dos projetos e dos comportamentos políticos de uns e outros. A forma de governo ou regime político não é uma definição que se extraia somente da resposta às indagações a respeito de quem governa e de como governa. Ele resulta da análise do conflito político, do confronto entre quem governa e quem não governa, submetendo-se ou não ao governo de outrem. O comportamento, portanto o processo de ações e paixões de governantes e governados, postos em relação.

Esses dois processos são as práticas materiais e discursivas de que resultam as explicações que chamamos de regimes políticos.

São duas questões e dois desafios, que devem ser entendidos como uma atividade de narração dos caracteres do regime político, entendido como um processo. O regime político é uma dinâmica, um movimento e não uma estrutura estática, passível de ser fotografada. É um filme de cujo roteiro em desenvolvimento constante somos artífices comuns, e no qual desempenhamos todos os papéis na cena ou fora dela.

Dou dois exemplos dessa dinâmica dos regimes. O primeiro diz respeito à democracia antiga, que serve até hoje como referência de origem do percurso histórico democrático. A democracia ateniense é, em geral, criticada por seu caráter pretensamente de exclusão. Observa-se bem ou mal o momento em que o regime teria encontrado, nessa visão, seu ápice, a Era de Péricles, e afirma-se que das decisões e do conceito jurídico-político de povo estaria excluída a maioria dos habitantes da cidade, os não-politas: escravos, estrangeiros e mulheres. Esse é um retrato, que não leva em consideração o processo de desenvolvimento da prática democrática ateniense, Não é um regime, desse ponto de vista também, ideal, destituído de problemas, claro, mas era sobretudo um processo de integração crescente, em que o conceito de cidadania (ou política, pois as palavras devem ser entendidas como sinônimas) foi-se ampliando. Não se sabe se alcançaria ampliação mais significativa, uma vez que foi interrompido bruscamente pela derrota de Atenas na guerra contra Esparta. Não que a Guerra, como atividade essencial às Cidades da Antiguidade, objeto por excelência das deliberações políticas, tivesse sido nociva a tal regime-processo. Pelo contrário, foi a guerra que trouxe um impulso decisivo para a ampliação democrática ateniense, no curso do conflito das Cidades helênicas contra o Império Persa, em que a infantaria assumiu papel decisivo nos campos de batalha, o que levou ao empoderamento do povo, da parcela mais pobre, que acabou por assumir o governo da Cidade responsável pela vitória helênica. Mas, na outra ponta da experiência histórica, a Guerra do Peloponeso foi decisiva para a derrocada do regime-processo, pelos reveses sofridos pelos atenienses, pelas suas tomadas de decisão, que puseram em xeque em e risco a própria cultura democrática que defendiam, e que era o mote das alianças que empreendiam. Eventos e reações cujas consequências não foram pesadas convenientemente determinaram o fim da democracia, ou pelo menos de sua evolução. Mas a cultura democrática permaneceu e se expandiu, e aparece em muitos textos bem posteriores ao século V a. C., como prova de que o pensamento e as práticas democráticas incorporaram-se, estando sempre aptas a serem recuperadas ou mesmo a explodir em determinados tempos e lugares.[10]

O outro exemplo é tirado da cena contemporânea, em que aquela coalizão de forças que referi como fundante do regime anticonstitucional pretendido pelos governantes atuais, como qualquer coalizão política, dinâmica que se mostra, sofre acomodações, sobretudo com a parcial cisão entre bolsonarismo e lavajatismo, cujos lances ainda estão em andamento. Em cada uma das forças há componentes diversos e contradições internas notáveis, que garantem exatamente seu caráter processual. No caso do lavajatismo, a saída de um de seus representantes do governo, e o choque contra o Supremo Tribunal Federal são sinais desse desentendimento, que ainda não sabemos se será definitivo ou não, se sofrerá nova acomodação, se penderá para um ou outro lado da equação. A par disso, como cada uma das forças possui componentes diversos e alianças diversas entre esses componentes internamente e em relação aos componentes das outras forças, o processo de conflito e amálgama da coalizão está sempre aberto, podendo mudar seus vetores, suas personagens, e seus líderes. A coalizão atual não vive sem o lavajatismo, portanto, sua ausência pode levar a sua derrocada, ou a concessões que mudariam acentos e constituição, garantindo sua permanência. Isso depende, é claro, da atuação dos elementos que se opõe a essa coalizão, das alianças que puderem fazer entre si e com componentes tirados da coalizão no poder.

Por essa razão, gostaria de recuperar, aqui, caminhando para a conclusão de meu estudo breve, como instrumento de análise, a teoria das formas de governo que se estabelece desde a Antiguidade como anaciclose (ἀνακύκλωσις), movimento circular ou, mais propriamente, de dinâmica dos regimes.

6.b. Persistência e Ruptura

A primeira indagação diz respeito à existência mesma dessa relação entre os vários regimes, se há uma continuidade entre eles ou uma ruptura no seio desse círculo. Quem, com perspicácia, notou a ruptura foi Pierre Clastres, quando criticou o trabalho de Jean-William Lapierre sobre os vários graus de manifestação do poder político. Clastres demonstrou que o poder é ínsito a toda sociedade, portanto, toda sociedade é política. Entretanto, o poder não tem a característica da coercibilidade, não é sempre uma relação de mando-obediência, como a sociologia, a antropologia e a filosofia tendiam a enxergar e a definir. O caráter de coerção é típico das sociedades políticas em que o Estado está presente, o que chamo da Forma-Estado e defino como técnica de alienação da capacidade política. Todavia há sociedades em que esse caráter não é a força fundante das relações políticas. Essas sociedades não podem ser definidas nem concebidas pela ausência. O Estado não está ausente dessas sociedades, mas é recusado por elas. Elas são sociedades contra o Estado, não a-estatais, mas antiestatais, contrárias ao poder separado do social, do corpo político. E constroem mecanismos que as protegem da instauração desse poder separado. Lembremos que o poder separado é praticamente uma obsessão na filosofia e na ciência política desde que Maquiavel, n’O Príncipe, resolveu tratar dos principados que chamou de mistos, isto é, aqueles que eram novos por conquista, uma vez que neles residiriam as maiores dificuldades de governar.  Sem prestar a devida atenção nas distinções que o Secretário Florentino estabeleceu nos primeiros dois capítulos, bem como em sua remessa, no que diz respeito ao manejo das repúblicas aos seus Discorsi, a ciência moderna passou a considerar como paradigmática a sociedade em que o poder se encontrava separado. Daí em diante, esse foi seu tema, e o Estado tornou-se o único modelo de relação de poder. O direito sofreu do mesmo tipo de distração.

6.c. A Democracia como Ruptura

Muito bem, se há uma ruptura, se o iter de manifestação de poder não é contínuo, se não há tão somente um e único fundamento do poder político, então não podemos tratar todos os regimes políticos como se fizessem parte do mesmo conjunto. Há um limite para a anaciclose. Essa ruptura, essa solução de prosseguimento, é, segundo minha perspectiva, a democracia. Portanto, vou fazer uma cisão importante entre regimes de governo, por um lado, e regime político, de outro. Entre formas de governar e forma de política. E dizer que o regime político por excelência, a forma de política única é a democracia. Nesse aspecto, também Jacques Rancière entende que a democracia é a única forma de política, porque é o povo (δῆμος) – os pobres, a maioria (πολλοί) – que a inaugura, ao guardar uma única qualidade, a liberdade, em relação aos que possuem todas as qualidades que contam, isto é, propriedades e virtudes, os poucos (ὀλίγοι), portanto, os ricos  (πλοῦτοι) e os virtuosos (ἄριστοι), instaurando um conflito fundante da vida política, o desentendimento original, que é definidor da própria natureza humana, segundo Aristóteles, o sentimento do bem e do mal, do justo e do injusto. O povo, ao se definir pela falta, pela carência, impõe-se como igual, na cena política, faz-se igual, na política (πολιτεία) e a define. Penso, ainda, que a política somente pode ser o exercício de todos os membros da sociedade, porque ela é uma qualidade da polis (πόλις), que chamaríamos, hoje, de cidade, pelo que o sinônimo nosso contemporâneo de política é cidadania. E a qualidade da polis e da cidade que a possui por direito é o polita (πολιτικός) – que significa o que se relaciona com a polis, com a cidade – ou cidadã/o. O humano é o ζῷον πολῑτῐκόν, isto é, o dotado das qualidades para a vida na cidade, cujo conjunto é a cidadania, a política – termo que também designa a constituição (πολιτεία) da cidade. Só há política, em decorrência, quando o poder ou qualidade de estar no espaço de disputa da cidade, pertence a todos os politas, porque políticos, dotados dos requisitos para viver esse conflito permanente. Democracia é política, democracia é cidadania.

Como único regime político, a democracia não pode ser posta ao lado, ou no ciclo dos demais regimes de governo, que não são políticos, exatamente por não serem democráticos.

A democracia, assim, precisa ser definida com alusão e conexão com o modo de agir do povo. Ela é resultado de uma ruptura histórica e lógica. Daí porque nossa reflexão se estabelece em duas partes. Democracia, por uma, como qualidade do povo; regimes de governo, por outra, como resultante da relação entre governantes e governados.

Em Aristóteles, há uma outra fissura, que decorre da divisão do espaço de vivência em duas esferas, em que o poder se manifesta diferentemente, exatamente porque essas esferas têm natureza diversa: οἶκος e πόλις. A primeira é mera provedora de sobrevivência. A segunda, superior, permite ao humano encontrar seu maior bem, que é a felicidade.[11] Para a figuração dos membros dessas duas comunidades, é extremamente importante a observação do Estagirita, no sentido de que a unidade é apenas típica e desejável na casa, enquanto que, na cidade, o específico e almejável é a multiplicidade. Isso aponta para duas ordens de sentido: a privada compõe-se de uma unidade na desigualdade, enquanto a pública, de diversidade na igualdade.

Adaptando esses termos à descrição que empreendi do lado rebelde ou popular da relação entre governantes e governados no Brasil atual, podemos chegar sem dificuldade à conclusão que, talvez pela primeira vez na história brasileira, estamos diante de uma formação de nosso povo altamente indicativa do exercício efetivo democrático. Um povo altamente diferenciado, voltado diligentemente a expressar essas diferenças, de modo afirmativo e voltado a ocupar um espaço e um tempo de reconhecimento no ambiente da cidade. É assim que se estabelece o fundamento de rebeldia dos movimentos políticos. Quer isso dizer que, muito embora seja desejável e mesmo praticável estabelecer parâmetros de consenso para a superação do impasse político-jurídico que vivemos, diante do impulso anticonstitucional dos governantes e de suas forcas constituintes, uma condicional extremamente valiosa encontra-se em via de ser preenchida, na direção da construção democrática, que é o auto reconhecimento, a imposição de si, como elemento diferenciado e distinto de uma espaço-tempo de conflitualidade, no embate para forjar a constituição e as leis. A rebeldia é impulso para a cidadania., é democracia. Portanto, ela tenderá a exigir mudanças fundamentais no desenho constitucional, indicadoras de uma nova época, de uma nova política. Uma política de tudo ou nada. Não há negociação quanto aos desejos e direitos: quer-se passe livre, educação efetiva. A carência determina a pulsão de igualdade, de fazer com que o espaço público se torne público pelo apossamento da rebeldia, pelo povo que se torna visível e audível. E a sensibilidade é o veículo dessa pulsão que desloca o tempo monótono da dominação.

A participação popular é de nova ordem. Essa ordem se põe ou se apresenta como ποίησις (produção-criação) e não πρᾶξις (prática-execução), menos ainda θεωρία (reflexão-contemplação. Por essa razão, compreendemos o exercício da cidadania do povo brasileiro mais do ponto de vista artístico do que político, no sentido tradicional, e teórico. Muito embora isso se mostre apenas um desvio de interpretação, um artifício de olhar, mesmo um preconceito, ao compreendermos, por causa da cultura tradicional, que o povo é apenas corpo, apto a uma exibição artística. Ocorre que a expressão artística cada vez mais se estabelece como crítica e política, como abertura para não apenas a resistência, mas sobretudo a afirmação de desejos em relação ao espaço e ao tempo públicos. De certo modo e de modo certo, houve um aprendizado do artifício para poder alcançar a visibilidade e a audição cada vez mais amplas. O povo brasileiro criou e está produzindo a ruptura democrática, por meio de performances. Isso porque, os espaços tradicionais de expressão da cidadania são de ocupação extremamente difícil. Basta observar as várias assembleias, câmaras, o próprio Congresso Nacional, o Poder Judiciário, os Ministérios Públicos, as Defensorias, as Procuradorias, enfim, as várias funções jurídicas de Estado, os Poderes Executivos, para ver quão irrisório é o acesso das chamadas minorias, especialmente do povo negro, de indígenas, mas igualmente dos vários gêneros. Assim, aqueles aspectos que definem o cidadão e a cidadã, do ponto de vista da ciência jurídico-política, especialmente a participação-representação na atividade de fazer leis e de julgar, não podem ser empregados para cercear, pela via da ciência, o que o cotidiano já cerceia, com extrema habilidade de exclusão. O povo, então, tem de criar seu próprio espaço, fundar um novo espaço público, em que apresente e delibere sobre seus desejos e seus projetos de vida comum. São pontos de inserção política eficazes, sobretudo numa época em nos acostumamos com o universo virtual. Compreendemos a arte como expressão política e somos influenciados por ela. Isso significa que há um poder-paixão, como o defino, que se contrapõe fortemente ao poder-ação, ao poder-violência, cuja análise é predominante na prática e na ciência políticas.[12] Como expliquei, no texto em que explorei as características desse poder-paixão, sua expressão está vinculada ao modo de ser do povo, sendo que o regime de governo extrai dele suas características essenciais, mesmo seu nome, seja monarquia, despotismo, república.[13]

Isso tudo contra o pano de fundo de uma repressão que se quer fazer cada dia mais violenta, que é o fazer dos governantes, sua execução de um projeto anticonstitucional. E com o empurrar o povo para uma situação cada vez mais grave de precarização, de pobreza material. Ou seja, aquela posição que afirmo, não pode ser vista nem como otimista, nem como reveladora de uma superioridade das características do povo brasileiro no presente em relação a outros momentos. Primeiro, porque o momento presente se mostra talvez decisivo para o curso daquela ποίησις, dependente de uma atuação energética, no curso de fazer com que a opressão se finde de vez, nas mãos daqueles que se estipulam como os piores dos governantes. Segundo porque é preciso efetivamente saber se o presente é o momento propício (καιρός) para que essa batalha decisiva se realize. Se nós, o povo, saberemos fazer e desfazer as alianças na qualidade dos instantes, rompendo o nó de um compromisso político-jurídico que se apresenta altamente desfavorável, no risco que traz. São o mover-se (motu) e o erguer-se (εξέγερση, στάση), na era em que a negação de direitos e de democracia mais se agudiza, na imposição de um deslocamento do político pelo econômico, este concebido apenas como forma de realização de objetivos de ganhos desmesurados, de uma parte cada vez menor dos povos, que quer usufruir dos bens sociais e culturais apenas para seu próprio gozo, não importando a morte e o sofrimento do outro, da maioria.

O anticonstitucional toma aqui um sentido poético, para além do político e do jurídico, aos quais já aludi no presente texto. Porque ele não se volta apenas contra uma constituição estabelecida, nem contra valores e regras consagrados nessa constituição tão somente. Ele se pratica diretamente contra o povo, para evitar a permanência da expressão de seus desejos, desenhos e performances no campo público. Lembre-se, por exemplo, que um dos primeiros atos de João Dória, como prefeito de São Paulo, foi determinar que se apagassem os grafites presentes ao longo das avenidas 23 de maio e Rubem Berta, que sequer havia sido produto de ato de rebeldia, mas incentivo para a apropriação de espaços centrais da Capital por artistas da cidade. Veja-se o destino do Ministério da Cultura, no atual governo, resumido a departamento ou secretaria, sem locus nem enquadramento específico, no início, depois subordinado a uma Ministério do Turismo – considerado de maior valor do que a cultura e o patrimônio artístico e histórico do País -, até que viesse a ser extinto de fato, após uma performance degradante de antiga atriz, sua última secretária, em entrevista à CNN Brasil.

6.d. O Ciclo vicioso de Governo

O movimento cíclico dos regimes de governo é bem mais complexo do que a visão estreita do pensamento da segurança nacional, imposto no curso da ditadura civil-militar, que, por meio da Escola Superior de Guerra quis impor a concepção de que o percurso da história brasileira resumiu-se a alternância entre sístoles e diástoles, para designar a sucessão de regimes de governo. Sístoles e diástoles ou os ciclos de liberdade e autoritarismo, como categorias muito simplistas, muito típicas do pensamento brasileiro contemporâneo, que parece ter preguiça de analisar a complexidade. Essa ideia, ligada à escola da segurança nacional, extremamente limitado em sua figuração, que se fez sem permitir oportunidade de crítica, numa ´época em que era fácil impor pela força pretensas doutrinas científicas, não compreende que a configuração dos regimes políticos vai muito além da disposição e da ação de governantes. Não é à toa que ele foi forjado de modo autoritário e como um guia para a atuação de governantes autoritários. São categorias que desservem a utilização séria teórica e prática. São meros critérios de auto identificação de ditadores, uma dicotomia tosca.

A história do pensamento político guarda uma longa tradição e se faz extremamente rica na reflexão da categorização de formas de governo, mas sobretudo no reconhecimento de relações entre essas formas, seja especial, seja em seu encadeamento num fluxo, num processo de formações e metamorfoses, a anaciclose. Deixo para outro texto a análise das várias anacicloses desenhadas pelos autores.

Creio que o espaço também não me permite descrever em detalhes o que vislumbro como o regime de governo brasileiro atual. Basta dizer que ele se produz do embate entre democracia e regime anticonstitucional. Pela primeira vez em nossa história, um documento jurídico-político serve de base para uma cultura das liberdades.

Vou trabalhar a especificação desse movimento e do fato de por em xeque mesmo os elementos tradicionais da definição de Estado: povo, território e lei. Os três mudaram e há reivindicação de que se metamorfoseiem ainda mais.

O embate que vivemos entre democracia e anticonstitucionalidade mostra-se decisivo.

Dos elementos que compõem o lado do anticonstitucionalismo, talvez os mais fortes sejam o evangelicalismo e o lavajatismo, porque possuem programas substantivos rígidos. O redesocialismo é, por enquanto, instrumento, mas pode se autonomizar, na luta pelo domínio tecnológico, que é a de estabelecer níveis mais sofisticados de controle do trabalho, com baixa remuneração, e da sociedade, em geral. O militarismo depende de uma reforma profunda do modo como entendemos segurança, que envolve um debate entre os privilegiados da segurança e os criminalizados por ela, entre os protegidos e os não protegidos, considerados como inimigos. Finalmente, o bolsonarismo assumiu a liderança na dinâmica das forças desses cinco movimento e projetos de que faz parte, por causa de sua maleabilidade, pela sua oferta como Serviçal, feitor de projetos de exploração e acumulação que não sabe realizar sozinho. O bolsonarismo, em especial, mas as cinco forças, separadas e em conjunto, representam o novo colonialismo e estão dispostas a servir uma cosmovisão imperial de mundo, a qualquer custo, pois sua própria existência depende da prorrogação infinita da decadência de um sistema-mundo que vive da exploração da  maioria, que vive dos ganhos que obtém das crises que fabrica. A opressão descobriu que a crise é seu melhor instrumento.

Estamos, todavia, dispostos e preparados a enfrentar esses algozes, em nome do presente e das futuras gerações. Com que roupa?

 

“Das Leben gehört den Lebendigen an, und wer lebt, muss auf Wechsel gefasst sein”[14]

“The question whether one generation of men has a right to bind another (…)  is a question of such consequences as not only to merit decision, but place also, among the fundamental principles of every government (…) and that no such obligation can be so transmitted  (…) I set out on this ground, which I suppose to be self evident, ‘that the earth belongs in usufruct to the living’ that the dead have neither powers nor rights over it”[15]

 

 

Alfredo Attié

São Paulo, junho de 2020

[1] Scott Joplin in E. L. Doctorow. Ragtime. London: Penguin Books, 2006.

[2] Noel Rosa. Com que Roupa.

[3] Montaigne. Essais.

[4] Alfredo Attié. Towards International Law of Democracy. Birmingham: Samford University, 2014.

[5] Alfredo Attié Jr. A Reconstrução do Direito. Existência. Liberdade. Diversidade. Porto Alegre: Fabris, 2003.

[6] Alfredo Attié. “Ocupar o Espaço da Democracia”, parecer à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Washington, D.C., dezembro de 2016.

[7] Alfredo Attié. Oralität, Literacy und Rechtswissenschaft: Erste Aufzeichnungen zur Formulierung eines Forschungsprojektes. 2005.

[8] Alfredo Attié. A Reconstrução do Direito, cit.

[9] Reconstrução do Direito, cit.

[10] Alfredo Attié. Towards International of Democracy, cit.

[11] Alfredo Attié. “Regimi di Mercato e di Stato: Diritti e Doveri nella Costruzione della Democrazia,” na Universidade de Camerino, Italia, novembro, 2019.

[12] Alfredo Attié. “Droit et Développement: Politiques Publiques, Participation Publique et Cycles de Partenariat et de Coopération”, na Universidade de Paris Panthéon-Sorbonne, novembro de 2017; Alfredo Attié. “Interpretação e Poder”, na Universidade de São Paulo, Faculdade de Direito de Ribeirão Preto, agosto de 2019.

[13] Alfredo Attié. “Poder da Ausência” in Eugênio J.G. de Aragão et al. Vontade Popular e Democracia: Candidatura Lula? Bauru: CLACSO, 2018.

[14] Goethe. Wilhelm Meisters Wanderjahre.

[15] Thomas Jefferson, numa carta a James Madison., escrita em Paris, em setembro de 1789.