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Segurança Internacional e Defesa Nacional: desafios para um governo democrático no Brasil

Marco Cepik e Sebastião Velasco e Cruz

Marco Cepik é Professor Titular do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS. Sebastião Velasco e Cruz e professor titular de Ciência Política e Relações Internacionais da UNICAMP.

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Este artigo propõe quatro diretrizes (orçamentária, regulatória, organizacional e estratégica) para uma política de defesa que contribua para a reconstrução democrática e a segurança no Brasil. Nossa proposta parte de uma dupla premissa. Por um lado, as tensões entre as grandes potências, a mudança climática, o aumento das desigualdades e a transformação digital são alguns dos elementos que aumentam a incerteza global nas próximas décadas. Por outro, a trajetória histórica de exclusão social e de instabilidade política no Brasil continua dificultando o desenvolvimento sustentável e a institucionalização de um estado e de um regime democrático. Somos mais de duzentos milhões de brasileiras e brasileiros.

Nos interessa manter a autonomia em relação aos governos e corporações privadas dos países mais ricos e poderosos. Historicamente, países como o nosso procuram evitar os riscos de um enfrentamento direto (balancing) e os custos da mera adesão (bandwagoning), praticando uma estratégia de equilíbrio (hedging) enquanto nos esforçamos para alcançar os países tecnologicamente mais desenvolvidos (catch-up). Com o aumento da incerteza e da polarização no sistema internacional, precisamos ajustar nossa concepção estratégica e repensar o papel de nossas forças armadas.

O protagonismo político indevido dos militares, especialmente desde 2016, vem causando danos para a democracia, mas também para a capacidade de defesa do Brasil e para a confiança do público nas forças armadas. Em pesquisa publicada em agosto de 2022, apenas 30% dos entrevistados no Brasil declararam confiar nos militares (IPSOS, 2022). Vale citar um exemplo do “mito da eficiência geral dos militares”. A gestão de dez meses do General Pazuello no Ministério da Saúde foi marcada pela elevação de 15 mil para 280 mil óbitos pela Covid-19 no país, além de causar prejuízos de R$ 121,9 milhões para o erário, segundo a ação de improbidade administrativa encaminhada pelo Ministério Público Federal. A partir de 2023, portanto, é preciso redefinir a missão e as prioridades das forças armadas.

Nas diretrizes do Programa de Reconstruc?a?o e Transformac?a?o do Brasil (2022-2026) apresentado em junho pelos partidos da frente “Vamos juntos pelo Brasil” (PT, PSB, PCdoB, PV, PSOL, REDE e SOLIDARIEDADE), o item seis do documento fala em compromisso com a defesa da igualdade, da democracia, da soberania e da paz.

Nos parágrafos 100 a 102, o documento defende uma política externa ativa, de recuperação do respeito internacional pelo Brasil. Reitera compromissos históricos e constitucionais com a integrac?a?o da Ame?rica Latina e do Caribe, com vistas a manter a seguranc?a e o desenvolvimento dos povos da região. Segundo o documento, o novo governo trabalhará também por uma “nova ordem global comprometida com o multilateralismo, o respeito a? soberania das nac?o?es, a paz, a inclusa?o social e a sustentabilidade ambiental” (Diretrizes, 2022). No parágrafo 103, o documento menciona diretamente as forças armadas, afirmando que as mesmas “atuara?o na defesa do territo?rio nacional, do espac?o ae?reo e do mar territorial, cumprindo estritamente o que esta? definido pela Constituic?a?o”. No mesmo parágrafo, o documento reconhece que a “plena projec?a?o dos interesses estrate?gicos do Brasil no cena?rio internacional na?o pode prescindir de poli?ticas de defesa e intelige?ncia”. Mas qual o conteúdo destas políticas?

Em manifestações públicas desde abril de 2022, o presidente Lula já reiterou a importância das forças armadas se concentrarem nas suas responsabilidades para com a defesa nacional. Também já abordou o problema dos cargos civis ocupados por militares na administração direta, autarquias, fundações e empresas estatais durante o atual governo Bolsonaro, inclusive com milhares de indícios de irregularidades, conforme relatório da CGU publicado em novembro de 2021. Atores políticos diversos, inclusive militares e a mídia, têm procurado influenciar as atitudes do novo governo nesta área. Este artigo também participa do debate político, analisando o contexto internacional e desdobrando a diretriz geral do programa em propostas de ação.

Segurança internacional

Em janeiro de 2023, Lula tomará posse novamente, depois de vinte anos desde que recebeu a faixa presidencial pela primeira vez. O contexto internacional deste novo mandato é marcado pelos impactos desiguais da pandemia da Covid-19, das mudanças climáticas, da crise econômica e da disputa estratégica entre as grandes potências. Nas últimas décadas, as conexões entre os desafios no âmbito do desenvolvimento e da segurança tornaram-se mais evidentes no sistema internacional. Corretamente, os compromissos históricos e constitucionais do Brasil com a solução pacífica de controvérsias reconhecem que a força militar não tem como solucionar os principais desafios da humanidade, como a catástrofe ecológica, a transição demográfica com aumento exponencial de desigualdades, a transformação digital ou a reconversão das matrizes energéticas.

Ainda assim, os problemas globais agravam polarizações interestatais e sociais, aumentando os riscos de insegurança. Neste sentido, o que chamamos aqui de problemas de segurança internacional são aqueles temas que, ainda hoje, envolvem mais diretamente as ameaças e usos da força armada nas relações entre os países e grupos sociais.

A guerra da Ucrânia e o acirramento em Taiwan marcam um período de crescente instabilidade estratégica no sistema internacional. Desde 2001, quando os Estados Unidos se retiraram do Tratado Anti-Mísseis Balísticos (ABM) e desencadearam uma campanha global contra o terrorismo em resposta aos atentados de 11 de setembro, as instituições internacionais e a cooperação para o desenvolvimento sustentável vêm sendo erodidas por tensões crescentes. De um lado, os Estados Unidos vêm tentando manter sua posição hegemônica de forma cada vez mais unilateral e “revisionista” em relação aos próprios fundamentos legais e informais da ordem internacional. As consequências macroeconômicas da crise financeira de 2008, principalmente o aumento das desigualdades e polarizações nas sociedades mais desenvolvidas, em contraste com o rápido desenvolvimento chinês e sua importância crescente para o Sul Global, colocaram em cheque a globalização de tipo neoliberal. A expansão da aliança militar ocidental (OTAN) para o leste europeu até a fronteira russa e a designação oficial (desde 2017) da China como principal adversária estratégica pelos Estados Unidos indicam uma escolha estratégica arriscada e potencialmente catastrófica: a de tentar compensar militarmente uma perda de dinamismo social, político e econômico cada vez mais evidente. Contrariando as expectativas de muitos depois em passado não distante, tal processo de acirramento de tensões internacionais trouxe de volta a razão geopolítica e, com ela, o espectro de guerra entre grandes potências. A resposta russa, ao invadir a Ucrânia, assim como a assertividade chinesa em redobrar os esforços por meio da Iniciativa do Cinturão e da Rota (BRI), ilustram os desafios colocados para os países em desenvolvimento do sul global.

Alguns requisitos militares básicos para um país poder ser considerado uma grande potência militar no século XXI são a capacidade de segundo ataque nuclear retaliatório, o comando do espaço sideral e a capacidade convencional (armas combinadas e efetivos) de dissuadir e/ou compelir (derrotar) outras grandes potências em caso de ataques (Cepik, 2013). Neste sentido, as grandes potências militares contemporâneas são os Estados Unidos, a Rússia, a China e, possivelmente ainda nesta década, a Índia. Os demais países, em particular os países em desenvolvimento, não se beneficiam da beligerância crescente e de um eventual enrijecimento de alianças que os enquadre em uma nova “Guerra Fria”. Como se sabe, os custos para qualquer país se tornar uma grande potência militar são elevados e, dadas as assimetrias de poder atualmente existentes, concorrem com outras prioridades.

O Brasil é uma potência regional e um país em desenvolvimento. Por necessidade, valores e compromisso histórico, preferimos a paz e o equilíbrio entre as grandes potências. A forma atual da multipolaridade, desequilibrada e polarizada, não interessa ao Brasil. Para o Brasil, as prioridades inegociáveis das próximas décadas continuam sendo eliminar a miséria e a fome, reduzir as desigualdades sociais e regionais, garantir um desenvolvimento sustentável para todas e todos os brasileiros que, na sua valiosa diversidade, constituem a nação. A premissa fundamental de uma política de defesa democrática é que a nação não é formada por um “povo” e um “território” abstratos, mas por pessoas concretas e seus ambientes, pessoas com interesses, problemas e opiniões diversas. Comunidade imaginada, na fórmula feliz de Benedict Anderson (1983), a nação existe no tempo – reconhece-se em um passado e se projeta no futuro. Em cada momento, ela se define pela memória da experiência vivida, bem como pelo horizonte que vislumbra e em direção ao qual ela se move. No nosso caso, esse horizonte é representado pelo imperativo de garantir a todas e todos os direitos básicos (jurídicos, políticos e sociais) associados à condição de membros plenos da comunidade política.

Somos latinoamericanos e nosso país fica na América do Sul. Para que haja equilíbrio estratégico e paz no sistema internacional, o Brasil precisará cooperar intensamente com os países vizinhos, fortalecendo a autonomia coletiva, a integração regional e o desenvolvimento sustentável na América do Sul.

Defesa Nacional

A política de defesa é, portanto, um dos fatores que definem a capacidade de resposta da sociedade brasileira aos desafios internacionais de segurança. O protagonismo político dos militares e a inflação de missões subsidiárias prejudicam a capacidade de defesa externa do Brasil (Amorim Neto; Acácio, 2021). A seguir propomos quatro diretrizes gerais (orçamentária, regulatória, organizacional e estratégica) para uma nova política de defesa.

Em relação ao orçamento, há opiniões em favor de se elevar o gasto federal com defesa para algo equivalente a 2% do Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil, o qual pode chegar a 1,75 trilhão de dólares em 2022 (CNN, 2020). Consideramos esta proposta inadequada por três razões principais. Primeiro, caberia perguntar por que 2% e não 2,5% ou 3%? Os proponentes desta tese não apresentam qualquer justificativa racional para tal percentual, que se limita a repetir a proposta dos Estados Unidos para os países da OTAN. Como a OTAN é uma organização internacional, a fixação de um número convencional como meta comum para o gasto militar pode até ser considerado um dispositivo prático de coordenação entre seus membros. O mesmo se pode dizer sobre o teto de 3% do PIB estabelecido pela União Europeia para o déficit fiscal de seus membros. Agora, trabalhar com percentuais arbitrários como estes no planejamento (de defesa ou fiscal) de um país como o Brasil é manifestação de simples crendice.

A segunda razão para recusarmos tal proposta é o fato dela ser incompatível com outras necessidades mais prioritárias para o Brasil, como os investimentos diretos na área social, na infraestrutura e na pesquisa e inovação. A especificação das necessidades orçamentárias nas áreas mais prioritárias não cabe neste artigo. Porém, é suficiente lembrar da pandemia da Covid-19 e dos quase 700 mil brasileiros mortos até aqui para salientar a inadequação ética e política de uma elevação ainda maior dos gastos com defesa e do protagonismo militar em outras áreas de políticas públicas no atual contexto (Passos; Acácio, 2021).

A terceira razão para nos opormos a qualquer elevação substantiva do orçamento de defesa no atual contexto é que o gasto público federal do Brasil nesta área já é elevado, tanto em comparação com outros países da região, quanto em relação a outras políticas públicas.

Na América Latina e Caribe, o gasto médio com defesa foi de 1,3% do PIB em 2020 (World Bank). No Brasil, o orçamento aprovado para a defesa em 2021 foi de 115 bilhões de reais (valores nominais), correspondendo a 1,5% do PIB. Naquele mesmo ano, por exemplo, o orçamento federal aprovado para a  educação foi de 129 bilhões de reais, dos quais 118,4 foram efetivamente executados. No painel do orçamento federal (SIOPI), encontra-se que os recursos efetivamente pagos pelo Ministério da Defesa (MD) subiram de 70,8 bilhões de reais em 2014 para 91,6 bilhões em 2018, tendo recuado para 66,7 bilhões em 2021. No mesmo período, os valores pagos no Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) foram de 6,6 bilhões (2014) para 8,2 bilhões (2018), recuando para meros 3,2 bilhões de reais em 2021.

Embora o gasto com defesa seja alto, ele é é caracterizado por uma grande distorção. Em 2022, os gastos do MD têm uma distribuição prevista de 78,2% para pessoal, 11,8% para custeio, 2,7% para o pagamento de dívidas e 7,1% para investimentos. Em 2010, os investimentos representaram quase 10% do gasto em defesa, caindo para menos de 6% em 2019 e se recuperando um pouco desde então (Giesteira; Matos; Ferreira, 2021). Mesmo assim, entre 2018 e 2020, enquanto os investimentos foram reduzidos em -11,2%, a remuneração dos militares aumentou 13,1%, de R$ 81,8 bilhões (2018) para R$ 92,5 bilhões (2020), segundo dados do SIAFI (2021). Em contraste, entre dezembro de 2012 e março de 2022 a remuneração média dos militares aumentou 29,6% (descontada a inflação), cinco vezes a média do funcionalismo civil federal (Agência Estado).

Em janeiro de 2022, os vínculos totais de pessoal em exercício no Poder Executivo da União chegavam a 767.670, dos quais 381.060 (49%) eram vinculados ao Ministério da Defesa. No caso dos pensionistas, de um total de 523.826 pessoas, 291.602 eram civis e 232.224 (44%) eram vinculadas a militares. Existem grandes distorções na remuneração, tanto entre carreiras civis (os profissionais da saúde e da educação, maioria dos civis, ganham bem menos do que as chamadas carreiras do ciclo de gestão), quanto dentro de cada tipo de estrutura organizacional, inclusive entre os oficiais superiores e a base dos militares (Portal da Transparência). Como se sabe, mesmo que sejam corrigidas algumas distorções remuneratórias, o gasto agregado com militares da ativa, reserva e pensionistas seguirá a atual trajetória de maneira inercial (Decreto 11.002/2022). Somente a redefinição legal da missão das forças armadas permitirá, a médio prazo, um dimensionamento, preparação e emprego mais adequados para a missão de defesa externa.

Em síntese, ao invés de elevar mais o orçamento de defesa, a diretriz aqui proposta busca combinar esforços para reduzir distorções no perfil dos gastos realizados e para melhorar a sinergia entre a política de defesa e outras políticas públicas relevantes. Com foco na missão de defesa externa, será possível planejar os gastos e capacidades das forças armadas de forma a complementar (e não a competir) com a política externa, a segurança institucional, a segurança pública, a ciência e tecnologia, a política nuclear, o programa espacial e a proteção das infraestruturas críticas.

Do ponto de vista regulatório, é crucial modificar a redação do artigo 142 da Constituição Federal para que as forças armadas priorizem e se limitem à defesa externa. A formulação atual é ambígua, gera ineficiências  e ameaça a democracia. Vejamos: “As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem” (destaque em itálico é nosso). Propomos retirar o trecho final destacado, explicitando que as forças armadas se destinam  exclusivamente à defesa nacional.

O histórico de atribuição de papel político para os militares, presente em cinco das sete constituições brasileiras desde a Independência, indica a importância de se resolver esta questão de uma vez por todas. Como destacou José Murilo de Carvalho (2019), este tipo de linguagem contribui para a reiteração de “um ci?rculo vicioso: as Forc?as Armadas interve?m em nome da garantia da estabilidade do sistema poli?tico; as intervenc?o?es, por sua vez, dificultam a consolidac?a?o das pra?ticas democra?ticas”. O Título I (Princípios Fundamentais) da Constituição tem precedência e deve balizar as missões e prioridades de todos os órgãos da República. As demais hipóteses de emprego subsidiário e/ou excepcional das forças armadas, para a garantia da lei e da ordem durante a vigência de estados de defesa e de sítio por exemplo, devem ser efetivamente subsidiárias e excepcionais.

Nesta direção aponta, por exemplo, a PEC 21/2021, que precisa ser aprovada para que os militares com mais de dez anos de serviço tenham que passar automaticamente, no ato da posse, para a inatividade se forem exercer cargos de de natureza civil na Administrac?a?o Pu?blica, nos tre?s ni?veis da Federac?a?o. Como bem definiram Eugênio Diniz e Antônio J. R. da Rocha (2021), uma vez aprovada a PEC 21/2021 ou dispositivo semelhante na próxima legislatura, será necessário ainda revogar e substituir o Decreto 10.727/2021, pois ali os cargos e funções considerados de “natureza militar” também foram definidos de maneira excessivamente ampla, piorando ainda mais as distorções que já vinham se agravando nos últimos anos.

Ainda no âmbito da regulamentação da missão das forças armadas, será necessário elaborar uma nova Lei Complementara que consolide a diretriz de separação das funções de defesa e de provimento de segurança pública e outras missões que deixarão de ser atribuição regular das forças armadas. A Lei Complementar 97/1999, com as alterações introduzidas pela Lei Complementar 136/2010 especifica atribuições e a cadeia de comando. Além de uma nova Lei Complementar, muitos outros aperfeiçoamentos e adaptações em leis, decretos, portarias, instruções e outros atos normativos, inclusive documentos de planejamento e doutrina serão necessários nos próximos anos. Por exemplo, no caso de missões subsidiárias de Garantia de Lei e Ordem (GLO), o Decreto 3897/2001 já previa que o emprego das forças armadas deveria ser “episódico, em área previamente definida e ter a menor duração possível”. Entretanto, o que se considera legalmente como “insuficiência ou esgotamento de meios” alternativos para prover a segurança pública é vago e precisa ser definido de maneira muito mais rigorosa. Entre 1992 e 2021, houve 145 operações de GLO utilizando as forças armadas em diversas situações, uma distorção que requer mais do que clarificações normativas para a ser corrigida.

Por isto, além da diretriz orçamentária e da diretriz regulatória, a nova política de defesa precisa também de uma diretriz organizacional. Trata-se, nesta dimensão, de fortalecer a capacidade de formular, decidir e implementar políticas coerentes com as prioirdades nacionais e a política externa. Para tanto, o primeiro passo é fortalecer as instâncias de comando político e de coordenação já previstas, como o Conselho de Defesa Nacional (CDN) e a Câmara de Relações Exteriores e Defesa Nacional (CREDEN) do Conselho de Governo. Ambos precisam contar um corpo técnico especializado, predominantemente civil, com instrumentos adequados de monitoramento das evidências e avaliação dos resultados das políticas de defesa, inteligência e relações exteriores. O Gabinete de Segurança Institucional (GSI) precisa ser desmilitarizado e algumas de suas funções de coordenação de crises e da política de inteligência transferidas para a CREDEN e o CDN, com o suporte direto da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN). O restante do GSI precisa ser transferido para um Ministério da Segurança Pública – incluindo missões constabulares e de segurança institucional – a ser separado do Ministério da Justiça, com funções de coordenação e implementação do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP).

Também será necessário fortalecer a capacidade institucional do próprio Ministério da Defesa (MD), hoje enfraquecido pela ocupação sistemática de postos de natureza civil por militares, distribuídos segundo critérios corporativos das forças singulares. Enfim, para que o Ministério da Defesa e as forças armadas possam realizar a defesa externa do Brasil é preciso aumentar muito a integração e interoperabilidade entre a Marinha, o Exército e a Força Aérea. Em particular, é preciso subordinar integralmente os comandantes das forças singulares ao Estado Maior Conjunto das Forças Armadas (EMCFA), o qual deve deixar de ser um órgão apenas de assessoramento do Ministro da Defesa para integrar a cadeia de comando, subordinando-se ao Ministro da Defesa e ao Presidente da República e comandando efetivamente, conforme as ordens recebidas das autoridades civis, o preparo e o emprego conjunto dos meios de defesa nacional. As atribuições dos comandos das forças singulares devem cingir-se ao preparo dos respectivos componentes para que estejam mobilizados e prontos para servirem aos comandos conjuntos (de área e funcionais) em caráter permanente, nas missões de combate e de suporte.

A agenda de reformas institucionais para dar consequência à diretriz estratégica é ampla e não é possível analisar cada desafio neste artigo. Mas vale mencionar a necessidade de se construir uma Universidade Federal de Defesa Nacional multicampi e de abrangência nacional, unificando e modernizando as atuais escolas e institutos técnicos superiores das forças singulares.

O fortalecimento institucional da capacidade de defesa externa do Brasil depende ainda de iniciativas para melhorarmos os mecanismos de controle e supervisão, principalmente as Comissões de relações exteriores, defesa nacional e inteligência no Congresso Nacional (CRE, CREDEN e CCAI). Atualmente, tais comissões são frágeis do ponto de vista técnico e são frequentemente capturadas por debates ideológicos e políticos alheios ao desafio da defesa externa do Brasil. O diálogo democrático e a mobilização da capacidade de formulação de políticas e programas que atendam à diretriz de priorização da defesa externa precisarão ser desdobrados no processo de revisão dos documentos por parte do Congresso Nacional. O próximo governo precisará revisar e adaptar a Política de Defesa Nacional (PDN), a Estratégia Nacional de Defesa (END), o Livro Branco da Defesa Nacional (LBDN) e a Estratégia Nacional de Inteligência (ENINT), dentre outros documentos relevantes, conforme determina .

Finalmente, a diretriz estratégica aqui proposta corresponde ao conceito de defesa em camadas (Kerr; Cepik; Brites, 2014). Guerras contra o Brasil, mesmo que sejam desencadeadas por uma grande potência militar, constituem ameaças caracterizadas por baixa probabilidade, mas de grande impacto caso venham um dia a ocorrer. Sem capacidade de defesa externa, os custos são mais baixos para qualquer eventual agressor obter uma rápida vitória. A dissuasão convencional é o meio para aumentar tais custos, prevenindo a agressão e, se necessário, negando ao agressor a vitória militar (Dall’Agnol; Duarte, 2022). Precisamos de forças armadas comprometidas com a missão de defesa externa e capazes de defender um território de 8,5 milhões de km2, além de uma área de 5,7 milhões de km2 no Atlântico Sul. Esta área imensa pode ser dividida, grosso modo, em dois teatros de operações. Em ambas, a capacidade de monitorar e a presença de forças brasileiras são requisitos comuns. Na frente Oeste-Sul, que corresponde ao interior da América do Sul, trata-se de cooperar efetivamente com os países vizinhos e contribuir para estabilizar a região como um todo. Na frente Leste-Norte, que corresponde ao mar territorial e a zona do pré-sal no Atlântico Sul, trata-se de negar acesso e liberdade de manobra (A2/AD), criando zonas contestadas (Biddle; Oerlich, 2016).

O desenho de forças necessário para desenvolver as capacidades de defesa implicadas no conceito estratégico da defesa em camadas vai muito além da aquisição de sistemas de armas e outras tecnologias.

Ainda assim, alguns dos projetos previstos no Plano de Articulação e Equipamentos (PAED) do Ministério da Defesa podem ser mencionados como exemplos das capacidades requeridas e todavia ausentes. De modo geral, “transcorridos 40% do período previsto para o PAED (ou seja, o equivalente aos dois primeiros Planos Plurianuais PPAs após sua edição), em média, 15,21% das despesas correspondentes foram realizadas” (Giesteira, Matos e Ferreira; 2021, p. 23). Para monitoramento e vigilância, por exemplo, entre 2012 e 2019, foram executados 1,93% dos investimentos previstos para o SISFRON e 0,37% para o SisGAAz. Para garantir a presença, no mesmo período, foram integralizados 24,28% dos investimentos previstos para a construção do Núcleo do Poder Naval e 21,81% para a capacitação operacional da força aérea. Entretanto, os nomes genéricos de ambos os programas não permitem inferir níveis de mobilização, disponibilidade e prontidão. Projetos com incidência mais direta na capacidade de negar acesso e criar zonas contestadas, tais como, por exemplo, o projeto de Defesa Cibernética e o Sistema de Mísseis e Foguetes Astros 2020, também apresentaram baixas taxas de execução, respectivamente, 10,01% e 16,07%.

Atualmente, as forças armadas brasileiras não possuem as capacidades defensivas mais evidentes nos conflitos internacionais correntes, principalmente em termos de mísseis. Por exemplo, a Marinha possui apenas mísseis antinavio Exocet de alcance 75 km em seus oito navios de guerra (sete fragatas e uma corveta). O Exército e o Corpo de Fuzileiros Navais dispõem, no total, de 38 lançadores múltiplos universais, capazes de emprego de foguetes de saturação de área (portanto, não guiados) de vários calibres e alcances, sendo o máximo de em torno de 70 km. A Marinha e o Exército estão tentando desenvolver mísseis guiados de produção nacional. Porém, a AVIBRÁS, principal empresa do setor, encontra-se atualmente em recuperação judicial e seus funcionários estão com os salários atrasados. O principal arsenal brasileiro de mísseis é o da Força Aérea  que, para armar os novos caças Gripen adquiriu do exterior misseis ar-ar MBDA Meteor e bombas inteligentes ar-terra SPICE 250 com alcances, respectivamente, de 200 km e 100km. Entretanto, dos 36 caças Gripen contratados, somente dois já foram entregues e mais quatro estão previstos para 2022. A principal implicação da baixa quantidade e alcance dos mísseis no inventário brasileiro é que a capacidade de repelir agressões é limitada e qualquer potencial conflito se estenderia pelo território nacional adentro, com todos os danos colaterais envolvidos.

Segundo o IISS (2022), atualmente o Brasil conta com 366.500 efetivos nas forças armadas (marinha, exército e força aérea). A mesma fonte indica que temos, por exemplo, 296 tanques principais de batalha, cinco submarinos convencionais, sete fragatas e 186 aviões de combate de diversos tipos e disponibilidade operacional na força aérea. Isto é insuficiente para dissuadir e garantir a autonomia decisória do Brasil em caso de uma crise severa que ameace o país. Vale lembrar o caso da Ucrânia. Não se trata de comparar sistematicamente os dois países, nem de entrar no mérito das causas da guerra, ou de fazer uma analogia direta entre a posição relativa dos Estados Unidos no hemisfério e da Rússia no seu entorno euroasiático. Mas de lembrar que o Brasil quer se manter independente no sistema internacional. Segundo o IISS, no começo de 2022 a Ucrânia (603.550 km2) contava com 196.600 militares na ativa, 858 tanques principais de batalha, uma fragata (afundada pelos ucranianos logo no início da guerra) e cerca de 124 aviões de diversos tipos e prontidão na força aérea. Dada a extrema dependência externa da Ucrânia em meios de defesa, o país tem baixa possibilidade de resistir à invasão russa e, ao mesmo tempo, de resistir à imposição estadunidense para que os ucranianos sigam lutando sem negociar uma paz realista que limite suas perdas. Precisamos priorizar a missão de defesa externa das forças armadas se não quisermos ficar à mercê de grandes potências, mesmo que nenhuma delas no presente seja inimiga do Brasil.

Conclusão

O Brasil real ainda é um país socialmente muito desigual e violento, o que afeta desproporcionalmente a população mais pobre e excluída. As políticas públicas de desenvolvimento sustentável e de segurança pública são prioritárias. Para viabilizá-las, precisamos fortalecer o Sistema Único de Saúde (SUS), o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), o sistema educacional e o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP). Ou seja, cada política pública precisa de instrumentos e capacidades específicas para as suas finalidades. As forças armadas não são o instrumento adequado para outras missões que não sejam a defesa externa do Brasil. Atualmente, além de exercerem protagonismo político indevido e desempenharem missões que deveriam ser subsidiárias e excepcionais em caráter quase permanente, as forças armadas brasileiras tampouco têm capacidade, preparo e perfil para realizar a defesa externa do Brasil, especialmente nas condições em que se dão as guerras contemporâneas. Mesmo o policiamento de fronteiras, rios, litorais, portos e aeroportos deveria deixar de ser função das forças armadas. É necessário criarmos uma força nacional de segurança pública com capacidade e compromisso democrático para exercer adequadamente este tipo de missão constabular (Proença Jr, 2011).

Em geral, uma premissa fundamental para a efetivação das propostas aqui esboçadas é a plena vigência do controle externo republicano e do Estado de Direito. A deterioração do ambiente de segurança internacional indica que existem riscos de perda de autonomia decisória para os países menos ricos e poderosos no sistema. Ainda pior, mesmo que uma guerra contra o Brasil tenha baixa probabilidade de ocorrer, caso venha a ocorrer no futuro teria consequências catastróficas para o desenvolvimento sustentável e soberano do país. Ou as forças armadas servem para garantir a defesa da nação contra ameaças militares externas, ou elas não têm função em um Brasil democrático.

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