Tradução: DMT em Debate
Introdução
Em setembro de 2020, durante um evento do Dia do Trabalho patrocinado pela AFL-CIO, o candidato presidencial do Partido Democrata dos EUA, Joe Biden, prometeu a uma audiência de trabalhadores sindicalizados que ele seria “o presidente mais pró-sindicato” na história do país. Durante seu discurso “State of the Union” em 1º de março de 2022, ele também pediu ao Congresso dos EUA que aprovasse a Lei de Proteção ao Direito de Organizar (PRO-Act), a qual traz mudanças revolucionárias à existente Lei Nacional de Relações Trabalhistas (NLRA) e efetivamente verifica o poder do empregador, atualmente sem entraves, que impede os trabalhadores americanos de formar um sindicato e de alcançar seus direitos à negociação coletiva. A PRO-Act foi aprovada pela Câmara dos Deputados dos EUA no ano passado, mas ainda está pendente no Senado, que possui maioria democrática de apenas um voto – o da vice-presidente dos EUA e presidente do Senado, Kamala Harris.
Apesar das baixas perspectivas de alcançar essa reforma legislativa pró-sindical, o presidente Biden “talked the talk, and walked the walk” de outras maneiras. Ele fez nomeações pró-trabalhadores e pró-sindicatos para muitas agências federais centrais, incluindo o Conselho Nacional de Relações Trabalhistas (NLRB), responsável pela interpretação jurídica e implementação da NLRA. Há agora maioria democrática de 3 a 2 no NLRB, e a particularmente significativa nomeação de Biden de Jennifer Abruzzo, uma ex-procuradora sindical, como Conselheira Geral do NLRB. A Conselheira Geral Abruzzo tem uma grande influência na forma como o NLRB aplica e implementa a legislação. Em memorandos dirigidos aos Diretores Regionais do NLRB, ela solicitou, inter alia: 1- restituição expandida para vítimas de discriminação anti-sindical, incluindo compensação por danos reais e consequentes, bem como os recursos existentes de reintegração e pagamento em atraso; 2- institucionalização do acesso sindical aos funcionários no local de trabalho em casos envolvendo conduta ilegal cometida durante uma campanha de organização (a lei atual não garante o acesso dos organizadores sindicais à propriedade privada), bem como o reembolso ao sindicato de seus custos de organização; e 3- a consideração de emitir ordens de negociação para os empregadores onde um sindicato obteve provas de que a maioria dos trabalhadores o autorizou para fins de negociação coletiva e o empregador não tem uma dúvida de boa-fé quanto ao status de autorização da maioria do sindicato.
Além das nomeações pró-trabalhistas de Biden para agências federais, a potencial expansão do poder coletivo dos trabalhadores tem sido reforçada pela atual conjuntura econômica e pela saúde pública nos Estados Unidos – em uma palavra, um mercado de trabalho muito mais apertado. Desde o início da pandemia de Covid-19 em 2020, milhões de trabalhadores americanos deixaram a força de trabalho por completo. Com a consequente escassez de mão de obra, foi modificado o equilíbrio de poder dos empregadores para os funcionários. Tais condições encorajaram os trabalhadores americanos a buscar salários mais altos, melhores benefícios e melhores condições de trabalho, incluindo proteções adequadas contra a infecção por Covid-19 no local de trabalho. Consequentemente, eles foram motivados a se organizar, não obstante os altos riscos contínuos de rescisões anti-sindicais pelos empregadores.
Além disso, o apoio público aos sindicatos está em alta nos Estados Unidos. Pesquisas indicam que mais de 68% dos americanos aprovam sindicatos, incluindo 47% dos republicanos e 90% dos democratas. E em uma pesquisa realizada pela Sloan School of Management no Massachusetts Institute of Technology (MIT) em 2018, quase metade de todos os trabalhadores não sindicalizados dos EUA se juntariam a um sindicato se tivessem a oportunidade de fazê-lo.
Dado os altos números de aprovação para os sindicatos, inclusive entre os trabalhadores não sindicalizados, por que a taxa de sindicalização é tão baixa nos Estados Unidos? (Na verdade, a taxa de sindicalização caiu de 10,8% para 10,3% em 2021, com a taxa no setor privado atingindo apenas 6,1%. Uma vez que a taxa no setor público é muito maior, 33,9%, a taxa agregada para toda a força de trabalho é um pouco mais de 10%.)
Embora haja uma terceirização contínua na economia dos EUA devido às pressões da globalização, bem como o fato da pandemia de Covid-19 ter reduzido o emprego sindicalizado, há também poucas dúvidas de que o atual regime de direito do trabalho fatalmente permita que os empregadores interrompam e reprimam o crescimento da sindicalização.
O Regime Jurídico das Relações Trabalhistas nos Estados Unidos
Para o direito do trabalho e a adjudicação da justiça do trabalho, há um sistema altamente diverso e disperso nos Estados Unidos que abrange a liberdade de associação (liberdade sindical), negociação coletiva, termos e condições mínimas de emprego, salário mínimo, segurança e saúde, discriminação no emprego e muitos outros assuntos relacionados ao mundo do trabalho. O sistema funciona tanto ao nível federal quanto estadual e com diferentes conjuntos de leis de relações trabalhistas para abranger trabalhadores do setor privado e público. No entanto, a NLRA é a legislação predominante para as relações de trabalho no setor privado. E o NLRB é o órgão administrativo federal responsável pela interpretação, aplicação e execução da Lei, como mencionado anteriormente. O NLRB dispõe de faculdades de regulamentação e poder para produzir jurisprudência com base na análise de petições e queixas. As decisões do NLRB têm carácter definitivo, mas a maioria delas está sujeita a uma análise mais aprofundada pelo sistema judicial federal.
Ao contrário do Brasil, a definição de escopo e jurisdição de um sindicato pela NLRA não se baseia na categoria profissional correspondente a uma base territorial não inferior a um município. Em vez disso, o padrão legal é a “comunidade de interesse” dos trabalhadores, correspondendo a “uma unidade de negociação apropriada”, e tudo isso pode variar conforme as circunstâncias específicas. Geralmente, a unidade de negociação consiste naqueles trabalhadores empregados em uma única empresa ou setores da empresa – por exemplo, os trabalhadores empregados em um supermercado ou cadeia de supermercados do mesmo empregador em uma única área metropolitana. Uma vez determinada a unidade de negociação adequada, o sindicato deve demonstrar que tem a autorização de pelo menos 50% mais um dos trabalhadores para que possa representá-los para fins de negociação coletiva. Se o sindicato organiza os trabalhadores em conformidade, ele pode ser certificado como o agente exclusivo de negociação, com status de negociação exclusiva, uma espécie de unicidade, de certo modo. Se um sindicato é incapaz de demonstrar tal status de maioria, ele não tem direito executório à negociação coletiva. Um empregador não tem nenhuma obrigação legal de reconhecer e negociar com um sindicato sem essa maioria simples.
O regime de direito do trabalho dos EUA fomenta um sistema altamente descentralizado e pulverizado de estrutura sindical, tornando muito mais fácil para os empregadores o combate à sindicalização recorrendo ao seguinte: a demissão de trabalhadores pró-sindicais nos locais de trabalho individuais, embora seja uma prática ilegal; a convocação de reuniões obrigatórias anti-sindicais de público cativo no local de trabalho sem que os organizadores sindicais tenham o direito de refutação; e a manobras de atraso projetadas pelos advogados do empregador. No entanto, não há nada na lei que exija que as empresas usem tais meios nefastos e, em certos períodos da história americana, os trabalhadores foram capazes de se unir e consolidar suas unidades de negociação de modo a criar estruturas de negociação coletiva com as empresas de uma indústria em todo o país, desde que os empregadores não se envolvessem em práticas antissindicais. Esse foi o caso durante a Segunda Guerra Mundial, quando o Conselho Nacional do Trabalho de Guerra ordenou um pacto social entre trabalho e gestão. No entanto, essa prática do empregador tem sido a exceção e não a regra.
Um empregador pode voluntariamente reconhecer um sindicato como representante exclusivo para fins de negociação coletiva se houver prova de 50% mais um de autorização por parte dos trabalhadores. Isso pode ser estabelecido pela verificação de cartões de autorização assinados pelos trabalhadores, também conhecidos como “card check“. Entretanto, após uma decisão do Supremo Tribunal dos EUA em 1974, o empregador não possui nenhuma obrigação legal de fornecer esse reconhecimento, mesmo que o sindicato tenha a evidência de seu status de autorização majoritário. Essa ainda é a lei vigente, não obstante a posição política do Conselho Geral do NLRB de que um empregador deve ter uma “razão de boa-fé” para recusar. Os empregadores podem dizer que só reconhecerão o sindicato após a realização de uma eleição de certificação conduzida pelo NLRB.
E é no período entre a apresentação de uma petição para uma eleição de representação e a própria eleição que os empregadores anti-sindicais utilizarão todos os meios para impedir a sindicalização de suas operações. Os empregadores têm o poder de convocar reuniões obrigatórias de audiência cativa de seus trabalhadores antes da eleição da representação e podem dizer quase qualquer coisa negativa sobre um sindicato, desde que suas declarações não constituam uma “promessa de benefício ou uma ameaça de represália” em violação da Seção 8(a)(1) da NLRA. Essa propaganda e intimidação anti-sindicais não são ilegais em si e os organizadores sindicais não têm o direito de responder ou refutar as declarações falsas do empregador no local de trabalho em tempo real, visto que não possuem direito de entrada nas instalações do empregador. E mesmo que as demissões anti-sindicais sejam ilegais, há muito pouco desincentivo para os empregadores se absterem de tais violações. Mesmo que se verifique que um empregador violou a lei ao despedir trabalhadores pró-sindicais, a pena máxima é a oferta de reintegração e pagamento em atraso às vítimas – um preço muito barato a pagar pela evasão sindical. Os empregadores violam a lei através de demissões anti-sindicais e outras formas de retaliação em 41,5% de todas as campanhas eleitorais supervisionadas pelo NLRB.
Se 50% mais um dos trabalhadores participantes da unidade de negociação optarem pela sindicalização, o sindicato será certificado como representante exclusivo da negociação coletiva por um período de apenas um ano. E o sindicato tem a obrigação legal de representar tanto o membro quanto o não membro igualmente para fins de negociação coletiva – também conhecido como o dever de representação justa. Se o sindicato não conseguir obter um acordo coletivo de trabalho durante esse período de um ano, ele pode ser descertificado. E dada a correspondência quase um para um entre a filiação sindical através de autorização de maioria e negociação coletiva, o grau de densidade sindical tem tudo a ver com o grau de cobertura de negociação coletiva nos Estados Unidos. Tal realidade contrasta diretamente com o Brasil, onde um mínimo de densidade de adesão voluntária não é necessário para sustentar a unicidade ou o monopólio da representação exclusiva para fins de negociação coletiva.
Mesmo que o sindicato consiga obter a certificação, muitas vezes não consegue obter um acordo coletivo de trabalho devido à negociação superficial ou de má-fé por parte do empregador. E tal fracasso significa que o sindicato pode ser descertificado após um ano.
Apesar das vastas diferenças entre os regimes jurídicos do Brasil e dos Estados Unidos que regem a estrutura sindical, os sistemas convergiram, ironicamente, em relação à lei do financiamento sindical ou custeio sindical. A contribuição compulsória sindical foi encerrada pela reforma da CLT de 2017 e a constitucionalidade de sua extinção foi sustentada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2018. Além disso, o Precedente Normativo 119 do Tribunal Superior do Trabalho (TST) também invalida contribuições assistenciais coletivamente negociadas sendo coletadas de não membros, bem como membros do sindicato, uma prática conhecida como segurança sindical nos Estados Unidos. (O efeito combinado de rescindir a contribuição sindical e proibir a cobrança da contribuição assistencial do não membro invalidou 90% dos orçamentos dos sindicatos no Brasil.)
A lógica por trás das cláusulas de segurança sindical é a seguinte: mesmo que o trabalhador individual tenha o direito de não aderir a um sindicato (liberdade de associação “negativa”), o trabalhador também deve contribuir para os custos de sua representação de negociação coletiva, visto que o sindicato é obrigado a representar o não membro e o membro igualmente para fins de negociação coletiva. Caso contrário, haveria uma onda fatal de “free-ridership” (“clandestinidade”), levando à destruição da capacidade legal e de fato do sindicato representar a unidade de negociação.
As cláusulas de segurança sindical são atualmente permitidas em 23 dos cinquenta estados dos EUA em relação aos trabalhadores do setor privado abrangidos pela NLRA. Elas são proibidas em 27 estados da União graças a uma disposição nas Emendas de Taft Hartley de 1947 à Lei Wagner original (com ambos constituindo o atual NLRA), capacitando os estados individuais a aprovar legislação que proíbe cláusulas de segurança sindical. As leis estaduais que invalidam as cláusulas de segurança sindical são conhecidas como legislação “direito ao trabalho”. E como o equivalente à segurança sindical no setor público foi declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal dos EUA em 2018, grande parte do sistema de relações trabalhistas dos EUA é agora “direito ao trabalho”, correspondendo ao atual regime de “direito ao trabalho” no Brasil.
Entra a PRO-Act
Em 11 de março de 2021, a Câmara dos Deputados dos EUA aprovou a PRO-Act que, se aprovada pelo Senado dos EUA e assinada em lei pelo Presidente Biden, remediaria, de forma eficaz e permanente, muitas das práticas anti-sindicais dos empregadores habilitadas pelo atual regime NLRA. Entre outras disposições pró-sindicais e pró-trabalhadores, isso poderia: 1- ampliar a definição de funcionário (para incluir muitos trabalhadores atualmente classificados erroneamente como supervisores), de modo a expandir as garantias de organização e negociação coletiva; 2- permitir que os sindicatos incentivassem seus membros a participar de greves e boicotar ações iniciadas por trabalhadores representados por outras organizações trabalhistas (ou seja, greves solidárias e boicotes); e 3- proibir os empregadores de apresentar reivindicações legais contra sindicatos por se envolver em tal atividade secundária e solidária.
A proposta acabaria com o chamado regime do “direito ao trabalho” em todos os estados da União e proibiria os empregadores de substituírem permanentemente os grevistas econômicos, uma prática atualmente permitida pela lei. Isso tornaria ilegal para um empregador convocar reuniões anti-sindicais obrigatórias de público cativo durante uma campanha de organização e proibiria a prática do empregador de fazer com que os funcionários renunciassem ao seu direito de litígio de ação coletiva contra seu chefe. Além disso, a Pro-Act cria penalidades dissuasivas para práticas sindicais ilegais cometidas pelo empregador e exige que o NLRB busque medidas cautelares no tribunal federal por práticas trabalhistas injustas do empregador. Atualmente, a busca de tal medida cautelar é permissiva e não obrigatória.
A PRO-Act corrige a classificação errônea de muitos funcionários como “contratados independentes”, dá aos trabalhadores individuais o direito de ação privada no tribunal distrital federal se o NLRB não agir em sua reivindicação de práticas trabalhistas injustas do empregador ou rejeitar tal reivindicação após 60 dias. Além disso, permitirá a certificação de um sindicato por meio de “card check” se um empregador cometeu práticas trabalhistas injustas ou outra conduta censurável que afete adversamente o sindicato no processo de certificação através de uma eleição de representação. Por fim, a PRO-Act prevê a arbitragem para garantir um primeiro acordo coletivo de trabalho nos casos de sindicatos recém-certificados, de modo a reverter a prática empregadora de negociação superficial ou de má-fé para impedir um primeiro contrato.
Embora o atual NLRB e a Conselheira Geral do NLRB sejam mais favoráveis à reivindicação dos direitos trabalhistas e sindicais, seu bom trabalho, políticas e decisões podem ser facilmente derrubados em futuras administrações presidenciais a menos que haja uma reforma mais permanente e durável do direito do trabalho. De fato, as soluções mais ambiciosas que a Conselheira Geral Abruzzo propõe em seus memorandos de política provavelmente serão contestadas nos tribunais federais por advogados patronais mesmo que ela consiga implementar algumas delas através do sistema NLRB. A reforma legislativa, conforme prevista pela PRO-Act, cria uma garantia mais duradoura de restauração do poder sindical e coletivo de trabalhadores.
O dilema óbvio para os trabalhadores dos EUA e seus sindicatos é obter a aprovação da Pro-Act no Senado. A estreita maioria democrata de um voto augurará o fracasso certo a menos que a regra de obstrução do Senado, que exige maioria de 60 votos (de 100 membros), seja revisada. Embora o término da regra da obstrução só exija maioria simples, o voto dos democratas atualmente é insuficiente. Por exemplo, Joe Manchin, senador dos EUA pelo Estado da Virgínia Ocidental (Partido Democrata), prometeu seu apoio à PRO-Act, mas ainda se recusa a reformular a regra da obstrução.
O atual equilíbrio de poder no Senado dos EUA não é um bom presságio para o sucesso da PRO-Act, mas muito também depende da capacidade do movimento operário americano de mobilização em massa, lobby e pressão popular para mudar os corações e mentes dos membros mais resistentes da câmara alta no Congresso dos EUA. Os trabalhadores americanos e seus sindicatos devem lembrar o sábio conselho do líder afro-americano dos direitos civis e trabalhistas, A. Philip Randolph: “a justiça nunca é dada; é exigida…”