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Rio Grande do Sul, minas gerais

Eduardo Raguse

Engenheiro Ambiental, Coordenador da AMA Guaíba e do Comitê de Combate à Megamineração no RS

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A frase final de um guia local de Ouro Preto, após apresentar a visitantes muitas informações e curiosidades de uma mina subterrânea desativada, é consciente e dura: “… mas, se realmente querem ver as riquezas que Ouro Preto produziu, não venham para cá, visitem Portugal”, arremata com um sorriso triste. A história da mineração no Brasil, e infelizmente nos demais países da América Latina, desde o descobrimento das jazidas de ouro e prata, é de genocídio dos povos originários, escravização, destruição ambiental, saque e acumulação primitiva de capital, caracterizando, segundo Marx (Livro I O Capital), a própria “aurora da era da produção capitalista”.

Dando um salto para o século XXI, a mineração no Brasil ainda contribui para o extermínio de povos e comunidades tradicionais, suas culturas, seus territórios e seus corpos; oferece os empregos em que mais são precarizadas as relações de trabalho, que mais mutilam e que mais matam; é responsável por incontáveis impactos, e mesmo catástrofes socioambientais – crimes impunes; e seguimos sendo saqueados pelo modelo econômico de enclave mineral vigente, escandalosamente subsidiado e sonegador, que desenvolve somente o subdesenvolvimento. Como disse Galeano, em seu clássico As Veias Abertas da América Latina, “o Brasil continua se desfazendo gratuitamente de suas fontes de desenvolvimento”.

As contradições da atividade mineral são inúmeras, e seus impactos, sejam positivos ou negativos, são distribuídos desigualmente pela sociedade, a renda mineira é apropriada pelo setor financeiro e pelas mineradoras, enquanto os danos atingem campesinos, proletários, quilombolas, indígenas e outros povos e comunidades tradicionais, caracterizando-se como evidente injustiça ambiental. Em termos de impactos positivos da mineração, os argumentos são econômicos (já que não se identificam impactos sociais ou ambientais positivos) e sempre os mesmos, segundo Coelho (2015): 1) aumento da arrecadação, 2) criação de empregos, 3) expansão do mercado de serviços locais como comércio e hotelaria, e 4) equilíbrio na balança comercial (quando se trata de minério para exportação). Porém, em função da Lei Kandir (Lei Complementar nº 87/96), que isenta de ICMS toda exportação do país, a principal fonte de arrecadação da mineração brasileira acaba sendo a Compensação Financeira pela Exploração Mineral (CFEM), que mesmo com a recente atualização (Lei Federal nº 13.540/17) segue com alíquotas vergonhosas, em relação às gigantescas quantias apropriadas pelas mineradoras. Atualmente a CFEM varia de 1% a 3,5% sobre a receita bruta das empresas, dependendo do minério. A título de comparação com países concorrentes, no Canadá o royalty na mineração de ferro é 10%, e na Austrália 7,5% (ALVES et. al., 2020). Cabe dizer também que há grande sonegação de impostos praticada pelo setor minerário no Brasil, apontada por órgãos como o TCU (2018). Assim, na verdade, o impacto positivo na arrecadação mostra-se bastante limitado, pela falta de uma taxação justa e de controle social sobre a aplicação dos recursos arrecadados.

A oferta de empregos também se demonstra limitada quando comparada a outras atividades econômicas, pois o atual estágio tecnológico da mineração tornou a atividade não intensiva em mão de obra, sendo extremamente mecanizada e automatizada, dependente de mão de obra especializada, e na maioria das vezes não absorvendo quantidade significativa de trabalhadores locais. Além disto, a mineração cria dependência econômica e impede o desenvolvimento de outros setores produtivos, destruindo outros empregos. Quanto ao aumento de capital circulante no comércio local, este fato se dá, principalmente, pela migração de trabalhadores em busca dos empregos, porém tal inchaço populacional resulta também em efeitos negativos que podem acabar anulando os positivos. Em relação ao equilíbrio da balança comercial, certamente o aumento das exportações nacionais é uma das grandes razões para o governo federal apostar na produção das commodities da mineração (bem como do agronegócio), com o ônus de manter o país sob a lógica neoliberal do extrativismo predatório.

Quanto aos impactos negativos, em termos econômicos observa-se grande concentração de renda; gastos públicos com infraestrutura que não são compensados pela baixa porcentagem do CFEM; desvalorização de propriedades vizinhas às minas; custo de oportunidade na renúncia ao incentivo de outras atividades econômicas, na não industrialização dos bens-primários (exportados sem beneficiamento), e na pequena taxa de royalties cobrados; esgotamento de recursos não-renováveis; isenções fiscais no PIS/COFINS (além do ICMS, como já mencionado); dependência econômica e social local à mineração (que por sua vez tem o ritmo de trabalho, ou de interrupção das atividades, definido pelo mercado financeiro); enclave mineiro, isto é, o circuito de produção mineira cria poucas relações com o restante da economia local; baixo valor agregado, o grande lucro será realizado em sua plena potencialidade em regiões ou países diferentes dos da exploração.

Em termos socioculturais, observa-se o dumping social e ambiental, caracterizado pela flexibilização de direitos, da regulação e das exigências legais trabalhistas e ambientais; superexploração do trabalho; alto risco de “acidentes” de trabalho; deslocamento de grandes contingentes populacionais para o entorno das jazidas; aumento no tráfego local; expulsão de populações; destruição de formas de produção tradicionais; inviabilização de formas tradicionais de viver; “desenvolvimento” de curto prazo. Tendo em vista a finitude do recurso não renovável e do seu não beneficiamento, há a tendência de que o ciclo econômico de uma mina seja curto: o centro decisório político passa a ser externo, seja pelo mercado internacional ou pelos interesses das próprias empresas. Ainda, para o escoamento dos minérios há a instalação de ferrovias, minerodutos e portos que impactam diretamente as comunidades que estão no trajeto.

Quanto aos impactos ambientais negativos, podem ser citados como principais os seguintes: poluição aérea e sonora causada pelas detonações, circulação, beneficiamento e transporte do material; construção e manutenção de represas de rejeitos, e seus riscos associados; uso de grandes quantidades de água e sua consequente contaminação; alta demanda energética, tanto de energia elétrica como de combustíveis fósseis, e seus impactos associados na geração e uso; destruição de sítios arqueológicos; e destruição da flora, fauna e ecossistemas locais.

Sem nunca esquecer dos rompimentos criminosos das barragens de rejeitos da Mina do Fundão (Samarco/Vale/BHP Billiton), no município de Mariana, em 2015, e da Mina do Córrego do Feijão (Vale), no município de Brumadinho, em 2019, ambos no estado de Minas Gerais, ou do vazamento de bauxita das operações da empresa Hydro Alunorte, no município de Barcarena (PA), em 2018, que por si só nos fazem questionar se os benefícios de tais projetos a estas comunidades são superiores às consequências destes crimes. É importante conhecer um dos exemplos brasileiros mais dramáticos de desenvolvimento frustrado: o Complexo Grande Carajás (COELHO, 2015), também da empresa Vale, o maior projeto de exploração de minério de ferro no mundo, que em 2021 completa 37 anos, localizado nos municípios de Canaã dos Carajás e Parauapebas, estado do Pará. Somente a nova mina do Complexo, a recém implantada S11D, tem capacidade de 90 milhões de toneladas de ferro ao ano; somando-se às outras 4 minas de ferro da Vale na região, o Complexo tem capacidade de movimentar 230 milhões de toneladas por ano. Além do ferro, são também explorados cobre, manganês e níquel.

Quando da implantação do Projeto Carajás, na década de 80, 14 mil trabalhadores se deslocaram para a região. Segundo dados do Atlas Brasil, em 26 anos (de 1991 à 2017) a população de Parauapebas passou de 36.498 para 202.356 habitantes, um crescimento de mais de 550%. Parauapebas é um dos cinco municípios brasileiros que mais exportam, e também registra a maior receita de CFEM do Brasil. Mesmo com um orçamento de R$ 1,68 bilhões em 2020, um PIB de R$ 19,8 bilhões, e o maior PIB per capta do Brasil (R$ 124.181,00), a população de Parauapebas sofre com a falta de serviços públicos básicos (em 2014 apenas 8,1% das famílias tinham acesso à rede de esgoto). Estima-se que a população que vive em ocupações no município seja próxima a 50 mil pessoas. Em 2010 (mais de 25 anos do início do projeto), a população de Parauapebas extremamente pobre era de 4,42% e a população pobre era de 13,17%. Os 20% mais pobres da cidade representavam 3,49% da renda, enquanto os 20% mais ricos detinham 58,01% da renda. 62,98% da população ocupada tinha rendimento de até dois salários mínimos por mês, e o desemprego era de 10,38%. Em 2014 (30 anos do início do projeto), os empregos formais na indústria extrativa eram de 9.478 em relação a um total de 47.095, o que representa 20,1% do total de empregos do município. Estes dados evidenciam a brutal concentração de renda e desigualdade social decorrente da mineração.

A realidade da região quase 40 anos após o inicio das atividades de mineração é de dependência econômica da empresa mineradora, de desvalorização das propriedades e expulsão de populações, superexploração do trabalho (trabalhadores acordam às 3 horas, chegam nas minas às 6 horas, trabalham até as 16h e chegam em casa às 18h30min, sobrando 8 horas e meia para laser e sono, seis dias por semana, sem pagamento deste tempo de deslocamento por parte da empresa), alto risco de acidentes de trabalho, aumento do tráfego, acidentes e deterioração das rodovias, destruição de formas de produção tradicionais (notadamente dos povos indígenas Xikrin do Cateté e Xikrin do DjudjekôXikrin), além do crescimento urbano vertiginoso e desordenado e dos índices de violência, realidade que levou a Vale a uma condenação judicial por dumping social.

O exemplo do Complexo Carajás torna claro o resultado da mineração (ou do modelo de mineração vigente) para as populações locais, demonstra que em relação ao que se produz de riqueza a partir da exploração do subsolo e do trabalhador de Parauapebas, o nível de qualidade de vida que se observa após quase 40 anos de exploração está muito aquém do que poderia se esperar, ou que provavelmente foi vendido às comunidades locais no momento anterior à implantação do projeto. Mesmo se tratando do maior projeto de exploração de ferro do mundo, problemas locais básicos não são resolvidos e conflitos não são solucionados, pelo contrário, são agudizados.

Mesmo com amplas evidências do desastre que significa a mineração para as comunidades locais, a política mineral brasileira do governo Bolsonaro trabalha arduamente para aprofundar ainda mais o saque mineral. Segundo Wanderley, Gonçalves e Milanez (2020), o Brasil segue a implementar o modelo de desenvolvimento neoextrativista, orientado para rápida e massiva exploração dos recursos naturais para exportação, mas agora associado a políticas econômicas ultraliberais, privatistas e de desregulação, potencializadas por ações marginais do próprio Estado: coniventes com crimes; promotor de inconstitucionalidades, práticas antidemocráticas e fake news; além de realizador de ameaças recorrentes a opositores, às instituições da república e aos direitos das minorias. Destacam-se dois exemplos deste contexto: a) a proposta de liberação da mineração em Terras Indígenas, negando inclusive o direito de consulta livre, prévia e informada às comunidades, contrariando assim a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT; e b) a expansão da fronteira da mineração do país, sendo o território do Rio Grande do Sul uma destas fronteiras.

Megamineração no RS, uma outra escala

O termo megamineração, tem sido empregado, em diversos países da América Latina, por diferentes movimentos socioambientais, tais como pela Unión de Asambleas Ciudadanas de Chubut na Argentina (UACCH,2020), Movimiento por un Uruguay Sustentable – MOVUS no Uruguai (BACHETTA, 2015), movimentos contra o projeto “La Colosa” em Cajamarca, Colômbia (CHICA, 2017), entre muitos outros, para distinguir e ressaltar as diferenças entre este modelo econômico – que vem no bojo do neoextrativismo financeirizado, do boom das commodities metálicas, e da consequente reprimarização da economia (COELHO, 2015) – da mineração dita tradicional. A megamineração é baseada em projetos de grande escala, onde usualmente empresas de capital transnacional ocupam e exploram enormes territórios, em ciclos curtos de explotação (em média de 20 a 25 anos) para atenderem interesses de mercado estrangeiro, enquanto a mineração tradicional é aquela realizada em empreendimentos de menores dimensões, para atendimento de necessidades locais, em ritmo minerário que pode ser de longa duração e, consequentemente, com impactos socioambientais menos agudos. São ainda características da megamineração o uso de toneladas de substâncias contaminantes, grandes necessidades energéticas (elétrica e de combustíveis fósseis), utilização de grandes volumes de água por longo período de tempo, geração de grandes volumes de drenagem ácida de minas, níveis elevados de tráfego de veículos pesados, geração de passivos ambientais, altos riscos de catástrofes, expulsão de populações, destruição de formas de produção tradicionais, geração de dependência econômica (enclave mineiro), poluição atmosférica, sonora e hídrica, entre outras (UACCH, 2018; COELHO, 2015).

No Rio Grande do Sul, o Comitê de Combate à Megamineração no RS (rede de entidades constituída para fazer frente à entrada deste modelo econômico no território gaúcho) tem utilizado este conceito para alertar a população gaúcha da gravidade do enfrentamento que está em curso, referindo-se ao porte dos empreendimentos em licenciamento (que são excepcionais, conforme legislação e contexto estadual), mas também ao conjunto que representa esta investida do capital mineral, em grande medida transnacional no estado. Em 2019, eram 22.171 áreas registradas na Agência Nacional da Mineração – ANM no RS, dentre essas, 3.216 em fase de “requerimento de pesquisa”, 6.832 em “autorização de pesquisa”, 1.249 em “requerimento de lavra”, 735 correspondentes a “concessão de lavra”, 1.765 em “requerimento de licenciamento”, 4.702 em “licenciamento”, 154 em fase de “requerimento de lavra garimpeira”, 215 de “lavra garimpeira”, 395 em fase de “requerimento de registro de extração”, 2.548 com “registro de extração” e 360 em “disponibilidade” (RAMOS e RAGUSE in ALVES et al, 2020).

A Resolução CONSEMA nº 372/2018 regulamenta sobre quais atividades se dá o licenciamento ambiental no RS. Seu Anexo I lista os empreendimentos passíveis de licenciamento ambiental, definindo seus portes e potencial poluidor (que pode ser Baixo, Médio ou Alto), o que leva, ou deveria levar, os órgãos licenciadores a aplicarem um nível de exigência nos estudos ambientais compatível com os impactos que os projetos representam.

Aqui cabe registrar que não são claros nem públicos os critérios utilizados para a definição dos potenciais poluidores das diferentes atividades licenciáveis no RS, fato denunciado pelo movimento ambientalista em diferentes momentos e que na 207ª Reunião Ordinária do Conselho Estadual de Meio Ambiente – CONSEMA, realizada em 22 de fevereiro de 2018, dentro da discussão que resultaria na publicação da referida Resolução, em resposta a questionamento da Conselheira do INSTITUTO MIRA-SERRA acerca de tais critérios, o então Diretor Técnico da Fundação Estadual de Proteção Ambiental Luiz Henrique Roessler – FEPAM, respondeu que “é uma discussão a ser feita, mas que não teve tempo hábil para a proposta de Resolução. Resgatou-se de onde saíram os potenciais baixo, médio e alto em que as chefias dos setores definiam o potencial poluidor”. Evidenciando a falta de discussão pública sobre o tema e possíveis fragilidades da base sobre a qual se desenvolve todo licenciamento ambiental no RS.

Para mineração por lavra a céu aberto, o porte dos empreendimentos é determinado pela Poligonal Útil em hectares. A Poligonal Útil é definida, pela Resolução CONSEMA nº 347/2017, como:

“área efetivamente utilizada para o desenvolvimento da atividade mineradora, construída ou não, formada pelo conjunto de vértices georreferenciados, na qual estão incluídas as áreas de extração (lavra), as áreas de depósito, as bacias de sedimentação, estruturas administrativas, britadores e demais equipamentos, acessos internos, principais e secundários, bem como toda e qualquer estrutura ou serviço relacionados à atividade, contida obrigatoriamente na Poligonal Ambiental”

A Poligonal Ambiental, por sua vez, é definida como:

área total requerida para licenciamento, cujos limites não excedam o direito de uso de superfície da propriedade do empreendimento, formada pelo conjunto de vértices georreferenciados, em que estão incluídos todos os constituintes naturais presentes na área, tais como as formações vegetais, Áreas de Preservação Permanente – APP, Reserva Legal – RL, recursos hídricos, além da(s) área(s) de extração, das áreas de depósito, das bacias de sedimentação, das estruturas administrativas, dos britadores e demais equipamentos, acessos internos, principais e secundários, bem como toda e qualquer estrutura ou serviço relacionada à atividade mineradora desenvolvida no local”.

A Resolução CONSEMA nº 372/2018 define que o Potencial Poluidor dos ramos de atividade dos três principais projetos de megamineração (Mina Guaíba, Caçapava do Sul e Fosfato Três Estradas) atualmente em licenciamento na FEPAM, é alto. E define que os portes destas atividades variam de mínimo (lavras até 25 ha de Poligonal Útil), pequeno (de 25 a 50 ha), médio (de 50 a 100 ha), grande (de 100 a 120 ha) e excepcional (acima de 120 ha). Tais divisões de porte refletem a experiência de mineração no estado do RS até a chegada deste modelo de megaempreendimentos que o setor minerário busca implementar neste momento. A diferença de escala entre o tamanho da área a partir da qual os empreendimentos são considerados de porte excepcional e o tamanho das áreas que pretendem ser mineradas por estes projetos é gritante. No RS, um projeto de 4.000 hectares é classificado com o mesmo porte que um projeto de 120 hectares.

Segundo o Anuário Mineral Estadual – Rio Grande do Sul (ANM, 2018), o estado conta com apenas 5 minas de porte grande (produção bruta – ROM – anual maior que 1.000.000 t). Três delas exploram minérios para construção civil (brita, areia, cascalho e argilas, nos municípios de Montenegro, Gravataí e Charqueadas) e duas exploram carvão (nos municípios de Butiá e Candiota). A classificação de porte da ANM se dá em função da produtividade, porém, em termos de área somente a mina de Candiota tem mais de mil hectares, as demais têm entre 100 e 400 hectares.

O projeto Mina Guaíba tem Poligonal Útil de 4.373,38 ha e Poligonal Ambiental de quase 5 mil hectares (COPELMI, 2018). O Projeto Caçapava do Sul tem Poligonal Ambiental de 1.022 ha (VOTORANTIM, 2016), sendo que o conceito de poligonal útil ainda não era utilizado no licenciamento ambiental no RS em 2014, ano em que foi aberto o processo de licenciamento deste projeto. O Projeto Fosfato Três Estradas tem Poligonal Útil de 943,88 ha e Poligonal Ambiental de 3.148,10 ha (AGUIA, 2018), porém é sabido que este projeto é só a primeira fase que viabilizaria um projeto muito maior, denominado pela empresa como Projeto Rio Grande. O Projeto Retiro, licenciado pelo IBAMA, em sua primeira fase tem lavra de aproximadamente 4.800 hectares, sendo que a área total do projeto chega a cerca de 10 mil hectares (IBAMA, 2015).

O projeto Mina Guaíba pretende abrir a maior mina de carvão a céu aberto do Brasil, entre os municípios de Eldorado do Sul e Charqueadas, a cerca de 15km do Centro de Porto Alegre. Expulsaria as famílias do loteamento rural Guaíba City e do Assentamento da Reforma Agrária Apolônio de Carvalho (que já estão sofrendo rupturas e impactos psicológicos graves); impactaria duas aldeias Mbya-Guarani (invisibilizadas no processo de licenciamento); impactaria duas Unidades de Conservação de extrema importância, a Área de Proteção Ambiental Delta do Jacuí e o Parque Estadual Delta do Jacuí; traria riscos de contaminação ao Rio Jacuí, principal responsável pela segurança hídrica de 2 milhões de habitantes de Porto Alegre e região; rebaixaria o lençol freático; impactaria severamente a qualidade do ar, dentre outros muitos impactos. A mina ainda está atrelada a um projeto de Polo Carboquímico para gaseificação de carvão. Propostas absurdamente anacrônicas em tempos de crise climática, sexta onda de extinção em massa de espécies e pandemia global descontrolada de um vírus que ataca justamente nosso sistema respiratório.

Os projetos Caçapava do Sul e Fosfato Três Estradas são localizados na região do Alto Camaquã, e pretendem extrair, respectivamente, zinco, cobre e chumbo em Caçapava do Sul, e Fosfato em Lavras do Sul. Os campos nativos da região são dos mais preservados do Bioma Pampa, tendo classificação como de importância extremamente alta para a conservação, no mapa das Áreas Prioritárias para Conservação da Biodiversidade, publicado em 2007 pelo Ministério do Meio Ambiente. O território apresenta grande vocação para a criação de gado de corte de alta qualidade, além de outros produtos e serviços associados, conservando os campos nativos do Bioma Pampa e perpetuando modos de vida verdadeiramente sustentáveis e em harmonia com o ambiente, ao longo de gerações, em contraposição à atividade mineradora, altamente impactante e que apresenta ciclos econômicos curtos. As e os pecuaristas familiares estão inclusive em processo de reconhecimento de sua condição de população tradicional, justamente por esta coevolução com o ambiente e o território. Estes projetos impactariam tais modos de vida, a qualidade do ar, das águas de nascentes, arroio e rios (como o Camaquã e Santa Maria). O projeto Fosfato, por exemplo, teria uma barragem de rejeitos com o dobro do volume de rejeitos que havia armazenado na Barragem do Córrego do Feijão, em Brumadinho/MG. Em janeiro de 2019, 12,7 milhões de m³ foram derramados criminosamente pela empresa Vale S.A, os sedimentos da lama da Vale chegaram a cerca de 270 km à jusante da barragem no Rio Paraopeba. Abaixo da barragem projetada em Lavras do Sul, além de rica biodiversidade, comunidades rurais, produção agropecuária e pesca, fica a captação de água do município de Rosário do Sul (com mais de 40 mil habitantes).

O projeto Retiro, em São José do Norte, por sua vez, pretende extrair titânio em uma estreita faixa entre a Lagoa dos Patos e o oceano atlântico, com ecossistemas costeiros altamente frágeis e relevantes para a conservação da biota em escala mundial (praias, dunas e banhados). O município tem como atividade econômica predominante a pesca artesanal (realizada por comunidades tradicionais de pescadoras e pescadores ribeirinhos), a agricultura familiar (produção de cebola), e a silvicultura (pinus). Esse ambiente e esses modos de vida seriam inviabilizados, pois não haveria convivência possível com a mineração. Além disto, a cidade tem seu abastecimento de água integralmente realizado a partir da água subterrânea, que poderia ser também comprometido pelas atividades da mina.

Fica, portanto, evidente que, no contexto estadual, tanto pelo porte dos projetos em licenciamento ambiental (com áreas em uma faixa de 10 a 90 vezes maiores do que o definido pela legislação ambiental estadual como de porte excepcional), quanto pelo conjunto de áreas visadas pelo setor minerário atualmente (mais de 10 mil áreas), e ainda pelo escancarado esforço do Governo Leite em viabilizar tais projetos (vide a reestruturação da SEMA – sendo cooptada pela Secretaria de Minas e Energia, a aprovação da Política Estadual do Carvão Mineral e Polo Carboquímico, e as alterações no Código Estadual de Meio Ambiente), que o RS está diante de um cenário que deve ser classificado como de tentativa de implantação do modelo econômico da megamineração.

Os projetos citados acima, para além de seu porte, apresentam uma série de impactos socioambientais, econômicos e culturais às comunidades locais, às cidades de seus entornos, e em última instância ao conjunto da sociedade gaúcha. O modus operandi do setor mineral já é conhecido, não esperemos nada diferente em nosso estado. A fórmula do discurso do desenvolvimento pela mineração é sempre a mesma, e os resultados práticos também.

É preciso entender a urgência do debate, pois o Rio Grande do Sul ainda tem a possibilidade de não ser cooptado por esta lógica do modelo mineral vigente, agudizada pelo contexto atual, ultraliberal e de extrativismo predatório, cujos riscos socioambientais são potencializados pelo crescente desmonte das estruturas institucionais e legais de proteção ambiental e de ciência e tecnologia, em diferentes níveis. O RS ainda tem a chance de se manter como um território livre da megamineração, podendo aprofundar o debate acerca de um modelo mineral soberano e popular, no sentido de construir um real desenvolvimento para o povo gaúcho, e de não se deixar saquear e se destruir para atender aos interesses do mercado financeiro transnacional. Isso só será possível com uma forte organização coletiva da sociedade civil.

 

Referências

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COELHO, Tadzio. Projeto Grande Carajás: Trinta anos de desenvolvimento frustrado. Marabá, Brasil: Ed. Iguana. 2015.

COPELMI Mineração Ltda. Estudo de Impacto Ambiental – EIA – Projeto Mina Guaíba. 2018. Disponível em: <http://copelmi.com.br/eia-rima-mina-guaiba/>. Acesso em: 28 jun. 2020.

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