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Por um programa de Segurança Cidadã Baseado em Evidências

Alberto L. W. Kopittke

Advogado, ex-diretor do Departamento de Políticas, Programas e Projetos da Secretaria Nacional de Segurança Pública, do Ministério da Justiça, no Brasil

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A concepção de segurança cidadã emergiu no continente latino americano a partir da redemocratização dos países da região ao longo dos anos 1980 e 1990 como um programa de segurança anti autoritário, baseado no respeito aos direitos humanos, de proximidade e respeito com as comunidades de periferia e grupos vulneráveis, através da implementação de programas como policiamento comunitário, programa para jovens e intervenções urbanísticas nas áreas de periferia, além de legislações de combate a tortura, proteção a violência contra as mulheres e de combate ao racismo, entre outros.

Essa concepção conseguiu se transformar em programas de governo robustos em diferentes países, que trouxeram avanços importantes na forma de compreensão da numa ordem democrática e em algumas (poucas) experiências trouxe reduções de índices de violência. Passados quase trinta anos, o problema da violência continua sendo um problema que se agrava cada vez mais em grande parte dos países latino americanos e o tema tem sido o principal combustível para o renascimento de movimentos de ultra direita fascistas e uma das principais fragilidades dos setores democráticos do continente.

O problema é que apesar da Segurança Cidadã estar correta em termos de valores humanistas e da defesa dos  princípios do Estado Democrático de Direito, além de um foco correto de proteção aos grupos vulneráveis, isso por si só não traz nenhuma garantia de que as políticas de segurança cidadã realmente consigam reduzir os índices de violência e criminalidade e consigam aumentar os índices de confiança dos cidadãos de que as estruturas democráticas são capazes de lhe proporcionar segurança.

Por outro lado, ao longo desse mesmo período emergiu ao redor do mundo um vasto conhecimento científico sobre as causas imediatas da violência e sobre o que funciona e o que não funciona para reduzir os índices de violência. Chamada por diversos nomes como criminologia experimental, prevenção ao crime baseada em evidências, policiamento baseado em evidências ou Segurança Pública Baseada em Evidências, esse novo campo do conhecimento é o resultado do empenho de pesquisadores e profissionais de diversas áreas de atuação que não se deixaram levar pelo canto da sereia das ideologias da guerra às drogas e do encarceramento em massa como soluções para o problema da violência.

Utilizando principalmente as mesmas metodologias advindas da revolução das evidências da área da saúde, em especial os experimentos randomizados controlados e as revisões sistemáticas, esses pesquisadores foram quebrando crenças e aos poucos foram descobrindo novos tipos de programas e estratégias que começaram a se mostrar efetivas.

O problema é que muitos setores progressistas ainda apresentam resistência para incorporarem as evidências científicas no processo de formulação dos seus programas de governo, em especial quando as evidências colidem com ideias consolidadas em sua base ideológica, formando um conteúdo dogmático muitas vezes fechado a inovações. Os setores progressistas em geral acabam dando muito mais atenção na crítica (correta) ao modelo tradicional de segurança e acabam gastando pouca energia na busca por novas soluções, de forma realmente aberta para submeterem suas ações a avaliações de alta qualidade científica e assim acumularem aprendizado com base nos seus erros.

 

O que sabemos que não funciona

Sabe-se hoje que grande parte das crenças dos setores populistas ou neofascistas da chamada “linha dura” realmente não funcionam e em geral pioram a situação de violência. Evidências muito robustas, que avaliaram experiência ao redor do mundo, vem encontrando que suas propostas em geral não funcionam e muitas vezes provocam efeitos colaterais piorando ainda mais os problemas, como no caso de: escolas com gestão militarizada ou linha dura contra indisciplinas, programas linha dura com jovens em conflito com a lei, como campos de treinamento militarizados ou sessões de susto em prisões, a redução da maioridade penal, o aprisionamento precoce por pequenos delitos, revistas policiais em massa, policiamento de confronto militarizado, aprisionamento em massa, liberalização de armas de fogo e muitas outras intervenções.

O problema é que inúmeras iniciativas que ainda compõem a base do programa progressista na área de segurança também já possuem evidências que também não funcionam.

Um exemplo objetivo desse tipo de colisão entre crenças progressistas e evidências científicas na área da Segurança Pública é o policiamento comunitário, muitas vezes a única estratégia alternativa de policiamento que aparece nos programas políticas progressistas já possui evidências muito claras de que não consegue produzir queda nos índices de violência em circunstância de índices elevados de segurança com a presença de grupos violentos. Por um lado os policiais se sentem desmotivados por terem que realizar atividades que não consideram “de policiamento” e por outro lado, apesar de elevadas expectativas iniciais das lideranças comunitárias, logo é percebido que as coisas não estão funcionando, gerando frustração.

No campo da prevenção, atividades culturais, esportivas e profissionalizantes ainda são a base de programas progressistas para superar a violência. Embora sejam relevantes programas para a grande massa de jovens que sofrem as consequências brutais das diversas camadas de exclusão, tais programas não se mostram efetivos por si só para prevenir comportamentos de risco, como o uso de drogas, a agressividade e a criminalidade e muito menos para fazer com que jovens que já estejam em situação de risco, possam reduzir sua vulnerabilidade.

E as evidências também não vêm encontrando efetividade em grandes programas de prevenção comunitária baseados na ideia da organização de comitês comunitários, a implantação de diferentes serviços públicos nas comunidades, além dos referidos programas sociais para a juventude e se possível a polícia comunitária. Desde a experiência pioneira desse tipo de programa, o Chicago Area Project, implantada pelos pioneiros da Escola de Chicago em 1942, até programas recentes implantados na América Latin, em geral tais programas acabam se pulverizando e resultando num esforço gigantesco de gestores para implementar dezenas de programas simultaneamente, cada um com seus desafios de implantação, sem conseguir ter um foco preciso sobre os grupos violentos que atuam nas comunidades ou então ter metodologias para aprimorar as habilidades protetivas necessárias junto aos jovens das comunidades.

A redução da reincidência criminal é mais um capítulo dos desafios enfrentados pelas crenças tradicionais do campo progressista. Bons projetos nessa área geralmente estão baseados em oficinas de trabalho para os presos e eventualmente algumas oficinas culturais e vivências em grupo. No entanto, as evidências vêm mostrando que esses tipos de programa isoladamente simplesmente não provocam nenhuma mudança na trajetória de criminalidade.

Avançando para outro tema delicado, experimentos feitos para avaliar o impacto da prisão de homens agressores, uma importantíssima vitória dos movimentos feministas, vem demonstrando que as mulheres negras e pobres sofrem com um forte aumento da reincidência das agressões ao longo dos anos seguintes e acabam morrendo anos mais cedo por problemas provocados pelos repetidos traumas. Além disso, programas de visita às mulheres vítimas de violência (no Brasil chamados de Patrulhas Maria da Penha) também podem provocar danos colaterais quando as visitas ocorrem 72 horas após a violência. E em geral os programas de tratamento para homens agressores dificilmente conseguem algum resultado positivo naqueles casos mais graves.

No combate ao racismo e uso abusivo da força,cursos rápidos de treinamento antiracismo ou cursos em direitos humanos não parecem provocar qualquer efeito prático de mudança nos níveis de uso abusivo da força.

 

O que sabemos que funciona

Mas felizmente, passados 50 anos de produção de evidências na área da prevenção à violência, hoje possuímos um volume muito grande de conhecimento sobre o que funciona e o que não funciona, formando uma ciência da prevenção a violência, devidamente produzida com o uso dos melhores métodos científicos (para um detalhamento sistematizado dessas evidências ver Manual de Segurança Pública Baseada em Evidências, do autor deste artigo).

No campo do policiamento diversas estratégias vêm conseguindo excelentes resultados na redução dos indicadores de criminalidade. O modelo de compstat adaptado no Brasil para o Modelo de Gestão Por Resultados e o aprimoramento da análise criminal, já implantados com sucesso em diversos estados do país. A dissuasão focada, estratégia com as melhores evidências do mundo de queda de homicídios, que envolve o fortalecimento e a integração dos setores de inteligência das polícias, Ministério Público e Poder Judiciário, com foco sobre líderes de grupos violentos para a redução dos homicídios, vem apresentando resultados positivos nas experiências do continente. Intervenções urbanísticas em grande escala combinadas com estratégias de dissuasão sobre grupos violentos e posterior entrada de policiamento de proximidade em comunidades de periferia também já se mostraram uma estratégia exitosa. E ainda a estratégia das armas, que envolve a atuação integrada contra os grandes traficantes de armas, também tem se mostrado efetivas.

A redução do uso abusivo da força tem sido conseguida em especial com maior controle, tanto através da criação de órgãos de controle externo com autonomia, poderes administrativos e pessoal próprio para realizar processos administrativos e o uso das câmeras nos uniformes para as situações mais cotidianas de uso abusivo da força, quanto através da atuação forte e direta dos Ministério Público Federal e dos Governos Federais sobre instituições policiais que apresentam padrões reiterados de uso abusivo da força e alta letalidade policial, além de avanços na estruturação de políticas claras e objetivas sobre uso da força e na maior transparência possível dos indicadores de uso da força.

O treinamento reiterado e permanente em desescalada e introdução da filosofia de procedimento justo nas interações internas e externas vem apresentando bons resultados. Além de bons programas voltados para a saúde mental dos policiais.

No campo da prevenção, programas de prevenção primária, como treinamento parental, programas de desenvolvimento de habilidades na educação infantil e educação socioemocional vem conseguindo grandes melhorias, em especial para aquelas crianças que convivem em situações sociais e econômicas adversas. Já programas de identificação precoce de situações de risco e a terapia cognitivo comportamental mostram excelentes resultados para jovens que se encontram em situações de risco intermediário e Terapias multisistêmicas com foco familiar se mostram muito exitosas para jovens em situações de maior gravidade.

O grande desafio da responsabilização criminal e do tratamento penal também já possuem avanços muito significativos e que vem auxiliando diversos países do mundo a reduzir os níveis de reincidência criminal, desencarcerar jovens e reduzir custos. Bons programas de redirecionamento combinados com Terapia Cognitivo Comportamental, o tratamento ao uso abusivo de drogas, a Justiça Restaurativa e programas de apoio a carreira profissional aplicados em contextos comunitários, vem sendo ferramentas muito exitosas para indivíduos de baixo risco, para quem o sistema prisional provoca efeitos criminógenos muito graves e que contraditoriamente compõem grande parte da massa carcerária dos países.

Por outro lado, para indivíduos de médio e alto risco, para quem as prisões se mostram uma necessidade, vem conseguindo resultados surpreendentes de redução da reincidência criminal quando seguem os pressupostos do modelo Risco-Necessidade-Responsividade. Esses indivíduos devem receber tratamentos penais específicos de acordo com as suas necessidades criminogênicas, passando por metodologias que já possuam evidências científicas de efetividade para tratar o uso abusivo de drogas, a impulsividade, pensamentos distorcidos e relacionamento com pares negativos. Tudo isso em ambientes prisionais adequados, em termos de infra-estrutura, segurança interna, evitando que grupos violentos assumam o controle interno das unidades prisionais, respeito aos direitos dos presos e os serviços básicos de saúde, educação e assistência.

 

Conclusões

Obviamente a Criminologia Experimental não se trata de uma “ciência dura” ou da “medicina”, onde se encontram respostas e tratamentos que chegam a resultados positivos de mais de 90% com elevadíssimo nível de certeza estatística. Em nossa área, as evidências apontam direções e caminhos, onde programas exitosos alcançam 10 a 20% de resultados positivos e apenas alguns programas vêm conseguindo resultados de redução dos índices de violência da ordem de 30 a 40%.

E mesmo que grande parte dessas evidências venha de países anglo saxões de alto desenvolvimento econômico, muitos estudos vêm encontrando que os mesmos tipos de programa provocam efeitos muito semelhantes também em países da América Latina.

Estruturar um programa de Segurança Cidadã utilizando o conjunto de evidências sobre o que funciona e o que não funciona e realizar gestões com alta capacidade de realizar reformas operacionais, mais do que grandes e impossíveis reformas estruturais, com coragem para modificar “modus” operacionais em todas as áreas, das salas de aula, passando pelas ruas, pelos tribunais e pelas prisões tem um grande potencial para realmente reduzir os índices de violência no curto prazo e com sustentabilidade no longo prazo.

A questão chave e mais importante de todo esse processo não é a defesa dogmática dessa ou daquela metodologia como “salvação”, mas colocar em prática uma visão “antinegacionista” e “antidogmática” na área da prevenção da violência, estando aberto a inovações e sempre submetendo seus programas a avaliação mais criteriosa e independente possível. Somente assim o campo democrático e em especial o campo progressista poderá ir acumulando conhecimento sobre o que funciona e o que não funciona, mostrando para a sociedade que é possível reduzir os índices de violência dentro dos marcos do estado democrático de direito.

Uma sociedade com medo e que não enxerga alternativas concretas para reduzir a violência sempre será uma sociedade disponível para o facismo. E por isso apresentar um programa consistente em termos de valores que defende, mas também em efetividade para  reduzir os índices de violência é um elemento fundamental para reativar a confiança da sociedade na democracia e nos próprios direitos humanos e frear a nova ascensão do fascismo.

 


*Alberto L. W. Kopittke: Advogado, ex-diretor do Departamento de Políticas, Programas e Projetos da Secretaria Nacional de Segurança Pública, do Ministério da Justiça, no Brasil