Um direito penal midiático, vazio de conceitos e doutrina, que não entende o que é “garantismo” nem “punitivismo”, tem inspirado um método largamente disseminado pelos oráculos dos meios de comunicação, para julgar -pelo Poder Judiciário- se a ordem jurídica vigente -particularmente na área penal- é racional ou não. É o direito midiático, prático e licenciado, que hoje instrui uma parte do imaginário dos que nos julgam no cotidiano.
O método exigível, todavia, para considerar se uma ordem jurídica é racional, segundo o mestre Juarez Tavares, pede o cumprimento de alguns requisitos: clareza nos seus conceitos estruturantes, para que estes possam ser identificados por qualquer pessoa no ordenamento fático; uma sequência “lógica”, no seu sistema de normas; o reconhecimento da criminalização através de condutas; e, finalmente, a exigência de “subordinação das normas às características da conduta descrita”[1]. As condutas que devem estar presentes -por exemplo- no delito de improbidade, são as que permitem aos servidores enriquecerem ilicitamente, que causem prejuízos aos cofres públicos e que –mesmo sem gerar prejuízo ou causar enriquecimento– atentem contra os princípios da Administração Pública.(Lei 8429/92 arts. 10 e 11).
Vale recorrer à história. Os 285 anos da Inquisição em Portugal fizeram-na uma “instituição poliédrica,” pois seus impactos se irradiaram à totalidade da sociedade. Ela assumiu –assim– uma influência hegemônica “como ordem religiosa e cultural em transformação”[2], que repassou formas jurídicas a toda a ordem do Estado futuro. Ora como ensejadoras de uma racionalidade democrática na sua dialética progressiva (à exemplo da presunção de inocência), ora como perversão, no Estado de Direito (como “exceção”) assumida na práxis do Sistema de Justiça.
A diferença entre os inquisitórios da Idade Média e o “devido processo legal” da “regra da lei”, no governo “per leges” e “sub leges” (Bobbio) –mais além dos fins expropriatórios da Igreja Católica– foi o caráter genérico e personalíssimo, do que os regentes da Inquisição consideravam como crime. Para estes a própria pessoa, desde que devidamente apontada pela autoridade religiosa, era o próprio “tipo penal”: o judeu anticristo, a mulher fora dos padrões medievais, “a bruxa”, o divergente da dogmática católica romana, personificavam o delito. Aquilo que no processo do Estado moderno é a descrição de um tipo, nos inquisitórios medievais estava contido na própria pessoa desviante das condutas aceitáveis à época.
É nos regimes representativos modernos que se formam as condições “para uma substancial juridificação da política”,[3] mas também, para o seu contrário: a politização e partidarização do Direito. Os inquéritos do macartismo que apontavam pessoas determinadas como “contra a lei”, eram selecionadas pela política do Congresso americano. No caso Watkins v Estados Unidos, (354 US 178, 1957), quando a Suprema Corte julgava um dos “inquéritos” da época, foi debatido o “alcance” das investigações das Comissões Parlamentares. Viu-se –ali– que elas desviavam da sua função (que seria a de “recomendar legislações novas”) tornando-se controles do (que julgavam) “vícios”, em pessoas determinadas (…). Assim, reputações foram assassinadas, famílias destruídas e “negócios (foram obstruídos)”, sem base em processos regulares, enquadrando previamente pessoas “desviantes”, sem que elas violassem” qualquer lei”[4].
É possível selecionar momentos de mutação paradigmática na ordem jurídica concreta. Eles ocorrem frequentemente quando o Juiz ou o agente do Ministério Público, no exame do ato de improbidade -segue exemplo- perde a imparcialidade e denuncia (ou condena), não segundo a lei e as provas, mas a partir de impulsos do “espírito da época” (Hegel) e o Sistema de Justiça fica envolvido num ambiente político distópico, no qual são tornadas irrelevantes as tradições humanistas do direito moderno, episódios visíveis nos dias que correm.
Na hipótese, é deixado de lado o comportamento concreto dos agentes públicos processados e o Ministério Público, bem como o Juiz, não avaliam se os procedimentos supostamente delituosos se originam da vontade de delinquir ou ocorreram pela “virtu” de “servir”. O agente público -na cabeça o Juiz- é então separado da sua função política de Estado para ser considerado como um sujeito “político” de Partido. Sobre este terreno se erguem as sentenças de larga repercussão mediática! É a força de direito penal midiático, que faz um “controle externo” do Poder Judiciário, a partir do espírito de turba. Os cruéis danos morais, políticos, pessoais, financeiros e familiares, que daí decorrem, são ignorados, com o Estado punindo “vícios” políticos, não constantes nas normas, mas que caracterizam pessoas.
Destaco sobre este tema decisão do STJ – AgInt no Agravo de Recurso Especial nr. 846356-RS (2016/ 0009406-6) que envolve as contas de três ex-Prefeitos de Porto Alegre (dentre eles, o signatário deste artigo), em acordão que reforma decisão de 1ª instância, que tinha sido mantida no TJ RS: “Há orientação firme desta Corte Superior, expressando que não se caracteriza como ato de improbidade a contratação temporária de servidores sem concurso, quando existente lei local com tal previsão”. E cita vários precedentes de lavra dos Ministros Benedito Gonçalves, Herman Benjamin e Mauro Campbell Marques, (Acordão da lavra do Ministro Napoleão Nunes Maia filho). Trata-se de revisão de sentença condenatória dos três Prefeitos que baseados em Lei Municipal, contrataram servidores, para atendimentos emergenciais e de urgência, no Pronto Socorro da Capital, cumprindo, mandato público, originário da própria Constituição Federal, na área da saúde pública. (art. 196 da C.F.).
Na sentença condenatória de 1ª instância, assim reformada, o próprio Juízo asseverava, honestamente, que não houve nenhum tipo de proveito, pessoal ou de terceiros, nem vantagens diretas ou indiretas para os Prefeitos que ele condenava, nem prejuízos financeiros diretos ou indiretos ao Poder Público. Mesmo assim, além da multa de 5 mil reais imposta aos Prefeitos, estes foram condenados a perda dos direitos políticos por 5 anos!
Quando a imparcialidade do Juízo é dissolvida -consciente ou inconscientemente- pelo espírito da época na política, sua decisão pode sufocar a Constituição. Só assim é possível entender a sentença da 1ª instância, mantida no TJ, que desconsiderou “que os princípios de um direito positivo -no caso agir segundo a lei- são parte integrante deste direito positivo e, portanto, participam do seu modo de ser e da sua estrutura temporal”[5]. Agir segundo uma Lei Municipal, para atender mandamento Constitucional, só pode ser considerado delito num universo autoritário, onde o Juiz produz a norma, para então expressar sua visão medieval de Justiça Penal.
[1] TAVARES, Juarez. Fundamentos de teoria do delito. 1ª ed. Florianópolis: Tirant lo Blach, 2018, p.63.
[2] MARCOCCI, Giuseppe e PAIVA, José Pedro. História da Inquisição Portuguesa (1536-1821), Editora A Esfera dos Livros, 1993, p. 15.
[3] PORTINARO, Pier Paolo. “Para além do Estado de Direito: tirania dos juízes ou anarquia dos advogados”, in Pietro Costa e Daniel Zolo (Org), O Estado de Direito, História, teoria, Crítica. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 467 e 468.
[4] SWISHER, Carl Brent. Tradução:Arlette Pastor Centurion:Historic Decisions of the Supreme Court.Rio de Janeiro: Editora Forense, 1994, p.188.
[5] LARENZ, KARL. Traduccion y presentacion de Luis Díez-Picazo. Derecho Justo: fundamentos de ética jurídica. Madrid: Civitas,1991,p. 197.