Artigo

Artigos Recentes

Os vírus são natureza politizada pelos Governos genocidas. O genocídio é política, naturalizada pela força do Estado.

Rogério Viola Coelho

Advogado, membro do Conselho Curador DDF

Compartilhe este texto

O imperativo do lockdown e o protagonismo do presidente 

No início de março Miguel Nicolelis reafirmou, em entrevista na CNN, que era necessário impor um lockdown imediato em todo o território nacional, projetando sua duração para quatro semanas. A medida se impõe porque a vacinação avança em ritmo dez vezes menor do que o necessário, por retardamento na aquisição de vacinas. São vacinadas 200 a 300 mil pessoas por dia, quando deveriam (e poderiam) estar sendo vacinados 2 a 3 milhões. Mesmo que sejam adquiridas agora muitas milhões de doses, não chegarão em tempo hábil para impedir o avanço do contágio e o crescimento das mortes.

Nicolelis previu que sem o lockdown imediato, em todo o território, dentro de duas semanas passaríamos das 2.000 mortes por dia e até o final do mês chegaríamos a três mil. Depois poderíamos chegar ao colapso do sistema funerário, com a consequente propagação de infecções de toda ordem, geradas por cadáveres insepultos. A realidade, após duas semanas, veio contrariar os sábios que logo o taxaram de alarmista. A média diária na segunda semana  já excedeu as duas mil previstas e está chegando a três mil.

Foram ampliadas as restrições de funcionamento do comércio e serviços, além do controle de reuniões em lugares públicos, mas estamos ainda distantes do lockdown indicado pelo cientista. Desta forma, cresce a resistência das empresas, dando ensejo à manifestações e carreatas ao longo do território, estimuladas pelo protagonismo de Jair Messias, convocando a coragem de todos os brasileiros para “enfrentar de peito aberto” o inimigo invisível. E não se pode dizer que não convence, com sua retórica messiânica, milhões de brasileiros, muito além dos seus fiéis seguidores.

Ele ainda tem um apoio irredutível no palco da tragédia que ajudou decisivamente a montar, conforme revelam as pesquisas. Sua aprovação vai muito além do seu séquito de seguidores, estendendo-se aos grupos sociais que estão sendo chamados ao sacrifício imediato, com a proibição temporária de suas atividades. Grupos que abrangem, além de micro, pequenos e médios empresários, amplos contingentes de trabalhadores subordinados, micro empresários periféricos, trabalhadores autônomos, etc. Deveria causar estranhamento que não mais seja cogitado qualquer subsídio do Estado para cobrir os danos impostos a esses setores da sociedade. Tornou-se desnecessário falar da impossibilidade financeira do Estado para subsidiar o universo social marcado para o sacrifício. Parece que a crença no seu estado falimentar está internalizada no imaginário coletivo, operando como uma premissa impensada que guia todos os pensamentos.

Diante do avanço do vírus no segundo ano da ocupação de nosso território, o Presidente segue invocando o postulado da autonomia plena do funcionamento do mercado, bloqueando medidas restritivas de sua atividade para defesa da sociedade. E resiste continuadamente às intervenções reclamadas do Estado que subsidiariam os agentes econômicos para suportar as restrições temporárias à suas atividades. A condução de seu governo ao longo da ocupação de nosso território pelo vírus equivale à postura do governo colaboracionista do general Petain na ocupação do território francês pelos nazistas, no curso da Segunda Guerra Mundial.  Faz lembrar também o livro “A Peste”, de Camus, no qual o grande humanista da ficção moderna, falecido em 1960, compara metaforicamente a epidemia da peste em Orã/Argélia à ocupação nazista do território francês na Segunda Guerra. Em ambas as hipóteses a violação dos códigos sociais de convívio humano tornam transparentes o que as pessoas têm de pior e de melhor na vida comum.

 

A Constituição prevendo calamidades públicas aponta a adoção de tutelas  

Agora, com a pandemia acelerada e o cerceamento das atividades econômicas, é retomado o Auxílio Emergencial para os desempregados e informais, reduzido à valores ínfimos e encolhendo do universo dos beneficiários. Não mais se fala em  medidas destinadas a subsidiar as empresas micro, pequenas e médias em crise, além dos milhões de trabalhadores por conta própria. No seu início, há um  ano, o governo só agiu pressionado e tratou de esvaziar o apoio financeiro na fase da execução. Não caberia à oposição e aos movimentos sociais conjugados defender uma forte intervenção do Estado para viabilizar o lockdown necessário e inadiável?

Duas lideranças do campo da oposição assumiram atitudes propositivas fundamentadas na Constituição. O governador Flávio Dino, defendendo a formulação de um programa emergencial, mostra que a Constituição torna obrigatória a tutela do Estado em caso de calamidade pública, da mesma forma que em caso de guerra, prescrevendo os meios de intervenção. No §3° do artigo 167, ela autoriza “a abertura de crédito extraordinário para atender a despesas imprevisíveis e urgentes, como as decorrentes de guerra, comoção interna e calamidade pública”. Esta tutela pode ser adotada por medida provisória, conforme dispõe o § 1°, alínea d, do artigo 62.  Já no artigo 148 ela autoriza os empréstimos compulsórios, que devem incidir sobre os estamentos superiores da sociedade, em face do princípio da progressividade das imposições tributárias, positivado no § 1° do artigo 145,  primeiro sobre os bancos, com lucros crescentes.

Ciro Gomes, por sua vez,  apontou o caminho mais célere para o Estado buscar as receitas necessárias à cobertura da operação de apoio à fração da sociedade chamada ao sacrifício. Primeiro o Tesouro emitiria letras no montante de 600 bilhões de reais, compradas imediatamente pelo Banco Central, que detém moeda retirada de circulação em montante várias vezes maior. Para resgatar as letras emitidas, o Governo faria um empréstimo compulsório, incidente sobre lucros e dividendos, além das grandes fortunas, estimando aí uma arrecadação de 300 bilhões ao ano. Vencida a pandemia, na saída da crise, o Estado faria uma imposição tributária sobre as mesmas bases, amealhando recursos para quitar o empréstimo anteriormente feito.

A base de incidência eleita por Ciro coincide com a do projeto construído pelo Instituto Justiça Fiscal (IJF) visando a imposição tributária sobre os ricos, com dimensionamento semelhante ao da arrecadação anual prevista. Projeto que denuncia o estado de imunidade conquistado pelos estamentos superiores da sociedade na década de noventa do século passado. Uma situação existente em pouquíssimos países, nenhum deles desenvolvidos ou do grupo dos considerados emergentes.

A intervenção do Estado, além de ser um dever ético, é também um dever jurídico prescrito pela Constituição. A supremacia do direito à vida enseja a autorização para o governo suspender ou reduzir o exercício dos demais direitos, como revela o inciso XXV do artigo 5º :“- no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior se houver dano.”. Na proibição ou suspensão parcial de atividades funcionais das empresas, há uma restrição ao exercício do direito de propriedade. Cumpre observar que a norma estabelece desde logo a responsabilidade do Estado, decorrente dos danos causados, dando ensejo à obrigação de indenizar. A consagração da responsabilidade do Estado indica que ele deve também oferecer apoio financeiro às empresas para prevenção ou compensação do dano iminente.

 

 As projeções possíveis e as proposições adequadas diante da calamidade

Parece inadiável a proposta de um projeto emergencial pelos movimentos sociais e as forças de oposição, denunciando a falsa premissa da impossibilidade financeira do Estado, internalizada no imaginário coletivo pelos canais midiáticos do mercado. Tais canais do mercado operam chamando os economistas das cátedras das nossas universidades, especializados nas universidades da pátria do novo liberalismo. Esbarra sempre nessa premissa o socorro imediato, devido pelo Estado, à fração da sociedade chamada ao sacrifício. E Bolsonaro pode continuar mobilizando os milhões de micro, pequenos e médios empresários – além de trabalhadores  por conta própria – para sua cruzada contra as medidas de isolamento social.

Assim ele seguirá sendo a esperança de milhões de pessoas “marcados para sucumbir“, que expressam seu apoio nas pesquisas elevando o conceito “bom e ótimo” de 15 a 20 % para 30 a 40 %, e mantendo 30% do conceito “regular”, com oscilações reduzidas. Pelo que as pesquisas mostram – e muitos observadores não querem ver – mais de 40% do povo não debita ao governo o avanço da crise e a recessão. E os grandes empresários silenciam vendo trilhado o caminho do desmonte do nosso Estado social incipiente, com apoio militante de setenta a oitenta por cento dos estamentos inferiores do mercado e de milhões de trabalhadores por conta própria, esperançados e dando sustentação suficiente ao governo.

Esta base social parece não saber que tem direito à tulela do Estado com o cerceamento de suas atividades. Nada abala sua crença nos efeitos benéficos das reformas trabalhista e previdenciária, além de outras que levam à redução dos gastos sociais, propiciando desoneração tributária. Com esta esperança, todos suportam os efeitos da recessão, e paradoxalmente, agregam seu apoio ao dos seguidores fiéis.

Chegamos aqui a uma situação extrema, que exige a adoção imediata do lockdown diante da avalanche das mortes. Ainda assim os grupos dirigentes das instituições do Estado seguem negando o seu dever de intervir. A negativa persistente dos subsídios necessários potencializa os efeitos recessivos produzidos pelas políticas de austeridade que – segundo mostrou Joseph Stiglitz – tendem a gerar uma espiral descendente na atividade econômica, conduzindo o País à depressão. O agravamento voluntário da crise parece uma estratégia do movimento proto-fascista para levar ao colapso da economia e ao caos social, que justificariam uma intervenção militar. Assim emerge uma questão: o avanço nessa direção não pode ser um objetivo estratégico do governo em sua escalada contra a democracia?

Bolsonaro parece encarnar a utopia do mercado autonomizado da sociedade, em busca de afirmar seu domínio sobre ela. Utopia constituída logo após sua institucionalização, no início da primeira revolução industrial, a partir da Inglaterra. Desde então, os seus agentes lutam pelo afastamento de quaisquer limites à sua expansão, ou controle do seu funcionamento, para que o preço da força de trabalho, submetida a utilização sem limites, seja fixado pela lei da oferta e da procura sem nenhum ônus acrescido.

O projeto da instituição do mercado de impor o seu domínio total sobre a sociedade não chegou a se realizar no inicio, em face da resistência imediata dos setores diretamente atingidos. Assim, gerando um movimento na base da sociedade que se expandiu e acabou impondo ao mercado um controle relativo, já no fim do século XIX,  através do Estado culminando com o advento do Estado social. Esta utopia foi retomada pelo mercado na década de sessenta do século XX, com a doutrina do novo liberalismo, concebida para reconduzi-lo à sua liberdade primordial. Jair Messias – eleito pelo partido orgânico do mercado para conduzir a sociedade nessa travessia – parece avançar por linhas tortas, sacrificando algumas vidas, mas com firme determinação e êxito relativo até agora. Quem sobreviver à pandemia verá o resultado final.