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Objetivo estratégico de Bolsonaro exclui sua culpabilidade na prática de genocídio e crimes contra a humanidade?

Rogério Viola Coelho

Advogado, publicou "A Relação de Trabalho com o Estado"

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I – O equacionamento da questão e hipótese considerada.

II – As tutelas penais dos direitos fundamentais à vida e à saúde

III – A responsabilidade individual e a tipologia das ações sociais

IV – A sociologia weberiana e a ética de Jair Messias

V – A ética de Jair Messias frente a ética da constituição

VI – O direito à vida e à segurança na gênese lógica do Estado de HOBBES

VII –  Evoluindo para uma decisão fundamentada

VIII – A negação do individualismo e dos direitos do homem na essência do fascismo e na base do novo liberalismo

 

A Publicação Democracia e Direitos Fundamentais assume a defesa destes direitos, consagrados em nossa Constituição, priorizando a pesquisa das vias de sua efetivação. Com este propósito, estuda os princípios e as obrigações fundamentais, assim como as instituições destinadas a assegurar o seu exercício. Este artigo se insere no terceiro número temático da Revista, dedicado ao direito à vida e ao direito à saúde.

O texto problematiza a prática de genocídio e de crimes contra a humanidade, imputados ao Presidente, examinando em particular a questão da sua intencionalidade.  Busca a sua identificação revisando as ações e pronunciamentos reiterados, recorrendo aos conceitos sociológicos weberianos fundamentais, ao conceito e a tipologia das ações sociais.

Identifica no exame dos meios eleitos para assegurar a plena liberação das atividades econômicas, ações conscientes que induzem ordinariamente  o crescimento das mortes. Confronta então sua racionalidade estratégica com ética subjacente no direito penal e a racionalidade axiológica da Constituição.

 

I – O equacionamento da questão e hipótese considerada.

Depois do Ministro GILMAR MENDES alertar para comprometimento das forças armadas com  o genocídio em curso, com a manutenção indefinida de um general da ativa no Ministério da Saúde, vários artigos atribuem a prática deste crime ao Presidente. Em geral imputam-lhe incompetência, negligência, ou imprudência, que são as formas canônicas de culpa. Com isto afastam a configuração do crime, que exige a presença de dolo. Mostrando bem a relação causal da sua ação com a amplificação das mortes, constituem forte denuncia política. O dolo, exigido nos crimes contra a vida, deve ser necessariamente deduzido nas denúncias internas, perante o STF, e nas representações perante o Tribunal Penal Internacional.

Nossa hipótese, reconstituindo seus atos e gestos, mais suas manifestações bizarras, é de que JAIR MESSIAS revela ter consciência plena de que irá detonar a ampliação imediata das mortes com a proposta de supressão do isolamento social e das quarentenas. Daí porque reitera a cada passo que a eliminação de milhares de vidas seria desprovida de significação ética ou jurídica,  por tratar-se de mera antecipação do fim inexorável de ‘todos nós’.

Por cautela, assume um discurso destinado a excluir a sua culpabilidade, pensando na eventualidade de lhe ser atribuída consciência plena do efeito danoso. Proclama então que se pauta pela defesa da ampla maioria, que não seria vulnerada pelo vírus letal, sustentando sempre a inexistência de ponderação possível entre o imperativo de manutenção das atividades do mercado – fundado no princípio da liberdade econômica e no interesse da maioria – e, de outro lado, o isolamento social e as quarentenas – fundados na proteção do direito à vida e à saúde de uma minoria que seria vitimada. Acresce ainda que um apagão induzido na economia atingiria a maioria, dependente da manutenção dos empregos, produzindo dano social maior.

Impedido de impedir o isolamento social e as quarentenas (pelo STF), o comandante em chefe prosseguiu na banalização das mortes, agindo estrategicamente para abreviar a suspensão das atividades econômicas. Resistiu à intervenção protetiva do Estado e bloqueou a chegada dos benefícios ao seu destino. Os subsídios destinados aos médios, pequenos e micro empresários, que mantém mais de 90% dos empregos, foram bloqueados no caminho, chegando a eles menos de 20%.

Sua ação estratégica – oposta a adotada nos demais países atingidos pela pandemia, conforme revela estudo do IE-UNICAMP – se revelou muito eficaz. No terceiro mês, já se exacerbaram as pressões dos empresários desassistidos, sobre os governos estaduais e municipais, para encerrar as quarentenas, que já não podiam suportar. Enquanto desdenhava das mortes crescentes,  as estatísticas revelavam no fim de julho que, tendo o País apenas 2,87 % da população global, as mortes somavam aqui 93 mil, equivalendo a 13,88 % das 670 mil verificadas no mundo.

As representações por genocídio no Tribunal Penal Internacional, visando a instauração de processo, buscam a condenação do governante por violação dos direitos à vida.  Mas temos de lembrar que o direito ao devido processo legal  é uma garantia fundamental de todas as pessoas. (art.5º, LIV -CF).  Ela vai além do direito à ampla defesa, do direito à produção de provas, à igualdade de tratamento e de ter um julgamento imparcial. Abrange o direito ao exame dos fundamentos da defesa e de saber as razões de sua rejeição.   Por esta razão, analisamos seu discurso, incluindo seus atos de governo e gestos simbólicos, tendentes a entregar os mais frágeis à voracidade do vírus letal. E tratamos de deduzir sua intencionalidade, observando os parâmetros hermenêuticos ditados pelo Tratado de Roma.

 

II – As tutelas penais dos direitos fundamentais à vida e à saúde

As ações de JAIR MESSIAS, opostas ao pleno exercício do direito à vida e à saúde, levam à busca das medidas protetivas que são geradas pelo direito. Elas tem três planos distintos: I- o administrativo, através de órgãos e instituições sanitárias do Estado; II- o Constitucional, através das garantias institucionais, e III- o direito penal interno e internacional. Consideramos primeiro a tutela penal do direito à vida, mediante a criminalização da prática de genocídio, tipificado no direito interno pela Lei nº 2886, de 01-10-1956, e no internacional pelo Estatuto de Roma, em vigor no País desde 25-09-2002. Além deste crime, foram tipificados neste código mais os denominados crimes contra a humanidade, entre os quais está o crime de extermínio.

Conforme o artigo art. 1º da lei 2886/56, o genocídio é praticado por “quem, com a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal: ….submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial”; ou, alternativamente,  causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo. E o artigo 268 do nosso Código penal pune quem “infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa“, conferindo tutela penal ao direito à saúde.

Como o genocídio é um crime comum, depois da denúncia, com base na lei penal brasileira deve ser aceita pelo STF, e o seguimento do processo tem de ser autorizado pela Câmara, podendo ser negado por um terço mais um dos seus membros. Se não for autorizado, fica suspenso e, na hipótese de reeleição, a suspensão se estende por mais quatro anos. Não haveria, nesta hipótese, uma legitimação do genocídio pela soberania popular ? Eis aí uma outra questão!

Foram promovidas representações no Tribunal Penal Internacional por crime de genocídio e por crimes contra a humanidade, ambos tipificados no Estatuto de Roma. Pelo seu artigo 6º, “entende-se por ‘genocídio’, qualquer um dos atos que a seguir se enumeram, praticado com intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo  nacional, étnico, racial ou religioso, enquanto tal”. Dentre estes atos, a “sujeição intencional do grupo a condições de vida com vistas a  provocar a sua destruição física, total ou parcial;

O mesmo Estatuto dispõe que…“entende-se por ‘crime contra a humanidade’, qualquer um dos atos seguintes, quando cometido no quadro de um ataque generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil, havendo conhecimento desse ataque” .  Dentre outros, constitui crime de extermínio a sujeição intencional à condições de vida, tais como a privação do acesso a alimentos ou medicamentos, com vista a causar a destruição de uma parte da população (art,7º,2, b). (art. . 1, b e 2, b). As penas, que vão até 20 anos de reclusão, aumentam de um terço se o crime for cometido por governante ou funcionário e a tentativa é punida com dois terços da pena.

O Estatuto de Roma tem como requisito para a configuração desses crimes a intencionalidade do agente. Conforme o seu Artigo 30, a pessoa deve atuar com vontade de cometer e ter conhecimento dos seus elementos materiais. E atua intencionalmente quem se propuser  a adotar uma conduta determinada e, relativamente ao efeito do crime, se propuser a causá-lo ou estiver ciente de que ele terá lugar em uma ordem normal dos acontecimentos. Nos termos do mesmo artigo, entende-se por “conhecimento” a consciência de que existe uma circunstância ou de que um efeito irá ter lugar, em uma ordem normal dos acontecimentos. Impõe-se, portanto, além do exame da dimensão objetiva, a análise da subjetividade que rege as ações e omissões do Presidente, observando o critério hermenêutico ditado por esta norma penal.

 

III – A responsabilidade individual e a tipologia das ações sociais

Há uma questão preliminar a ser enfrentada, considerando que alguns juristas ainda sustentam que não pode ser responsabilizada a pessoa do governante, cabendo apenas  denuncia do Estado perante tribunais de direitos humanos, no caso de serem consumados os fatos definidos como crime de genocídio ou contra a humanidade. Esta posição contraria disposições literais dos códigos penais interno e internacional.

A lei brasileira é clara no sentido de que responde a pessoa do governante, ao dispor que a pena será agravada de um terço “quando cometido o crime por governante ou funcionário público” (art. 4º). E o Estatuto de Roma dispõe que ele será aplicável de forma igual a todas as pessoas sem distinção alguma baseada na qualidade oficial. Em particular, diz que “a qualidade oficial de Chefe de Estado ou de Governo, de membro de Governo ou do Parlamento, de representante eleito ou de funcionário público, em caso algum eximirá a pessoa em causa de responsabilidade criminal nos termos do presente Estatuto, nem constituirá de per se motivo de redução da pena.(Art. 27).[1] Como se vê, esta imunização da pessoa dos governantes remanesce como ideologia na mente dos juristas liberais, equivalendo a um resíduo da imunidade dos monarcas absolutos.

É oportuno recorrer a sociologia weberiana que, seguindo o individualismo metodológico, propõe uma tipologia das ações sociais em busca da compreensão da ética que elas seguem (Weber, 1999, v. 1, p.24). Poderemos, então, compreender a ética das ações de JAIR MESSIAS, revisando suas manifestações verbais reiteradas e o sentido dos seus atos e gestos simbólicos. WEBBER diz que ação social é ” toda ação individual de um homem, que pode ser por omissão ou tolerância, sobre outros homens”. Podem ser alguns conhecidos ou muitos e todos desconhecidos. Diante da ênfase na individualidade da ação social, maior será o efeito quanto maior for a investidura pública do agente. (p. 40 ).

Ele classifica as ações sociais pelos seus motivos determinantes, concebendo tipos ideais, e inicia com a ação racional visando fins, através da incidência sobre as ações de outros homens, que são utilizadas como meios para os fins predefinidos e racionalmente intentados e visualizados como resultados. Age racionalmente visando fins quem orienta sua ação por uma meta e pondera racionalmente os meios disponíveis, elegendo aqueles que mais favorecem os fins visados.

Em oposição a este primeiro tipo de ação, pautada pelo resultado final visado, ou a consequência visada, ele identifica o segundo tipo, que consiste nas ações racionais pautadas por valores específicos, de todo independentes do(s) resultado(s). A primeira forma de ação WEBBER denomina teleológica-racional e a segunda é a ação axiológica-racional. Para quem assume a primeira – a teleológica – a segunda – a axiológica –   seria irracional. (pág. 46/7).

HABERMAS vislumbra na ação social teleológica-racional, pautada pelos resultados visados, uma ética conseqüencialista, enquanto identifica na ação axiológico-racional uma ética de princípios ou normativa.

 

IV – A sociologia weberiana e a ética de JAIR MESSIAS

Assumindo o objetivo estratégico de restabelecer rapidamente as atividades econômicas, Bolsonaro elegeu como meio uma ação política intensa visando solapar e extinguir o isolamento social e as quarentenas, ao mesmo tempo em que resistia a intervenção protetiva do Estado. E chegava a admitir em suas bravatas que ela implicava em eliminar a proteção do direito à vida e à saúde, trazendo como consequência imediata a amplificação das mortes. Impõe-se, assim, a análise da subjetividade regente de suas ações e omissões. JAIR MESSIAS expressava plena consciência da imediatidade do resultado danoso em face dos meios eleitos. Cunhou a expressão, entrevistado em cada salto quantico das mortes : “E daí, todos vamos morrer um dia….”. Estaria havendo uma simples abreviação da vida.

Ante a resistência gerada, projetou a rebelião dos pequenos e médios empresários, mais os  autônomos e ambulantes, que formam a maioria. Além disto, convocou o poder privado dos grandes empresários, chamados ao Palácio e conduzidos em bando para pressionar o STF. Ao mesmo tempo recorreu a metáfora da guerra para conduzir seu povo ao enfrentamento do inimigo invisível de forma heróica, “como homens e não como moleques” – expondo diretamente a vida da parcela mais fragilizada.

No seu discurso é recorrente a metáfora da guerra, situação excepcional em que seria legitimo o sacrifício de um pelotão, um batalhão, ou uma cidade inteira, na resistência à invasão estrangeira, para resguardar a maioria restante do território e da comunidade nacional. Na guerra, o direito à vida parece suspenso como direito de cada pessoa, submetendo as vidas de todos  a uma permanente ponderação quantitativa. Foram reiteradas as manifestações negando significado ético à abreviação consciente das vidas de muitas pessoas, como ocorre em estado de guerra.

Eis aí o que WEBBER define como “ação racional visando fins, através da incidência sobre as ações de outros homens, que são utilizadas como meios para os fins predefinidos e racionalmente intentados e visualizados como resultados. Uma típica ação teleológica racional, que elege meios geradores de muitas mortes, assumidos conscientemente  como simples atos de abreviação da vida. Na execução dos meios eleitos se evidencia o requisito material do genocídioa sujeição intencional do grupo a condições de vida com vista a provocar a sua destruição física, total ou parcial; (art. 1º da lei2886/56 e art. 6º do Tratado). Também o requisito material do extermíniosujeição intencional a condições de vida, tais como a privação do acesso a alimentos ou medicamentos, com vista a causar a destruição de uma parte da população. (art,7º,2, b). Isto gera a incidência na conduta do indiciado da norma interpretativa do artigo 30 do Tratado, segundo a qual  atua intencionalmente quem adotar uma conduta determinada e, relativamente ao efeito do crime, se propuser a causá-lo ou estiver ciente de que ele terá lugar em uma ordem normal dos acontecimentos.

Mesmo configurado o delito – com os fatos incontroversos e a intencionalidade do agente deduzida – existem justificativas previstas pelo direito que excluem a sua culpabilidade, conduzindo à absolvição. As excludentes de culpabilidade mais invocadas no direito penal interno são a legítima defesa e o estado de necessidade. No Estatuto de Roma as Causas de Exclusão da Responsabilidade Criminal, beneficia pessoas  que, no momento conduta típica: a) sofrer de enfermidade ou deficiência mental;b) estiver em estado de intoxicação; c) agir em defesa própria ou de terceiro com razoabilidade; d) estiver sob coação ..e) resultar de princípios gerais, de outros tratados ou do direito interno do País  do denunciado. (art.31). Há exclusão da culpabilidade, no Brasil, havendo um  estado de necessidade.

Haveria um estado de necessidade da comunidade das pessoas integradas no mercado?  JAIR MESSIAS sustentou que um apagão induzido na economia atingiria a grande maioria, dependente da manutenção dos empregos, causando um dano social maior. Será examinada esta excludente da culpabilidade do agente. Estando o cavaleiro andante ciente do efeito imediato de aumento das mortes com a abertura irrestrita da atividade econômica, seria capaz de afastar a responsabilidade da sua ação social? Não teria concorrido para chegar a este estado a sua resistência e bloqueio a intervenção protetiva do Estado?. De outra parte, a ética de sua ação social estaria em conformidade com a ética da Constituição? É o que veremos a seguir…..

 

V – A ÉTICA DE JAIR MESSIAS FRENTE A ÉTICA DA CONSTITUIÇÃO

O ato da Assembleia Constituinte corresponde a uma ação racional pautada por valores específicos, e não pelo resultado. No preâmbulo os constituintes, declarando que agem como representantes do povo, em face do mandato recebido, dizem que irão cumprir a missão de instituir um Estado Democrático. Não invocam uma delegação, mas simples mandato do povo soberano, enunciando os valores que irão pautar sua ação, valores que são recolhidos das manifestações da soberania popular no processo constituinte. São eles: a garantia do exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança,…O Preâmbulo não contém princípios ou regras, que são os dois tipos de normas. Não contém normas de organização ou de procedimento, mas apenas os valores a realizar, e objetivos a alcançar com a sua realização.

É no texto da Constituição que serão instituídos os princípios e regras, as normas de organização e de procedimento, destinadas a realizar os valores superiores, o primeiro deles, assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais. Este exercício será assegurado através de garantias institucionais positivadas na sua parte orgânica, onde estão reguladas a ordem social e a ordem econômica, balizando a construção da sociedade idealizada no preâmbulo.

Cumpre diferenciar bem os princípios dos valores, para melhor compreensão da metamorfose dos valores – propagados incialmente na esfera pública em busca de assimilação pela sociedade – em princípios jurídicos. Estes é que são dotados de força normativa para a imposição de condutas ao legislador, gerador de regras obrigatórias de conduta. HABERMAS acentua que “as normas válidas (os princípios e as regras) obrigam a seus destinatários sem exceção e por igual a praticar um comportamento que cumpre expectativas generalizadas de comportamento, enquanto os valores devem ser entendidos como preferências intersubjetivamente compartilhadas (sem força normativa). Os valores  ensejam a edição de princípios, sendo positivados no início da Constituição os princípios fundamentais, e a seguir os direitos básicos das pessoas, com o estatuto de direitos fundamentais.

No rol dos direitos fundamentais no artigo 5º, o direito à vida precede os demais. Nele se lê que são garantidos aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, a igualdade… E o seu texto evidencia que são direitos “das pessoas residentes no País”, e não um direito da comunidade ou da coletividade. Portanto são as pessoas individualmente os titulares, é dizer, cada pessoa. Na Declaração Universal dos Direitos do Homem, o art. III dispõe explicitamente que: “Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”  É evidente que não pode ser excluído qualquer grupo, assegurando a vida e a segurança apenas à maioria,. O direito à vida é a mais radical afirmação da individualidade frente às demais pessoas, à sociedade, e frente ao Estado….

O direito à saúde (abrangendo a integridade física e mental), que constitui o primeiro corolário do direito à vida, foi consagrado no artigo 6º, ao lado do direito à educação e à segurança, que corresponde à proteção contra o risco de vida. O artigo 144 dispõe que a segurança pública é direito e responsabilidade de todos e dever do Estado. E o artigo 196 dispõe que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos, e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. Notório aí que se trata de mais um direito individual, um direito de todas e de cada pessoa, e não um direito da coletividade. Vale dizer que o Estado não pode deixar exposto à risco de perda da vida, uma pessoa ou um grupo determinado ou, ainda, uma parte da sociedade, em benefício, ou para promover a garantia da maioria.

 

VI – A AFIRMAÇÃO DO DIREITO À VIDA E À SEGURANÇA NA GENESE LÓGICA DO ESTADO CONCEBIDA POR HOBBES

Uma afirmação eloquente do direito à vida e à segurança, como direitos individuais de todas as pessoas está na base do roteiro imaginário da criação do Estado, concebido por HOBBES. Ele parte de um estado pré-existente, fundado numa concepção antropológica que descreve o homem como um ser essencialmente dotado de um desejo “perpétuo e insaciável” de poder que “só cessa com a morte”. E formula a ficção da saída deste estado, considerado estado de natureza, de luta de todos contra todos, através da criação do Estado por um ato de razão. Os homens, tomando consciência de sua natureza, concluem que a única forma de estabelecer a convivência pacífica é a concentração de todo o poder em um ente que não é parte no pacto ¾ chamado de pacto de associação. Cada um dos participantes do pacto, em busca da própria sobrevivência e segurança, se despoja de seu poder natural transferindo-o a esta natureza artificial que chamamos Estado[2].

Nesta gênese lógica do Estado, ele surge idealmente como um ente investido do poder ilimitado que os indivíduos renunciaram ao firmar o pacto. Esta ficção acabava legitimando o poder absoluto que as monarquias concretamente existentes se atribuíam. Do poder absoluto conferido a este ente artificial resulta que, nas relações entre os Estados, se reproduz a “guerra de todos contra todos”, eliminada no plano interno através do pacto de associação. Observe-se que, segundo Hobbes, este ente artificial antropomorfizado, o Leviatã, é concebido pela razão, primeiro para garantir a vida  (“a própria conservação”) e depois “uma  vida mais feliz” que irá propiciar “garantindo-lhes, ….segurança suficiente para que, mediante seu próprio trabalho e graças aos frutos da Terra, possam alimentar-se e viver satisfeitos:….”.

Fica evidente na sua narrativa que: I) do pacto de associação participam todos os indivíduos, sem quaisquer diferenciações; II) que o pacto assegura a todos e a cada um o direito à vida e, ainda, à segurança pessoal, constituindo uma esfera de autonomia para todos. Por isto, o pacto de associação imaginado por HOBBES é reconhecido na história das ideias como uma poderosa afirmação do individuo frente à comunidade, e uma marcante afirmação do individualismo frente a concepção organicista da sociedade, que prevaleceu durante muitos séculos, ao longo do estado feudal. Nesta concepção, os indivíduos e os grupos são vistos como partes não autônomas de um todo, partes que se articulam harmonicamente, como as células e os órgãos dos seres vivos, dissolvendo-se enquanto individualidades.

A afirmação do individualismo, que tem nos contratualistas a sua maior expressão, antecede logicamente a afirmação dos direitos humanos, a começar pelo direito a vida e à segurança, que são direitos de todos e de cada uma das pessoas. O discurso e as ações do cavaleiro andante – na medida em que propaga  a insignificância da abreviação da vida de milhares de indivíduos, em benefício do todo social – corresponde a uma reposição da visão organicista da sociedade que remanesce como ideologia. A gênese lógica do Estado evidencia que a proteção do direito à vida e à segurança foram o fundamento de sua criação; e que a proteção efetiva destes direitos, com a criação de uma esfera de autonomia para todos e para cada uma das pessoas é que gera a legitimação do poder político.

 

VII – EVOLUINDO PARA UMA DECISÃO FUNDAMENTADA

Constitui crime de extermínio a sujeição intencional à condições de vida, tais como a privação do acesso a alimentos ou medicamentos, com vista a causar a destruição de uma parte da população (art,7º,2, b).  Bolsonaro revelou consciência de que haveria uma amplificação das mortes com o fim do isolamento e quarentenas, tentado muito por ele. Primeiro,  sustentando a falta de ofensa ética do evento danoso,  tido como simples abreviação da vida. Ante o avanço das mortes, disse ” E daí, todos vamos morrer um dia”. Depois falou da importância estratégica de acelerar a contaminação, para ter logo sua saturação, para abreviar a crise sanitária, em benefício das maiorias.

Ao surgir galopando em manifestação de seguidores para fechar o STF e o Congresso, encenou a metáfora da guerra, anunciada desde o gesto de apontar arma.  Conferindo ao virús invisível o status de inimigo invasor, encena ainda a metáfora da guerra para banalizar a morte. Neste estado anormal, fica legitimado o sacrifício de um grupo, ou de uma cidade inteira, na defesa da maioria do povo. Ela expressa a consciência da “sujeição intencional à condições de vida…. que devem causar a destruição de uma parte da população, conforme o que normalmente acontece.

Impedido de promover a imediata abertura da economia, agiu estrategicamente para atingir o objetivo, conduzindo médios, pequenos e micro empresários a um estado crítico para que pressionassem os poderes regionais pelo o fim das quarentenas e do isolamento social. E sua estratégia se revelou eficaz. Ultrapassou assim a mera tentativa, consumando o extermínio. Nestas condições incide a regra de que atua intencionalmente quem adotar conduta danosa revelando estar ciente de que ele terá lugar em uma ordem normal dos acontecimentos. (Art. 30 do Tratado)

Sendo certo que a pandemia não é um estado de guerra, mas uma crise sanitária, sua  encenação serve para revelar mais uma vez a plena consciência de que iria amplificar a exposição do direito à vida e à saude, ampliando as perdas. Trata-se de direitos fundamentais de titularidade individual e não coletiva. Não direitos da coletividade, que possam ser protegidos por partes, chegando a tutela estatal da maioria. A obrigação fundamental do Estado é dirigida para cada indivíduo e não para o todo social. É incabível,  portanto, qualquer ponderação, como resulta claro da  nossa Constituição e do pacto de associação concebido por HOBBES.

Cumpre avaliar por fim a existência de um estado de necessidade da coletividade, capaz de excluir a culpabilidade do agente. Ele chegou a alegar que um apagão induzido na economia atingiria a grande maioria, dependente da manutenção dos empregos. Mas é incontroverso o fato de que teria concorrido para chegar a este estado a sua resistência e bloqueio a intervenção protetiva do Estado. Essa intervenção do Estado foi assumida pelos governos de todos os países alcançados pela pandemia. Enquanto alguns chegaram a aportar até 20% do PIB nacional, aqui as verbas liberadas não atingiram 4%, e grande parte não chegou ao destino. E no final de julho, menos de um terço do orçamento do Ministério da Saúde tinha sido executado.  Ademais, a sua racionalidade teleológica diverge da racionalidade axiológica da Constituição, contrariando normas expressas, como a que diz que a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantindo ações de redução do risco de doença e o acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. (art. 196)

O crime de genocídio foi consumado em relação aos povos indígenas como demonstrou a jurista DAYSI VENTURA (https://brasil.elpais.com/brasil/2020-07-22/ha-indicios-significativos-para-que-autoridades-brasileiras-entre-elas-o-presidente-sejam-investigadas-por-genocidio.html), arguindo duas questões relevantes, entre muitas. A primeira é o debate surgido da Portaria 419 da FUNAI, editada para coibir o contato com os povos isolados, mas abre exceção  ante autorização do órgão. Retirada por pressão da sociedade, um líder evangélico é designado para chefiar a coordenação de povos isolados da Funai,  ato  visto pela ONU como potencial viabilização de genocídio. Depois vem os vetos à garantia de acesso à água potável aos povos indígenas e à sua inclusão nos planos emergenciais de atendimento dos pacientes graves das secretarias municipais e estaduais, além do veto

à  organização de atendimento de média e alta complexidade, nos centros urbanos, mais a assistência diferenciada aos indígenas. Vetada, ainda, a oferta emergencial a eles de leitos hospitalares e de UTI e a obrigação de explicar-lhes a gravidade da doença!

 

VIII – A NEGAÇÃO DO INDIVIDUALISMO e DOS DIREITOS DO HOMEM NA ESSENCIA DO FASCISMO E NA BASE DO NOVO LIBERALISMO

Polanyi, visitando os teóricos do movimento fascista em busca de sua essência, encontrou no fundo o combate ao individualismo, que teria surgido por obra do cristianismo, negando a visão organicista da sociedade, prevalecente ao longo do feudalismo. A ruptura do organicismo deu ensejo ao surgimento dos direitos individuais, começando pelo direito à vida e a segurança e prosseguindo com a conquista dos direitos de participação política das maiorias e aos direitos sociais. E a conquista histórica destes direitos levou à crise terminal do estado liberal e ao surgimento do estado social, no início do século XX. Daí o ataque preferencial do fascismo alemão ao cristianismo, ao movimento obreiro e aos partidos socialistas e social democratas. Com base nessa busca, Polanyi sustenta a tese: “O ataque do fascismo alemão dirigido simultaneamente contra as organizações do movimento obreiro e contra as igrejas, não é uma simples coincidência”.  São manifestações da sua essência, indo até a eliminação dos portadores do individualismo, que está na raiz dos direitos do homem, indo até a eliminação dos integrantes dos movimentos sociais que os conquistaram e defendem.

O crescimento do fascismo teria surgido então como uma reação extremada e violenta ao controle social e aos limites impostos ao domínio do mercado, viabilizados pelo avanço das instituições democráticas. Se o fascismo assumindo plenamente o poder político, instaura uma guerra interna, para eliminar os redutos eleitos como inimigos, o fascismo em ascensão propaga a metáfora da guerra, visando tornar insignificante no imaginário social o direito à vida e a segurança pessoal, cujo surgimento foi a mais radical afirmação da individualidade. Assim sendo, a aproximação verificada no Brasil atual – da comunidade dos empresários de todos os portes, em busca da extinção dos direitos e instauração do estado mínimo, com a extrema direita – não seria uma aliança entre movimentos paralelos, mas sim a adesão do partido orgânico do mercado à formação política partidária capaz de levar ao extremo da violência a defesa dos mesmos valores.[3]

Temos atribuído a retórica dos agentes governamentais na fundamentação das reformas à ideologia de extrema direita (protofascista) que professam, constatando a sua similitude com o discurso de fundamentação do fascismo. Parece razoável admitir que a escalada do seu discurso obedeça a uma programação pensada dos seus centros de inteligência, em face da perfeita sincronia revelada nas manifestações surgidas de todos os lados no espaço público, onde tem protagonismo destacado os portais midiáticos do mercado e as entidades empresariais, bem como os catedráticos de economia, chamados para referendar o diagnóstico da crise fiscal  e as políticas  de austeridade em nome da ciência.

Todos eles compõem o partido orgânico do mercado, que abriga ainda os partidos institucionais que vão do centro para a direita no espectro político, como frações suas. Talvez isto explique melhor a legitimação alcançada para a espetacular ofensiva sobre os direitos conformadores do estado social e as liberdades políticas, que estão na base da democracia representativa moderna. Diante deste avanço, rumando para formas extremadas de ação, cabe ao movimento orgânico emancipatório da sociedade, em busca de uma resistência eficaz, aglutinar os movimentos esparsos para assumir estratégias unificadas, numa frente ampla.

Para a moderna concepção organicista de sociedade, dos grupos sociais hegemônicos, o exercício dos direitos sociais individuais, que constituem pretensões radicais de indivíduos ou de grupos emergentes sobre o todo social – deve subordinar-se ao desenvolvimento desse todo. Vale dizer, devem ser relativizados e ter o seu exercício postergado por constituírem “amarras” impostas ao livre movimento das forças da economia que, impulsionando o progresso material, haverão de libertar um dia o organismo social da sua maior patologia: a miséria que consome partes desse organismo de forma crescente, o que se verifica com particular intensidade nos países periféricos. Nesse dia luminoso, situado num ponto movediço do horizonte, serão reintegradas as legiões crescentes de excluídos!

 

[1] Na sociologia Weberiana, o Estado não pode ter uma existência real separada dos indivíduos. O Estado é concebido por WEBBER como uma “relação de dominação de homens sobre homens”, na qual “os dominados submetem-se à autoridade invocada pelos dominantes” (Weber, 1999, v. 2, p. 526). Então o Estado, que era representado como um ente, passa a ser visto como um feixe de ações protagonizadas por indivíduos.

[2] HOBBES, Thomaz. “Leviatã”. Ícone Editora. São Paulo, edição 2000. No capítulo de abertura da parte II, que trata “Das Causas, geração e definição de um estado”, diz o autor: “O FIM último, Fim ou Desígnio dos homens (que apreciam, naturalmente, a Liberdade e o Domínio sobre os outros), ao introduzir aquela restrição sobre si para viver nos Estados, é a preocupação com sua própria conservação e a garantia de uma vida mais feliz.

[3] POLANYI, Karl. “La esencia del fascismo”, in “Los límites del mercado”. Ed Capitán Swing Libros, Madrid, p.65 segs.

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Por que refletir e debater sobre a importância da segurança pública para a democracia? Como a esquerda trata o tema e de que maneira a segurança deve figurar na agenda do campo progressista? Quais devem ser as ações futuras? A violência, o crime e a regressão de direitos são temas locais. A construção da paz e da democracia deve ser encarada como um desafio transnacional, continental e o Sul global deve ser protagonista na construção dessa utopia. Todas estas questões trazem inquietude e precisam ser analisadas. Com esta preocupação, o Instituto Novos Paradigmas reuniu algumas das principais referências sul-americanas no campo progressista, no Seminário Democracia, Segurança Pública e Integração: uma perspectiva latino-americana, realizado em Montevidéu, no dia 12 de outubro de 2023. Um momento rico em debates e no compartilhamento de experiências, considerando a necessidade da integração regional. Este documentário traz uma síntese do que foi discutido e levanta aspectos que não podem ser perdidos de vista frente às ameaças do crescimento da direita e da extrema direita no mundo e principalmente na América do Sul.
Video do site My News Pesquisa levada a cabo por pesquisadores da Faculdade de Saúde Pública da USP, Centro de Estudos de Direito Sanitário e Conectas explica porque o Brasil não chegou à toa ao caos no enfrentamento da pandemia da COVID 19 Assista a Professor Deise Ventura, uma das coordenadoras da pesquisa.
O ex-ministro da Justiça Tarso Genro aborda as novas relações de trabalho no Congresso Virtual da ABDT.
O ex-ministro da Justiça do Governo Lula participou de um debate ao vivo na CNN com o ex-presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, desembargador Ivan Sartori. O tema foi a decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello de tornar pública a reunião ministerial do dia 22 de abril, apontada por Sérgio Moro como prova da interferência do presidente na Polícia Federal. Tarso Genro considera acertada a decisão de Celso de Mello.
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