Artigo publicado originalmente no jornal Estado de São Paulo.
O Sistema Único de Segurança Pública – SUSP foi idealizado no Projeto de Segurança Pública para o Brasil, da campanha à presidência da República de Lula em 2002. Quando propus, à época, a criação do SUSP, na condição de um dos coordenadores do Projeto de Segurança Pública, a ideia central era que ele fosse resultado de amplas reformas constitucionais e infraconstitucionais do sistema de segurança pública. Ou seja, partia-se do pressuposto de que sem reformar o sistema vigente não seria possível construirmos um sistema único de segurança pública.
Entre as principais propostas de reformas constitucionais e infraconstitucionais que constavam no projeto, destaco: as polícias militares deixarem de ser força auxiliar e reserva do exército; previsão constitucional de ciclo completo da atividade policial; revisão do Instituto do Inquérito Policial, que é datado de 1871; piso nacional para as polícias estaduais e guardas civis municipais; policiamento comunitário, em contraponto à cultura do policiamento de confronto; programa integrado de saúde mental aos policiais, do início ao fim da carreira; ouvidorias de polícia autônomas e independentes (das polícias da União, dos Estados e DF); e Integração Territorial, com interfaces entre as polícias estaduais, federais e guardas civis municipais. Após 21 anos, a maioria destas propostas ainda não se efetivaram. Temos apenas quatro ouvidorias autônomas e independentes nos estados e algumas experiencias de ação territorial envolvendo as três esferas de governo.
Na gestão do presidente Temer, em que tivemos um curto período de existência do Ministério da Segurança Pública, foi aprovada em 2018 a lei nº 13.675, conhecida como a lei do SUSP. Entre os objetivos da Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social, previstos na lei, cerca de 70% são introduzidos por verbos genéricos como: incentivar, estimular, fomentar, fortalecer e propor. Faltou a lei o objetivo principal, que é coordenar e induzir uma política nacional de segurança pública. Portanto, apesar do esforço do então ministro Raul Jungmann, a lei é mais uma Carta de Intenções que uma verdadeira política nacional para o setor.
No segundo governo Lula, sob o comando do então ministro Tarso Genro, é criado o PRONASCI – Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania, através da lei federal nº 11.530/2007.
No artigo 2º da lei está previsto que: “O Pronasci destina-se à prevenção, controle e repressão da criminalidade, atuando em suas raízes socioculturais, articulando ações de segurança pública e das políticas sociais” E nas as diretrizes gerais destaca -se: “promoção dos direitos humanos, considerando as questões de gênero, étnicas, raciais, geracionais, de orientação sexual e de diversidade cultural; promoção e intensificação de uma cultura de paz, de apoio ao desarmamento e de combate sistemático aos preconceitos; intensificação e ampliação das medidas de enfrentamento do crime organizado e da corrupção policial e valorização dos profissionais de segurança pública e dos agentes penitenciários”.
Umas das principais contribuições do Pronasci foi a de garantir que, pela primeira vez na esfera federal, tivéssemos um programa que efetivamente incluía os municípios como ente federativo estratégico para a segurança pública, além de enfatizar a prevenção e a cidadania ativa como eixos centrais na construção da política de segurança pública.
Das cerca de 90 ações previstas no programa, metade delas eram voltadas à programas e projetos municipais de prevenção à violência e ao crime. Houve queda dos índices criminais em centenas de municípios a partir dos programas e projetos do Pronasci. Com recursos de cerca de dois bilhões por ano, o programa era, no segundo governo Lula, a principal ação do Ministério da Justiça e da Secretaria Nacional de Segurança Pública. Infelizmente, o Pronasci foi definhando ainda no governo Dilma e praticamente desapareceu nos governos Temer e Bolsonaro.
Portanto, foi uma decisão assertiva e importante do presidente Lula reeditar o Pronasci em março de 2023, através do Decreto nº 11.436, estabelecendo para ele cinco eixos prioritários: fomento às políticas de enfrentamento e prevenção da violência contra as mulheres; fomento às políticas de cidadania, com foco no trabalho e no ensino formal e profissionalizantepara presos e egressos; apoio às vítimas da criminalidade; fomento às políticas de segurança pública com cidadania e foco em territórios vulneráveis e com altos indicadores de violência; combate ao racismo estrutural e aos crimes decorrentes”. O problema central (além do verbo fomentar e não coordenar) é que até agora não se sabe com quais recursos contará o Pronasci.
O Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP), previsto na lei nº 13.756/18, está vinculado a diretoria do SUSP da Secretaria Nacional de Segurança Pública, que estabelece repasse de no mínimo 50% dos recursos aos estados e ao DF (repasse de fundo a fundo cuja destinação, na maioria das vezes, se mantem na cultura de entregas de viaturas e armas) e não cita nenhuma porcentagem de recursos a serem destinados aos municípios. Só o custo da bolsa formação do Pronasci (para policiais estaduais e guardas civis municipais), no segundo governo Lula, abarcava cerca de um bilhão de reais por ano, além das dezenas de projetos realizados junto aos estados e municípios. Portanto, o Pronasci não dependia dos recursos do FNSP.
Para que o Sistema Único de Segurança Pública – SUSP saia do papel e deixe de ser uma carta de boas intenções, é preciso revisar a lei do SUSP, para que ela indique que a União irá coordenar a política nacional de segurança pública e induzir, através recursos do FNSP (o que implica em também revisar a lei do FNSP), políticas de reformas infraconstitucionais nos estados e no DF, tais como a criação de programas estaduais de saúde mental aos policiais, para enfrentar os dados epidêmicos de suicídio policial, criação de Postos de Policiamento de Proximidade (comunitários) e redução da letalidade policial que atinge sistematicamente a população pobre e negra das periferias. Dar centralidade a questão do antirracismo e do combate ao racismo estrutural deve ter como premissa a diminuição gradativa da letalidade policial contra a população negra do país. Temos que enfrentar com decisão e vontade política a cultura histórica do sistema de segurança pública de preconceito contra pobres e negros.
Nesta revisão, deve ser definida na lei uma porcentagem de recursos a serem repassados aos municípios, para projetos e políticas de prevenção à violência e ao crime, com foco na juventude, nas escolas e na proteção às mulheres. As melhores políticas de prevenção à violência e ao crime se dão na esfera municipal, com raras exceções na esfera dos estados, como a experiencia em Pernambuco do “Pacto pela Vida” e, recentemente, a experiência dos Territórios para Paz – Oficinas de Paz, no governo do Pará, a mais importante iniciativa territorial, intersertorial e transversal de política de prevenção à violência promovida pelo Estado, idealizada por Ricardo Balestreri.
As mudanças constitucionais do sistema de segurança pública devem ser uma iniciativa do governo federal, que coordena o SUSP, assim como a proposta de estabelecimento de um piso nacional para as polícias estaduais e guardas civis municipais.
Nesta perspectiva, é estratégico incluir o Pronasci no SUSP, como órgão articulador do sistema único de segurança pública, sob o comando e diretriz da Secretaria Nacional de Segurança Pública. Não se deve ter instâncias distintas entre SUSP, Pronasci e FNSP. O SUSP, PRONASCI e FNSP devem ser estruturados de forma integrada, como um novo desenho de arquitetura de gestão da política nacional de segurança pública.
O governo federal tem instrumentos para implementar uma política de segurança pública democrática, cidadã e antirracista, pautada em mudanças constitucionais e infraconstitucionais do sistema de segurança pública, que sofreu poucas alterações em toda o período da transição democrática, dialogando com os governos estaduais e municipais, com o Congresso Nacional, com as entidades representativas de policiais e com amplos setores da sociedade civil.
Ou temos a coragem política de implementar as mudanças necessárias, ou continuaremos a dar espaços para as políticas demagógicas e autoritárias da extrema direita, que chegou ao poder, em período recente, com uma narrativa beligerante de liberação de armas e de fomento à violência, alimentando preconceitos históricos que marcam o sistema de segurança pública.