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O retorno da Grande Estratégia Brasileira: o Projeto de Nação dos militares

Pedro Custódio Caldeira

Mestrando em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo, Cientista Social

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Em 19 de maio de 2022, houve em Brasília a solenidade de lançamento de um documento, intitulado Projeto de Nação, com a presença do vice-presidente Hamilton Mourão, do Ministro da Defesa, do chefe do Gabinete de Segurança Institucional General Heleno, entre outros nomes da cúpula do governo Bolsonaro. Assim foi publicizado um documento que estava sendo constituído desde 2019, por três institutos privados: O Instituto General Villas Boas, o Instituto Sagres e o Instituto Federalista; o documento em suas 87 páginas permite entrever boa parte do projeto político do que vêm sendo chamado de Partido Militar, ou seja, a atuação das Forças Armadas como agente político autônomo. Para a construção deste artigo, foram utilizadas como fontes reportagens jornalísticas e os materiais publicados pelos institutos em seus sites. Antes de analisar o documento em si, creio que seria devido discutir os aspectos institucionais e o processo de articulação para a formulação do Projeto de Nação.

O Instituto General Villas Boas (IGBV) foi criado em dezembro de 2019, após o General deixar o posto de comandante do exército, operando tanto como ONG relacionada à doenças  raras, como  a ELA ( Esclerose  Lateral Amiotrófica) do qual o General é portador; quanto  como  think thank, reunindo acadêmicos, empresários, lobistas e militares;  As publicações do  Instituto são caracterizadas pela falta de transparência e pelo uso de termos vagos, por exemplo em algumas publicações aparece como presidido pelo General Marco Aurélio Costa Vieira, em outros pela esposa do general Maria Aparecida Villas Bôas. Possuí fortes laços com o Governo Federal, tendo convênios com o Ministério da Educação, Secretaria Especial da Cultura, Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia, Ministério da Ciência e Tecnologia. Além dos convênios, recebeu uma doação de 60 mil reais da Fundação Habitacional do Exército (FHE).

Dos convênios, o mais ambicioso seria a publicação de 200 livros da coleção Pensadores do Brasil com o apoio do MEC, esta coleção teria como propósito o resgate da tradição intelectual brasileira, alguns títulos dessa coleção podem nos apresentar a que tradição o corpo editorial da coleção[1] se refere: A Organização Nacional, de Alberto Torres e     Geopolítica e Poder, de Golbery do Couto Silva.  O primeiro autor Alberto Torres (1865-1917), foi Ministro da Justiça e um dos Ministros do STF durante a República Velha, e defensor da tese de que a democracia só poderia ser alcançada através de um regime forte, autoritário. (Oliveira; Kalil, 2021) Enquanto o segundo, General Golbery do Couto e Silva (1911-1987), foi um dos criadores da Doutrina da Segurança Nacional e Ministro Chefe do Gabinete Civil dos governos Geisel e Figueiredo.

A coleção buscaria servir como forma de divulgar uma espécie de “tradição” intelectual conservadora brasileira, que serve de  base para  o que os institutos envolvidos  chamam de Grande Estratégia Brasileira[2], um projeto político para o país que estaria em vigor nas “ três décadas após a  2ª Guerra Mundial”[3].Nota-se aqui a inclusão do período democrático da Quarta República ( 1946-1964), já  anunciando um tema de fundo do Projeto,  enunciado pelo próprio General Villas Boas em entrevista á Celso Castro, a de que o Regime Militar teria sido uma intervenção para salvar o Brasil da suposta ameaça de uma ditadura  comunista  e não uma ruptura institucional.

Outra iniciativa de destaque são os eventos promovidos pelo instituto sobre a Amazônia, tema de interesse pessoal do General, que já esteve cargo de Comandante da Amazônia.  Nos webinars do instituto são convidados negacionistas climáticos, como o Professor Luiz Carlos Molion, militares, como o vice-presidente da República Hamilton Mourão, jornalistas como Alexandre Garcia e representantes da sociedade civil como José Altino Machado criador da USGAL (União dos Sindicatos de Garimpeiros da Amazônia Legal).

O ideário propagado nestes eventos é o de que a Amazônia é chave para a soberania nacional, através de sua exploração econômica. Dessa forma, o II Simpósio 2021 Amazônia: Brasileira, nossa para sempre e seu lema “Nossa Amazônia, não é Antártida, tem dono!”, anuncia o tom desses eventos.  Primeiramente, um retorno ao ideário ufanista e de exploração econômica militar predatória do regime militar.  Assim como um constante ataque contra entidadades da sociedade civil como o ISA (Instituto Sócio-Ambiental) e o CIMI (Conselho Indigenista Missionário) são colocados como agentes oportunistas de uma pauta “globalista” e anti-nacional, sendo as críticas á política ambiental brasileira uma forma de intervenção externa, sob o pretexto “inexistente” do aquecimento global.

Embora o IGVB seja o que tenha mais prestígio e relação com a cúpula do Bolsonarismo, ele é o articulador de uma rede com outros institutos, existentes há mais tempo: o Instituto Sagres e o Instituto Federalista. O Instituto Sagres – Política e Gestão Estratégica Aplicadas, criado em 2004, presidido por Raul José de Abreu Sturari, parece operar como consultoria, fornecendo produtos à empresas e entes públicos, também como think thank, fazendo pesquisas e projetos políticos . O site do Instituto se autodefine como “… associação de direito privado, sem fins lucrativos, que tem por finalidade promover estudos e pesquisas, desenvolvimento de soluções tecnológicas, produção e divulgação de informações e conhecimento técnicos e científicos, bem como eventos, consultorias, capacitação, desenvolvimento e treinamento.”

O produto principal do Instituto Sagres é o que chamam de Gestão Estratégica, utilizando técnicas e conceitos das Ciências Militares para empresas e órgãos públicos através de consultorias. Dentre os três institutos, talvez o mais importante seja o Sagres pois pelo conteúdo de seu site é a organização que fornece a base logística e a equipe para a construção do documento, desde o processo de pesquisa á metodologia utilizada no projeto. Em seu corpo diretor nota-se a presença de militares como o General Luiz Eduardo Rocha Paiva, diretor de Gestão Estratégica e amigo pessoal de Villas Boas e o General Ridauto Lúcio Fernandes, diretor de Segurança e Defesa.

A terceira organização é o Instituto Federalista (IF), foi criado por Thomas Korontai, empresário paranaense e autor de uma proposta de nova constituição com 84 artigos, exposta no livro Cara nova para o Brasil: Uma nova constituição para uma nova federação.  Sua proposta é o que chama de “federalismo pleno”, com  elevada autonomia de  estados e municípios em todas as esferas governamentais e uma série de políticas: substituição do STF pelo TCF (Tribunal Constitucional Federal) que julgaria apenas a constitucionalidade de leis, a criação de Supremos Tribunais Federais e Municipais, a adoção do modelo de voucher na educação pública,  a formação de grupos paramilitares de voluntários a serviço dos governadores, a abolição do estados de Roraima, Acre, Amazonas  e sua transformação em território federal, entre outros.[4] De certa forma, sua participação  se dá em termos de   ideário e medidas propositivas.  Korontai é quem nos permite compreender como se deu a articulação para a construção do documento:

“Somente no ano de 2019 é que o “Projeto de Nação” começou a adquirir forma quando o Instituto Federalista encontrou entidades de alto nível para realizar parcerias. Na metade de 2019 o Federalista firmou parceria especifica para a elaboração do projeto com o Instituto Sagres, cuja sede é Brasilia/DF, o qual, há algum tempo também planejava realizar atividades que conduzissem à elaboração de um projeto de nação.”

Tendo em vista os agentes produtores do Projeto de Nação podemos discutir o documento em si. A estrutura do texto segue um padrão de produto de consultoria que serviria ao propósito de construir cenários a partir do conceito de incerteza em relação a 36 temas divididos em   sete eixos e o estabelecimento de óbices, objetivos e diretrizes. Os temas são variados, desde aspectos mais amplos como economia, segurança pública e educação a pontos bastante específicos como “influência do movimento globalista na política externa brasileira” e políticas públicas de acesso à internet no Brasil.

O projeto utiliza uma série de métodos criados pelo Instituto Sagres a qual chamam de FIGE (Ferramentas Integradas de Gestão Estratégica), e se caracteriza pela construção de possíveis cenários futuros que são constituídos pela metodologia “Consulta Áugures[5]”. Essa consulta seria construída com especialistas e o público geral, sendo que os entrevistados têm sua identidade oculta com pseudônimos, em que são perguntadas quais as preocupações destes agentes referentes á determinado período de tempo, no caso do Projeto de Nação se refere ao período entre 2022 e 2035.

O funcionamento da pesquisa para o Projeto se deu da seguinte forma, foi disponibilizado um link no site Survey Monkey, foi disponibilizado para aqueles que respondessem uma tabela pronta [6]com um tema dado e qual a incerteza relacionada a ela para que o sujeito de pesquisa discorresse e criasse um cenário a partir disso.  Os temas são vagos o suficiente para construir cenários diferentes, contudo com formulações propensas em levar a respostas induzidas. Como exemplo, podemos analisar o tema 02:

 

Tema Movimento Globalista Mundial
Incerteza Existência/Influência do movimento globalista nas decisões do

Estado brasileiro, em 2035, visando a implementar sua agenda

política, econômica e social

 

A existência do Movimento Globalista é colocada como fato, a questão é como os entrevistados pensam que ele opera. Dessa forma, apesar de  o projeto não explicitar  o que seria a  agenda “ política, econômica e social”, o globalismo deixa de ser uma fake news e assume um holofote como  questão vital para qualquer  planejamento para o Estado Brasileiro.

Por mais que a introdução coloque que os cenários são fictícios, o exercício de pensar como o Brasil seria em 2035, traz em si uma espécie de wishful thinking através do que seriam os cenários positivos.  Nesse sentido o ideal seria que os militares se não assumissem áreas estratégicas, como educação, planejamento de políticas públicas em geral e política externa, pelo menos teriam grande influência sobre elas. O tom geral do Projeto de Nação é o de que a Nova República e a  Constituição de 1988 são uma espécie de desvio de rota, usando constantemente  a referência á arranjos institucionais  passados como modelos para o futuro.

O projeto defende a presença de militares e policiais em cargos do que chama de “nível político- Estratégico”, alega que há “preconceito” com a ocupação desses cargos por membros das forças armadas. Outra influência do discurso militar que atravessa o projeto é a constante valorização do “civismo”, propondo inclusive a promoção deste para a “unificação do país” frente à “ideologias divisivas”, extremistas e avessas a cultura brasileira”. Essas expressões são utilizadas para se referir á esquerda, sendo esse um recurso comum na linguagem do documento, o uso de termos vagos,  com o fim de se apresentar como documento técnico.

O Projeto considera que todos os níveis de educação brasileira estão preenchidos por essas ideologias e considera os quadros da educação brasileira com formação técnica e cívica débeis, e que precisariam de aprimoração  dos  aspectos “morais, comportamentais e éticos” sendo o sistema educacional brasileiro sujeito á  ingerência por sindicatos de professores. Algumas das estratégias propostas são a adoção das práticas das Escolas Militares como modelo, mesmo que  as escolas permaneçam sobre administração civil e  estudos sobre a viabilidade do modelo antigo da Escola Normal para formação de professores.

A” Grande Estratégia Brasileira” que guia o Projeto  crê que  há agentes com “ideologias nocivas” em todos os aspectos da vida pública, considerando intelectuais de esquerda como “óbices”  aos objetivos do projeto, como em segurança pública, onde o projeto considera que Polícia e Exercito possuem forte ingerência por agentes políticos e ideológicos, exigindo mais autonomia dessas instituições.  Nesse sentido outro ponto crucial seria, a adoção do conceito olavista de “ Globalismo”, onde o texto crê que esse seria o ponto principal  á se pensar para a política externa e propõe o afastamento do Brasil de acordos multilaterais ( preferência por bilaterais) e atuação de ONGs e   órgãos internacionais, como  ameaças á soberania nacional.

A preocupação com a soberania nacional também passa pela reformulação do sistema de inteligência do Estado Brasileiro, com a proposta de abandono de concursos e adoção de indicação pelo Poder Executivo.

O Projeto não se restringe ao aspecto de políticas públicas, mas aponta  a necessidade de estimular comportamentos e ideologias que promovessem a unidade nacional, projeto herdado do Regime Militar, contudo a novidade em relação  aos anos de chumbo é a perspectiva neoliberal de desregulação da economia, desmonte do  serviço público e o constante uso de um misto de linguagem empresarial e militar.

Em conclusão, o  Projeto de Nação manifesta um projeto político que conseguiu se articular durante  o governo de Jair Bolsonaro, contudo  jamais se refere diretamente á ele, apresentando  os interesses políticos de setores específicos das Forças Armadas, especificamente a alta cúpula, dada a proeminência de generais no processo de produção do documento. É também um exercício especulativo que permite compreender  com a visão de país que setores relevantes das forças armadas  apostam para  restaurar a família, a tradição e um Brasil unido, colocando a agenda do atraso como  uma forma de progresso  para  a sociedade brasileira.   Em suma  a formação de uma agenda política para além da figura de Bolsonaro, que almeja a reconstituição das Forças Armadas como Poder Mediador(Stepan,1975)  na política nacional e o retorno, com uma nova roupagem, dos militares no poder.

 

Bibliografia

Castro, Celso (Org.). General Villas Bôas: Conversas com o comandante. Rio de Janeiro, FGV Editora, 2021.

Stepan, A. Os militares na política. Rio de Janeiro: Artenova,1975.

Oliveira, Ana Amélia Penido; Kalil, Suzeley. Ação política do Partido Militar sob Bolsonaro. Anuario Latinoamericano Ciencias Políticas y Relaciones Internacionales,  Lublin, vol. 11, pp. 63–82, 2021.

[1] O corpo editorial é formado por acadêmicos ligados á instituições como a UnB, Itamaraty e Câmara dos Deputados.

[2]  O termo  Grande  Estratégia é utilizado pelo campo das  Ciências Militares e poderia ser definido como “ abordagem geral para a política( Policy como polítcas específicas ( poltics) que um Estado deve perseguir em tempos de paz ou de  guerra”( Barbosa, 2020)”, em circunstâncias  civis, tende a denominar o desenho político do Ministério da Defesa, contudo em seu uso pelos autores do projeto ele é basicamente  a forma como o Estado brasileiro deveria agir e construir suas políticas públicas.

[3] https://sagres.org.br/Apresent/ProjetoNacao.pdf

[4]  Propostas expostas em diverso materiais do Intituto : https://if.org.br/

[5] Referência aos áugures  da Roma Antiga, sacerdotes leitores de presságios( voos de pássaros, entranhas de animais etc.) consultados pelo estado romano, origem da palavra “ agouro”.

[6] https://sagres.org.br/Apresent/4.%20PROJ.%20NA%C3%87%C3%83O%20-%20Listagem%20Temas%20e%20Incertezas-convertido.pdf

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