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O redesenho institucional neoliberal em tempos de Revolução Digital e a Fiscalização do Trabalho

Isabela Fadul de Oliveira* e Paula Freitas de Almeida**

*Professora na Faculdade de Direito da UFBA. / **Doutoranda em Desenvolvimento Econômico Unicamp.

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O redesenho institucional a partir das referências da governabilidade neoliberal vêm desafiando as instituições do trabalho na sua função precípua de mitigação das assimetrias entre capital e trabalho. A razão neoliberal ganha maior força com os efeitos da Revolução Digital, já sentidos também pelas economias periféricas com a intensa reconfiguração do trabalho. O presente texto busca identificar aspectos das tensões entre o redesenho institucional neoliberal e as condições da ação da Auditoria Fiscal do Trabalho (AFT), em um cenário de reconfiguração das relações sociais e, em especial, das relações do trabalho.

A AFT é pressionada pelas transformações institucionais nas suas dimensões formal e material. Por um lado, estão presentes os esforços para modificação do padrão institucional apto a garantir a proteção social e do trabalho nos termos prometidos pela evolução dos direitos sociais em uma perspectiva humanitária; por outro, se corroem as relações de trabalho de modo a transmutá-las e inviabilizar sejam elas alcançadas pelo direito do trabalho tradicional, aqui concebido como aquele que busca promover a forma jurídica do emprego e da tutela que tem no princípio protetor a sua “espinha dorsal”.

Na primeira parte do texto se busca compreender o sentido da razão neoliberal, bem como o papel da AFT enquanto sujeito institucional atuante na regulação do mundo do trabalho. As tensões entre razão neoliberal e AFT serão apresentadas na perspectiva das pressões sofridas diante do suposto esgotamento das instituições trabalhistas. Segue-se à caracterização da AFT pretendida pelo redesenho institucional: i) negligência governamental com a composição do seu quadro funcional, ii) diminuição da autonomia da autoridade trabalhista por meio da reforma ministerial, e, iii) obstáculos criados e diminuição da importância da atividade fiscalizadora incutidas nas Medidas Provisórias ns. 905/2019, 927/2020 e 936/2020. Por fim, serão apresentados elementos que mostram os contornos da reconfiguração do trabalho no âmbito da Revolução Digital e os esforços hermenêuticos que mantém esses trabalhos sob invisibilidade institucional, como algo que pode refletir a diminuição do alcance da AFT.

Esse trabalho parte de uma visão neoinstitucional, que reconhece a ação social (e o processo de deliberação nela envolvido) como força motriz de transformação do (re)desenho institucional, este definido a partir de Goodin (1998) como uma aspiração realizável, cujos princípios normativos e empíricos são continuamente questionados pelo primado de uma adequação ao conjunto de relações constituídas. Todavia, isso ocorre dentro de uma perspectiva de imbricações entre as múltiplas formas e funções que se conformam aos elementos dinâmicos das muitas áreas do conhecimento nas quais se forjam.

O desenho institucional se estabelece e se mantém em processo de contínua atualização a partir da reiterada tomada de decisão no âmbito das estruturas burocráticas de sua organização e, ainda que expressem a síntese da ação de forças sociais, estão submetidas à forte influência dos interesses perseguidos pelo poder[1] constituído no âmbito do Estado. Nesse sentido, trata-se da construção histórica[2] de padrões normativos que materializam a governabilidade[3] na ação social por ela orientada. Não se trata de um movimento linear. É expressão de processos históricos de disputas de interesses de uma multiplicidade de grupos sociais, econômicos e políticos que, nos termos de Bensusán (2006), se consubstancia nas ditas “regras do jogo” formadas pelas limitações idealizadas pelo homem e que dão forma à interação humana.

As instituições e seus redesenhos, nessa perspectiva, demarcam a história das gentes. Polanyi (2000), identificou o mercado auto-regulável como chave institucional do século XIX, fixado nas leis que governam o mercado, entre as quais, a separação entre economia e política. O caos humanitário que sobreveio à exacerbação do individualismo liberal exigiu resposta que, no âmbito das relações de trabalho, resultou em um padrão regulatório com forte ação política sobre a economia, com o intento de mitigar as discrepâncias, assimetrias, desigualdades inerentes à relação entre capital e trabalho

No âmbito da Escola da Regulação Francesa, Boyer (2009) destaca que, a competição de indivíduos autônomos preocupados somente com seus interesses conduz ao caos e à insustentabilidade do capitalismo, de modo que sua sobrevivência depende de instituições básicas necessárias e suficientes ao estabelecimento de uma economia capitalista, que consubstanciam o modo de regulação (“resultado da conjunção de certo número de formas institucionais”). Aponta como formas institucionais básicas constitutivas da teoria da regulação no capitalismo: i) regime monetário; ii) formas de concorrência; iii) relações salariais; iv) relações Estado/economia (interações entre política e economia); e, v) modos de inserção na economia internacional.

O curso das instituições se definem pelas relações de disputas de poder e resistências das forças sociais, econômicas e políticas que dão forma às interações humanas nas múltiplas fases do capitalismo. O caráter historicista do seu conteúdo, diante das transformações do capitalismo, faz surgir uma sucessiva multiplicidade de modos de regulação, que também dão sentido às condições de acumulação e, por conseguinte, aos regimes de crescimento de longo prazo. O processo de redesenho institucional, aparece aqui como a continuada concomitância entre os processos de regulação e desregulação:

Na França, a regulação foi muitas vezes interpretada como resultado da ação do Estado, o poder concedente e organizador , em resumo, o planejador. Entretanto, os trabalhos regulatórios mostraram que, mesmo à época dos trinta anos gloriosos, as políticas econômicas de inspiração keynesiana eram apenas um dos componentes dos modos de regulação vigentes. Paralelamente, as políticas de desregulação – na realidade, em francês, chamadas de desregulamentação – foram interpretadas como políticas que tornam possível o advento dos mercados de concorrência perfeita (Boyer, 2009, p. 23).

As formas institucionais acerca das relações salariais estabelecidas e as interações entre política e economia são importantes para compreender as tensões entre os processos de regulação e desregulação, e o significado da AFT nesses processos. Ocorre que, a superação/mitigação da deterioração humana consubstanciada na assimetria entre capital e trabalho nos termos do mercado auto-regulado conduziu à regulação das relações trabalhistas como ramo especializado do Direito.

O Direito do Trabalho pode ser percebido como expressão da força organizada da classe dominante para assegurar as condições de produção do modo capitalista de produção. Esse ramo do Direito reproduz no seu bojo as assimetrias entre classe, todavia, dando uma forma à racionalidade econômica controlada pela política. É fruto do momento histórico em que o capitalismo adotou como primado a mitigação dos efeitos dessa assimetria e a promoção universal da dignidade humana que encontra lugar no trabalho decente regulado. A criação da Organização Internacional do Trabalho é reflexo da centralidade que o controle dos efeitos das assimetrias entre capital e trabalho adquiriu e cumpriu importante papel como paradigma de um sistema de proteção dos trabalhadores.

A consolidação de instituições de regulação do trabalho protetiva do trabalhador, portanto, é indicativa da orientação da governabilidade de um Estado Social que se desenvolveu ao longo do século XX. O real caráter protetivo não é automatizado pela existência da regulação, mas tão-somente pela potência de seu conteúdo abstrato e pelo modo como este é apropriado empiricamente, ou seja, pelo seu conteúdo e por sua efetivação. É nesse ponto que a Fiscalização do Trabalho adquire importância como sujeito institucional que, diante da insuficiência das garantias formais para efetivação do direito dos trabalhadores, atua como parte de um sistema de mecanismo que buscam lhe dar concretude.

No Brasil, a AFT galgou proteção constitucional com a CF/88, art. 21, XXIV[4]. Ainda que com previsão em atos normativos anteriores, a inspeção do trabalho ganhou forma vigente até os presentes dias pela CLT, art. 626 e ss., com a atribuição de competência para fiscalizar o cumprimento das normas do trabalho. Como explica Bignami (2007), inicialmente, o âmbito de atuação da inspeção do trabalho restringiu-se a alguns tipos de trabalho e indústria – em que se evidenciava mais fortemente a mercantilização do trabalho – mas, seu alcance foi expandido para os três setores produtivos. Por meio da Lei 10.593/02, art. 11, I e II, rompeu com o espectro da relação de emprego atuando no combate ao trabalho informal:

Lei 10.593/02, art. 11. Os ocupantes do cargo de Auditor-Fiscal do Trabalho têm por atribuições assegurar, em todo o território nacional: I – o cumprimento de disposições legais e regulamentares, inclusive os relacionados à segurança e à medicina do trabalho, no âmbito das relações de trabalho e emprego; II – a verificação dos registros em Carteira de Trabalho e Previdência Social – CTPS, visando a redução dos índices de formalidade.

Os dispositivos acima ratificam a ideia de que a AFT é o agente institucional a quem incumbe dar concretude ao sistema de proteção social e do trabalho e que tal função deve alcançar qualquer relação em que tenha o trabalho como objeto. Ainda que o reconhecimento institucional formal valha a ação por força de lei e aponte impositivamente as ações que dão forma à fiscalização, não se pode assumir que a AFT seja resultado de mera ficção jurídica. Ao contrário, ela resultada da síntese de demanda das forças sociais face às assimetrias do capitalismo. De igual modo absoluto é a razão de existência e legitimidade a AFT quando se está em meio a uma sociedade do trabalho. E, à medida que se aprofunda a deterioração da condição humana decorrente de desequilíbrio de forças entre a economia e política, também se aprofunda a razão de existência e a legitimidade da AFT para atuar a favor da efetivação de direitos dos trabalhadores – empregados ou não, formais ou não. Esse desequilíbrio entre economia e política é aqui entendido como prevalência dos interesses econômicos privados de grupos monopólicos sobre os interesses públicos do conjunto da sociedade, entre os quais a qualidade nos termos de troca dentro do mercado de trabalho.

Na qualidade de autoridade competente pelo cumprimento da norma do trabalho, sua ação deve ser sempre no sentido de também lhe oferecer o maior alcance. Se a sua legitimidade está na demanda social pela efetivação dos direitos, de igual modo lhe cabe entender as nuances dessa demanda, as formas de trabalho que emergem do seu construto social e, com isso, entender como sejam também esses novos arranjos sociais abarcados pelo sistema de proteção vigente. O avanço do neoliberalismo e do trabalho para empresa detentora de plataforma digital demarcam os desafios que se colocam à AFT pelo que vem sendo chamado de reconfiguração do trabalho, mas que é acompanhado pela intensificação dos processos de desregulação e por uma nova configuração da relação entre economia e política.

As relações salariais e a interação entre política e economia passam a ser informadas pela governabilidade da razão neoliberal que adota a exacerbação da competitividade como princípio de convivência social. Os novos padrões normativos recrudescem as políticas de proteção social e do trabalho, com compressão do sistema de proteção dos salários. No âmbito do mercado formal, a flexibilização do salário e da jornada aumentou sobremaneira o poder unilateral do empregador na sua fixação e (des)organização, ainda, incorporando cada vez mais a fragmentação dos tempos de trabalho e da remuneração devida. O mercado informal, por sua vez, é crescente: são condições de trabalho cada vez mais precárias e de condição social cada vez mais incerta. Não há garantia de trabalho e o contingente atingido pela redundância do trabalho no mercado formal organizado já o é também redundante no mercado informal.

Esse cenário indicativo de caos social parece ser o que mais se adequa às propostas da razão neoliberal. Trata-se, como explicam Dardot e Laval (2017), no modo de governança que reconhece o Estado como interventor legítimo nos assuntos que dizem respeito à preservação dos interesses do mercado. Na consecução desse fim, forja-se o indivíduo empreendedor de si mesmo cuja subjetividade individuada volta-se a negar o sujeito coletivo e a legitimidade dos vínculos de solidariedade social. O Estado se afasta do papel de promotor da segurança social promovendo reformas que repercutem na deterioração do sistema de proteção social e do trabalho, com transferência direta dos riscos sociais aos indivíduos que tornam-se empreendedores de si mesmo.

Vê-se que a razão neoliberal propõe uma relação de parceria entre política e economia, na qual esta última se beneficia da ordem política para incremento dos primados da economia de mercado que patrocinam empreendimentos monopólicos em escala global. No âmbito do Estado, se fomenta por meio do redesenho institucional busca fomentar a desregulação das relações trabalhistas, transferindo a fixação dos termos de sua contratação para o âmbito privado, assumindo a falsa premissa de igualdade entre as partes contratantes – trata-se de um conjunto de políticas e de regulação sobre padrões de condutas que maximiza a mercantilização da força de trabalho e busca esvaziar as instituições trabalhistas.

No Brasil, as alterações estruturais neoliberais são realizadas desde a década de 1990. Ao longo dessas décadas, a flexibilização do sistema produtivo mostrou tratar-se de desregulação das relações de trabalho; e, as políticas de maior competitividade perante o mercado globalizado, consolidou-se em reposicionamento do país fora das etapas produtivas de maior valor agregado na divisão internacional do trabalho, assim como na ponta de baixo do fosso tecnológico que se esquadrinhou no mundo com o advento da revolução digital. A perda recente da indústria e as pressões sobre o mercado interno de trabalho são impiedosas: o setor de serviços está inchado de trabalhadores precários, desqualificados, lançados à absoluta insegurança social e vivendo naquilo que vem se configurando como estratégias de sobrevivência, muito distantes dos muitos sentidos emancipatórios que o trabalho pode assumir.

Nesse cenário, as instituições trabalhistas tornaram-se alvo dessa governabilidade e sofrem com as ações ou omissões de governança que visam repercutir na fragilização tanto da sua estrutura como do apoio político-social do conjunto da sociedade. Esse movimento vem se aprofundando a partir dos atos reformistas de 2017, e se intensificou sobremaneira no governo Bolsonaro, com atos flagrantes de deterioração do mundo do trabalho e subjugação aos interesses econômicos privados. Isso também vem reverberando na AFT e, aqui, se busca ilustrar as investidas contra este agente institucional por meio da não recomposição do seu quadro funcional, de reforma ministerial que buscou comprometer o seu funcionamento, independência e autonomia, por transformações orquestradas em Medidas Provisória que deterioram as condições de trabalho da Fiscalização (MPs 905, 927 e 936).

No que concerne à falta de recomposição de quadro, identifica-se que a AFT, segundo os últimos dados disponibilizados pela Secretaria de Planejamento (abril/2020), conta com um total de 2.105 Auditores-Fiscais do Trabalho ativo, número que é significativamente inferior ao número de 3.644 vagas oficialmente disponibilizadas para a carreira. Não se trata de um retrato circunstancial, mas de uma escolha política deliberada de deterioração da atividade por redução do número de profissionais. Alguns pedidos para realização de concurso vêm sendo realizados, desde o último concurso em 2013. Por meio do Aviso n. 97/2014/MTE foi feito o pedido de 800 vagas sem lograr êxito. Destaca-se que, segundo Santos (2020), o número de AFT ativos se encontra muito inferior à parametrização da OIT, havendo 0,25 auditores-fiscais por grupo de 10.000 trabalhadores, com dados de dezembro/2018. A isso se acrescenta três fatores que mostram os desafios da AFT para a adequada realização da sua função fiscalizatória no Brasil:

    1. o país é o quinto maior país do mundo em extensão territorial, com um total de 8.514.876 km2 (CNAE/IBGE);
    2. segundo a Carata de Conjuntura do IPEA (2º tri/2020), o mercado de trabalho brasileiro em maio/2020 encontrava-se com 84,43 milhões de brasileiros(as) na população ocupada, dos quais 34,5% eram informais e 10,4% trabalhavam remotamente. Além destes, outros 10,9 milhões de brasileiros(as) se encontram desocupados pressionando o fluxo de contratações, demissões e rebaixamento das condições de trabalho;
    3. a amplitude das relações abrangidas pela fiscalização que alcançam todos os trabalhadores que são empregados ou não-empregados, formais ou informais, realizam trabalho lícito e ilícito (trabalho escravo e trabalho infantil), trabalhadores vitimados por acidente de trabalho, pelo que se tornam verdadeiros guardiões da dignidade humana do trabalhador (já precário), mas também de uma parcela ainda mais vulnerável da população, aqueles privados da sua liberdade e da sua infância.

A dificuldade de recomposição do quadro ainda encontra obstáculo na opinião política do Presidente Jair Bolsonaro, que, antes mesmo de eleito, nega a importância da atuação da fiscalização e coloca a AFT como aqueles que “criam dificuldade para vender facilidade” e como perseguidores “de quem produz”, para afirmar que levará a instituição à extinção[5]. A afirmação é leviana, mas não é retórica e corrobora a governabilidade destrutiva das instituições trabalhistas.

A reforma ministerial promovida pela MP 870/2019, convertida na Lei 13.844/2019, extinguiu o Ministério do Trabalho e Emprego e, por distribuição de competências, deslocou a AFT para o Ministério da Economia. Politicamente, a AFT perde importância ao meio da diversidade de pautas abrangidas, assim como diante da subordinação da Inspeção do Trabalho a quatro níveis hierárquicos, uma vez que a Secretaria da Inspeção do Trabalho (SIT) está subordinada à Secretaria do Trabalho, por sua vez subordinada à Secretaria Especial de Previdência e Trabalho, enfim, subordinada ao Ministro da Economia. Trata-se de uma estrutura burocratizada que impacta o exercício da autonomia da AFT enquanto autoridade trabalhista.

Do ponto de vista técnico, falta coerência na multiplicidade temática entre questões fazendárias, previdenciárias e do trabalho, de comércio exterior e de gestão e governo digital, todos, temas das secretarias diretamente vinculadas ao Ministro da Economia. É duvidosa a eficiência quando partimos de tal miscelânea e, decerto, contraditória à especialização de políticas voltadas à questão do trabalho e emprego. Fica evidente que as questões do trabalho não têm centralidade no governo Bolsonaro, exceto quanto a ser objeto de ações políticas voltadas à sua destruição.

A formação de um modo de regulação desqualificador da autoridade trabalhista da AFT prossegue em sede de MPs. Na MP 905/2020, art. 28, são propostas alterações e inclusões no texto da CLT. Dois aspectos chamam a atenção quanto à AFT: a dupla visita e a má-fé do agente de inspeção.

Tentou-se alterar o art. 627, da CLT para subverter a lógica exceptiva da dupla visita em regra de cumprimento obrigatório, dispensada excepcionalmente. O rol de hipóteses passaria a prever dupla visita quando os sujeitos fiscalizados fossem “microempresa, empresa de pequeno porte e estabelecimento ou local de trabalho com até vinte trabalhadores”, a matéria versar sobre questões de segurança e saúde do trabalhador de gradação leve ou o procedimento tivesse sido agendado pela Secretaria Especial. Além disso, se teria criado o prazo mínimo de 90 dias entre as inspeções, independentemente da complexidade ou gravidade da matéria violada.

A alteração proposta para o art. 628, da CLT modificava o alcance da má-fé. O texto vigente restringe a sua verificação restrita aos atos de omissão ou lançamento no livro. A proposta da MP 905/20, era se deixar em aberto, para análise conforme o caso, a possibilidade de se avaliar um agir com má-fé do agente fiscalizador em quaisquer de suas ações, inclusive a do seu escopo primeiro que é fiscalizar.

As alterações propostas para os dois artigos supra fazem um claro indicativo da politização da AFT pelo atual governo e da tentativa de mitigar o seu caráter técnico, como autoridade competente a fazer efetivar os direitos do trabalhador. No primeiro caso, converteria a AFT em uma espécie de consultoria trabalhista gratuita para sujeitos violadores da lei, reforçando a personagem do “fiscal-amigo”. No segundo caso, vê-se a tentativa de criar um mecanismo de pressão sobre os agente de inspeção individualmente considerados. Permitir-se-ia ações de perseguição política dentro da carreira, fazendo pairar sobre os auditores-fiscais o risco eminente de ver-se envolvido em casos de má-fé ao arbítrio dos seus superiores e conforme pressões e interesses privados e políticos defendidos por eles.

Em 2020, as MPs 927 e 936 também tratam do trabalho da AFT nas medidas de enfrentamento do coronavírus. Na MP 927, art. 31, volta-se a mitigar a importância da ação fiscalizadora e da sua função de coerção às violações de direito a partir da punição dos sujeitos violadores, invocando no caput a ação “de maneira orientadora”, exceto nas situações elencadas em seus incisos: falta de registros de empregados (quando descoberto por denúncias), irregularidades imediatamente relacionadas às situações de grave e iminente risco e à acidentes, e, trabalho escravo e infantil, ou seja, somente em situações extremadas de violação da condição humana.

A MP 936, por sua vez, amplia o rol de hipóteses em que a conduta orientadora deve ser afastada. Trata-se do cumprimento dos acordos de redução de jornada e de salário ou de suspensão do contrato de trabalho que são objeto da MP, devendo a AFT continuar a oferecer consultoria quando encontrar violações na redução de jornada e de salário que não tenham sido objeto de contrato nos termos da MP 936 e nas demais situações não excetuadas. Vê-se que esses atos do Chefe do Executivo (MP 905, 927 e 936) trazem em seu bojo mecanismos que corroboram o desenho institucional neoliberal a favor do desmantelamento das instituições do trabalho, tanto quanto as omissões para recomposição do quadro funcional da AFT, quanto reforma ministerial que a rebaixa no quadro de hierarquias do Poder Executivo.

Apesar das ações governamentais que expressam a política de sucateamento da AFT, as forças de resistência permanecem atuando e conseguiram atribuir à fiscalização do trabalho natureza de atividade essencial conforme definido art. 3º, XXXVI, do Decreto nº 10.282, de 2020  (incluído pelo Decreto nº 10.292, de 2020). Trata-se de uma vitória nas disputas entre as forças político-sociais sobre os contornos a serem dados ao redesenho institucional neoliberal e que se mantêm vívidas na perspectiva do futuro do trabalho de um mundo cujas relações se fazem transformadas pela Revolução Digital.

Os imperativos neoliberais são exacerbados nas relações de trabalho realizadas via plataformas digitais. O contingente de trabalhadores absorvidos pelas empresas detentoras destes meios de produção, por ora, são oriundos das classes sociais mais vulneráveis para a realização de trabalhos precários por extensão de jornada, rebaixamento de remuneração, incerteza de realização do trabalho. São trabalhadores a quem, até então, as disputas judiciais e a produção legislativa, vêm, predominantemente, deixando de abarcar no sistema de proteção social e do trabalho.

A título de exemplo das novas formas que as relações de trabalho vêm assumindo com as inovações tecnológicas da Revolução Digital, os trabalhadores do setor de entrega estão sob invisibilidade institucional, ainda que sejam considerados para o funcionamento do comércio durante a pandemia. A invisibilidade institucional é aqui compreendida como uma ausência de reconhecimento da existência destes trabalhadores como sujeitos de direito beneficiários do sistema de proteção social e do trabalho. As instituições trabalhistas formais não incorporaram estes trabalhadores como sujeitos beneficiários da sua ação.

Em pesquisa recente sobre os entregadores via plataforma digital[6] identificou-se que aqueles que trabalhavam as mais longas jornadas diárias antes da pandemia e que continuaram a trabalhar a mesma faixa de horas, sentiu diminuir seu rendimento mais do que aqueles que trabalhavam menos horas. Mais de 70% deles trabalham 6 ou 7 dias por semana. Ao lado disso, as empresas que estão se beneficiando da mercantilização do seu trabalho durante a pandemia, via de regra, não são obrigadas a ofertar equipamentos de proteção individual para esses trabalhadores e não o fazem de bom grado.

Esse cenário é citado como argumento para apontar os efeitos da Revolução Digital, que incham o setor de serviços com força de trabalho redundante e incrementa tecnologias, que viabilizam novas formas de expropriação e de relações de trabalho, que recriam as bases materiais em níveis de precariedade (trabalho informal, com longo tempo de trabalho, rebaixamento salarial e desproteção das normas de saúde e segurança). São trabalhadores que encarnam a face mais perversa da razão neoliberal. Na sua relação com o indivíduo, a grande empresa se apropria da invisibilidade social das populações mais vulneráveis para submetê-los às condições subumanas de trabalho; na sua relação com o Estado, se oportuniza da invisibilidade institucional forma para se beneficiar do limbo regulatório.

O futuro parece prometer justificar cada vez mais a necessidade de uma AFT forte e eficaz, com autonomia no exercício da sua autoridade trabalhista para poder realizar a fiscalização necessária desses vínculos. Entender o que realmente há de novo nessas relações, o que é mero combate ideológico para a satisfação dos interesses dos grandes capitais e a função que a AFT adquire enquanto sujeito institucional  são as questões que se pretendeu colocar aqui em perspectiva. É preciso pensar o “futuro do trabalho” e a AFT dentro dele.

 

Referências

ABÍLIO, L. C.; ALMEIDA, P. F.; AMORIM, H.; CARDOSO, A. C. M.; FONSECA, V. P.; KALIL, R. B.; MACHADO, S. Condições de trabalho de entregadores via plataforma digital durante a Covid-19. Revista Jurídica Trabalho e Desenvolvimento Humano, Campinas, EDIÇÃO ESPECIAL – DOSSIÊ COVID-19, p. 1-21, 2020.

BENSUSÁN, G. (Coord). Instituições Trabalhistas na América Latina: desenho legal e desempenho real. Rio de Janeiro: Revan, 2006.

BIGNAMI, R. A inspeção do trabalho no Brasil: procedimentos especiais para a ação fiscal. São Paulo: LTr, 2007.

BOYER, R. Teoria da Regulação: os fundamentos. Paulo Cohen (Trad.). São Paulo: Estação Liberdade, 2009.

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O Brasil no Mundo. Acesso em: 16 jun. 2020. Disponível em: <https://cnae.ibge.gov.br/en/component/content/article/94-7a12/7a12-vamos-conhecer-o-brasil/nosso-territorio/1461-o-brasil-no-mundo.html>

Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Carta de Conjuntura do IPEA. Acesso em 16 jun. 2020. Disponível em: <https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/cc47_nt_pnad.pdf>

GOODIN, R. E. Institutions and their Design. In: The Theory of Institutional Design. Cambridge University Press, 1998.

DARDOT, P.; LAVAL, C. A Nova Razão do Mundo. Ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.

POLANY, K. A grande transformação: as origens de nossa época. Rio de Janeiro: Campus, 2000.

SANTOS, L. A. A inspeção do trabalho na nova configuração ministerial. Brasília: SINAIT, 2020.

SECRETARIA DE PLANEJAMENTO (SEPLAN). Painel Estatístico de Pessoal. Acesso em 14 jun. 2020. Disponível em: <http://painel.pep.planejamento.gov.br/QvAJAXZfc/opendoc.htm?document=painelpep.qvw&lang=en-US&host=Local&anonymous=true>.

[1]  O “poder” na ciência política “é a capacidade de uma pessoa ou um grupo para controlar as ações e decisões dos demais – ou, melhor ainda, para garantir os resultados desejados sem levar em consideração as ações ou decisões de outras pessoas” (GOODIN, 1998, 31).

[2] Ao final, em grande medida, o sentido do estudo das instituições é explorar, precisamente, as maneiras pelas quais o passado deixa traços no presente e restringe nossas ações presentes e opções futuras (…) ao projetar instituições sociais, sempre o fazemos no contexto de um conjunto de práticas passadas, que traz consigo suas próprias limitações e possibilidades peculiares (GOODIN, 1998, p. 48).

[3] “A governabilidade – para usar um termo neoinstitucionalista dentro da administração pública – nada mais é que a condução da sociedade por parte das autoridades que controlam o que, desde o ponto de vista organizacional, constitui o alto comando da sociedade” (GOODIN, 1998, p. 28).

[4] CF/88, art. 21, XXIV atribui à União a competência para “organizar, manter e executar a inspeção do trabalho”.

[5] Jornal do Comércio, em 30 jun.2017, acesso em 14 jun. 2020. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=-7DlY8WSB-A>.

[6] ABÍLIO, L. C.; ALMEIDA, P. F.; AMORIM, H.; CARDOSO, A. C. M.; FONSECA, V. P.; KALIL, R. B.; MACHADO, S. Condições de trabalho de entregadores via plataforma digital durante a Covid-19. Revista Jurídica Trabalho e Desenvolvimento Humano, Campinas, EDIÇÃO ESPECIAL – DOSSIÊ COVID-19, p. 1-21, 2020.