Refletir sobre a transição de um regime autoritário para o democrático no Brasil nos permite avaliar a consolidação da democracia no país e as crises pelas quais atravessa. Vê-se que nem sempre toda e qualquer democracia política enseja uma melhora nas condições materiais de vida da população, especialmente no caso brasileiro, marcado pela acentuada desigualdade entre ricos e pobres. Tal circunstância associa-se ao modo da acumulação de capital e às normas protetivas à esse mesmo capital. Contudo também se relaciona à forma que o processo de transição foi construído, uma vez que a democracia política não é o suficiente para que se avance no sentido da igualdade. Conforme Moisés (1995, p. 40), “[…] a plena vigência da democracia implica no estabelecimento de níveis de equidade social capazes de equalizar certas condições básicas sem as quais o exercício da própria cidadania se torna impossível”.
Duas abordagens teóricas distintas sobre o processo de mudança política predominam entre as análises, permitindo observar a direção e o resultado em que se instaura a real democracia. Na primeira abordagem, que foi hegemônica até meados da década de 1980, que enfoca a “micropolítica” considera como relevante a condução dos atores políticos no processo de liberalização. Privilegia-se a escolha dos atores políticos, bem como os resultados da interação de suas estratégias na configurac?a?o das transic?o?es para o regime democra?tico. Logo, é considerado o voluntarismo dos atores políticos na realização de uma ação liberalizante. (O’DONNELL; SCHIMITTER, 1988, HUNTINGTON, 1994). Em decorrência disso, pode-se dizer que em 1974 os militares iniciaram e determinaram a natureza e o andamento do processo de mudança política no Brasil.
Já na segunda abordagem, consideram-se as explicações “macro-orientadas”, alicerçadas nas estruturas econo?micas e sociais como variáveis do processo de mudanc?a poli?tica. Esta análise conecta o período de transição aos fenômenos políticos estruturais, não se caracterizando uma autonomização das diversas esferas da sociedade. (SALLUM JUNIOR, 1996, O’DONNELL, 1993).
Considerando a definição da “micropolítica”, a análise produzida por O’Donnell e Schimitter (1988) sobre a transição na América Latina introduz o conceito de incerteza para valorar a escolha dos atores na direção destes processos, com vistas a estimular a realização de um “pacto” negociado entre os atores políticos envolvidos no sentido de orientar a um determinado comportamento político. Soma-se a isso a ausência de legitimidade que os regimes autoritários possuem, salvo em momentos que ocorrem durante o processo de transição, quando produzem determinadas ações liberalizantes, sinalizando aos envolvidos no jogo que estão dispostos a mudar o regime. Assim, as estratégias dos atores estavam sempre ligadas aos seus próprios interesses, isto é, desenvolvendo ações liberalizantes destinadas a abrir ou ampliar a participação de outros atores políticos com a finalidade de perpetuar o regime autoritário.
No caso brasileiro, a transição negociada e controlada pelos militares não conduziria a uma ruptura institucional do antigo regime, uma vez que o sistema eleitoral era moldado para que não produzisse mudanças significativas no regime apesar de haver eleições para alguns cargos. Logo, como havia a adesão da oposição ao processo eleitoral, havia uma certa aparência de legitimidade. (LAMOUNIER, 1988). No entanto, tal dimensão analítica desconsidera variáveis explicativas, tais como: patrimonialismo, clientelismo, autoritarismo, e outras presentes no processo de formação da cultura política brasileira, que produzem um comportamento autoritário de apropriação privada do Estado.
[…] estudos da transição às suas “incertezas”, bem com à excessiva valorização da indeterminação das escolhas dos atores implicadas por elas, o que levou alguns autores a acreditar que fatores menos “incertos”, mas que tem permanência e efeitos mais estáveis, eram inapropriados ou desnecessários para explicar o padrão de mudanças próprio daquela situação. No entanto, a importância desses fatores transparece na experiência de transições como a brasileira, que, na fase de definição dos arranjos políticos e constitucionais, mostrou sobrevivências arcaicas, decorrentes de configurações político-culturais articuladas com a capacidade de resistências de interesses sociais específicos, podem influir decisivamente na escolha dos atores a respeito do funcionamento do novo regime político. (MOISÉS, 1995, p. 31).
A desconsideração de caracteri?sticas inerentes aos padrões de comportamento político reforça um sistema autoritário e resistente à democratizac?a?o, uma vez que não há uma adesão ou inclusão de todos os membros no “pacto” para construir uma nova ordem política, que considere o conjunto de conflitos inerente de sociedades desiguais. Neste sentido, cabe refletir sobre o questionamento feito pelo Zaverucha (2005, p. 17): em que direção está caminhando a democracia brasileira?
Zaverucha (2005) pensa em democracia associada à coerção, em razão disso chega a sua constatação de que não houve, no período de transição, obediência por parte dos militares aos civis – pelo contrário, houve sempre um receio ou mesmo medo por parte dos civis de que houvesse reversão no processo de transição. Considerando que o regime militar conduziu e controlou este período, esta circunstância fez com que interferisse na construção do arranjo institucional democrático. Diante disso, o autor questiona a própria consolidação da democracia no Brasil, trazendo um conjunto de elementos (dentre os quais, normas, práticas administrativas de sigilo) que desmistificam tal consolidação democrática apenas por existir eleições livres e competitivas, visto que os eleitos falham em proteger os direitos básicos dos cidadãos. Enfatiza-se a posição do autor no sentido de compreender a importância da competição eleitoral; contudo, ele entende que esse critério não é suficiente para considerar um país democrático.
O modo em que a transição desenvolveu-se no Brasil contribuiu para que resquícios do regime militar permanecessem no novo ordenamento constitucional, sempre considerando que o resultado das leis decorreu das escolhas estratégicas dos atores políticos. Pode-se afirmar que houve, por parte do regime militar, um constrangimento ao processo de transição para a democracia. A desconsideração dos aspectos culturais, institucionais e sociais contribuiu, também, para que não houvesse uma efetiva participação de todos na construção do regime democrático.
Ainda hoje na democracia brasileira, a dominação é exercida por uma elite política e econômica, associada a setores da alta burocracia estatal, que impõe valores não democráticos ao regime político. A maioria da população permanece afastada da arena decisória, não tem as suas necessidades atendidas do ponto de vista de uma democracia substancial. Além disso, são claudicantes os mecanismos de controle civil sobre as instituições democráticas, não havendo formas de limitação dos poderes dos atores não eleitos – pelo contrário, há um ativismo judicial incompatível com o regime democrático.
Pode-se dizer que não há, no Brasil, um equilíbrio entre a democracia formal e a substancial, permanecendo ainda acentuada a desigualdade social, que resulta numa desigualdade de oportunidades e que é decorrente de um modelo de transição que não avaliou os impactos que uma cultura escravocrata, patrimonialista e clientelista, marcante na elite brasileira, teria no estabelecimento da democracia. Tanto é que nenhum dos modelos de abordagem considera decisivo o papel da população brasileira na transição política, mesmo na abordagem que considera a estrutura socioeconômico na condução da transição. Como afirmado por Sallum (1996), a crise do Estado intervencionista e a influência internacional na economia foram decisivos na construção de uma nova aliança para dirigir a mudança política pós regime militar.
Para muitos analistas políticos, a democracia brasileira já estava consolidada, no entanto, com o impeachment, com natureza de golpe parlamentar, rompendo as regras do jogo e impedindo a presidente eleita, Dilma Rousseff, de continuar à frente do comando do poder executivo, em 2016 reabriu-se o debate de transição política e consolidação da democracia.
Essa crise da transição perdurou todo o período de governo de Michel Temer e Jair Bolsonaro. As caraterísticas de uma cultura política autoritária reemergem com força em parcela significativa da sociedade brasileira. O aspecto formal da democracia, como procedimento de materialização da soberania e das regras democráticas, passou a ser secundário, fazendo com a elite política, econômica e burocrática agisse por fora das intuições democráticas. O elemento de extermínio e erosão da oposição, da diversidade e da igualdade era constante nas manifestações públicas do Jair Bolsonaro, tanto como candidato, como Presidente da República (RIBEIRO, 2018; SOARES, 20222). Esta trajetória resultou num processo de desdemocratização no Brasil, visto que houve uma atuação de núcleos autônomos de poder nos processos democráticos e uma redução de políticas públicas para reduzir as desigualdades categóricas. Além dos questionamentos diretos sobre o processo eleitoral, a Justiça Eleitoral e a própria Constituição Federal. Seu ápice foram as cogitações de ruptura com a ordem constitucional frequentemente tornadas públicas ora por Bolsonaro, ora por interlocutores de seu governo, inclusive militares. Em uma ascendente, a democracia foi tensionada tanto em seus aspectos normativos quanto substantivos.
Por fim, o processo de mudança política estimula a debater porque razão existem revezes e crises nas democracias que se pensavam estarem consolidadas. A democracia é o resultado de um processo histórico e contínuo, refletindo as lutas políticas e os valores de uma cultura política. No caso brasileiro, os efeitos dos valores autoritários decorrentes de uma cultura, escravocrata, patrimonialista, clientelista e individualista não foram enfrentados de forma a modificar esses padrões e a confluência com as variáveis econômicas, sociais e politicas impactam no desenvolvimento da democracia.
REFERÊNCIAS
HUNTINGTON, Samuel. A Terceira Onda: democratização no final do século XX. São Paulo: Ática, 1994.
JUNQUEIRA, Caio. Forças armadas entregam ao TSE dúvidas sobre urnas e pedem sigilo. CNN BRASIL, 14 set. 2021. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/forcas-armadas-entregam-ao-tse-duvidas-sobre-urnas-e-pedem-sigilo/
MOISÉS, José Álvaro. Os Brasileiros e a Democracia: bases sócio-políticas da legitimidade democrática. São Paulo: Ática, 1995.
LAMOUNIER, Bolivar. O Brasil autoritário revisitado: o impacto das eleições sobre a Abertura. In: STEPAN, Alfred. Democratizando o Brasil. São Paulo: Paz e Terra,1988. p. 92-115.
O’DONNELL, Guillermo; SCHMITTER, Phillipe. Transições do regime autoritário: primeiras conclusões. São Paulo: Vértice, 1988.
O’DONNELL, Guillermo. Acerca del estado, La democratización y algunos problemas conceptuales. Una perspectiva latinoamericana com referencias a países poscomunistas. Desarollo Económico, v. 33, n.130, 1993.
RIBEIRO, Janaína. Vamos fuzilar a petralhada diz Bolsonaro em campanha no Acre. EXAME, set. 2018. Disponível em: https://exame.com/brasil/vamos-fuzilar-a-petralhada-diz-bolsonaro-em-campanha-no-acre/
SALLUM JUNIOR, Brasílio. Labirintos. Dos Generais à Nova República. São Paulo: Hucitec, 1996.
SOARES, Ingrid. Bolsonaro diz que família é sagrada e insinua que LGBTQi+ vão para o inferno, CORREIO BRASILIENSE, 17 jan. 2022. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2022/01/4978076-bolsonaro-diz-que-familia-e-sagrada-e-insinua-que-lgbtqi-vao-para-o-inferno.html
ZAVERUCHA, Jorge. FHC, Forças Armadas e Polícia. Entre o autoritarismo e a democracia (1999-2002). Rio de Janeiro: Record, 2005.