Parte de uma visão filosófica -e não puramente jurídica- determinar a viabilidade da existência de direitos absolutos e seu grau de diferenciação daqueles que podem ser considerados relativos. A proteção de direitos, liberdades, princípios, regras e valores, para além do reconhecimento e do ordenamento nos textos constitucionais, se inscreve nessa perspectiva filosófica, alcançando graus de satisfação e cumprimento ligados a princípios de gradação e progressividade.
Para facilitar a conceituação, podemos partir da ideia de que o reconhecimento dos direitos se dá primeiramente pela presença de premissas naturais, como a dignidade humana, que implica que os Estados Constitucionais de Direito sejam obrigados a validar sua presença. No entanto, não basta esse reconhecimento. É necessário que os processos de constitucionalização sejam capazes de consolidar sua eficácia e proteção. E mais, que seu exercício se faça abrangente e capaz de garantir a adesão em sistemas democráticos. Isso requer o cumprimento de distintas tarefas, como identificação de conteúdo e núcleo essencial dos direitos fundamentais. Nesse movimento de consagrar, hierarquizar moralmente ou definir diferentes níveis de alcance de salvaguarda, podemos colocar o direito à Liberdade de Expressão como uma garantia que passa por uma série de problematizações. Trata-se de uma posição indiscutível ou podemos pensar que quando tal liberdade fere a própria Democracia deverá haver limitação ou modulação? O interesse público ou os direitos de outras pessoas podem diminuir o âmbito de sua proteção? É possível admitir restrições quando existem conflitos em casos concretos? Se existem direitos que operam como absolutos, cujo grau de cumprimento ou satisfação é imperativo, enquanto outros funcionam como relativos e são passíveis de qualificar ou limitar, qual a posição do direito à Liberdade de Expressão, especialmente quando tal princípio é evocado para ferir a mesma democracia constitucional que lhe assegura validade?
O artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos afirma que “Todo indivíduo tem direito à liberdade de opinião e expressão; Este direito inclui o direito de não ser incomodado por suas opiniões, de investigar e receber informações e opiniões e de divulgá-las, sem limitação de fronteiras, por qualquer meio de expressão “. Já a Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), no seu artigo 13, vai mais além, ao proibir expressamente restrições ao seu exercício e limitar a censura prévia apenas para proteger os direitos de terceiros e por motivos de segurança nacional e ordem pública.
É justamente nesse ponto, podemos pensar, que residem as brechas para os questionamentos elencados: ainda que não seja admitida censura prévia, há a possibilidade de prever responsabilidades subsequentes, necessárias para assegurar respeito pelos direitos ou reputação de outrem, ou proteção da segurança nacional, ordem pública ou saúde ou moral públicas.
No mesmo artigo 13 também consta que o direito de expressão não pode ser restringido por meios, tais como abuso de controles oficiais ou privados destinados a impedir a comunicação e a circulação de ideias e opiniões. Nesse ponto, os debates mais acalorados no país, na esteira da crise sanitária que somou mais de 600 mil mortes – ao redor de 450 mil evitáveis- ou no recrudescimento de condutas de racismo e homofobia inspiradas pela prática e discurso das próprias autoridades, passaram a tentar delimitar o que é opinião e tentar diferenciá-la de incitação ao crime e à violência.
Se “a liberdade de informação e expressão é a pedra angular de toda sociedade livre e democrática” (Aduayom et al. V. Togo), é preciso reconhecer que apesar da sua amplitude, não se trata de um direito absoluto. Mais, na atualidade é evocado como escudo para os ataques mais nefastos aos direitos de frações expressivas da sociedade e ao próprio sistema democrático.
É reconhecido que as violações ao direito à liberdade de expressão afetam toda a sociedade e não apenas a pessoa calada, uma vez que o fluxo livre de ideias pode ser interditado, restringindo a entrega de informações e a pluralidade de opiniões. Restrições desnecessárias ou desproporcionais podem ser muito nocivas. Temos portanto, duas dimensões da Liberdade de Expressão, tanto a garantia de se expressar como a promoção do acesso a multiplicidade de opiniões, o que significa que não haveria sentido em usar a censura para garantir essa proteção. Qual deveria ser então a medida de controle e garantia?
A proposta desta análise é discutir limites e amplitudes desse direito a partir da deontologia jornalística e da atuação de não-jornalistas colocados, todos, em um ambiente caótico de desordem informacional, aqui considerado como um fator grave de erosão democrática.
Os cânones jornalísticos e as práticas amadoras
Os marcos fundadores do debate normativo sobre a liberdade de expressão estão muito vinculados à sua relação com as atividades jornalísticas. A tal ponto que Liberdade de expressão e liberdade de imprensa se confundem ao longo da História, sendo que seus laços se intensificam nas lutas e revoluções modernas do século XVIII, ganhando relevância como garantidores da consolidação e qualidade democrática.
Schudson (2008) ao responder por que o jornalismo é importante para a democracia aponta que este não a produz onde ela não existe, mas auxilia a qualificá-la, por pelo menos seis ou sete motivos: informar; investigar; analisar; favorecer a empatia social; constituir-se como um tribunal público; mobilizar e promover a democracia representativa.
O Jornalismo, indiscutivelmente, tem uma importante função social e capacidade de impulsionar virtudes para a vida pública. No entanto, existem fragilidades e paradoxos que comprometem essa missão democrática. Para Blumler & Gurevitch (1995), os problemas relativos a uma comunicação cívica são de ordem social e midiática e dizem respeito às transformações sociais e o surgimento de uma democracia de massa.
A construção social da realidade por parte da mídia é um processo de produção, circulação e reconhecimento já que a atividade jornalística é uma manifestação socialmente reconhecida e compartilhada (ALSINA, p.47, 2009). Os públicos firmam com a imprensa informativa um pacto de credibilidade, cabendo a ela garantir não apenas a livre expressão, mas também a publicização da verdade oculta nos desvãos do poder e é por isso que modernamente a imprensa se investe do direito moral de narrar, inerente a toda e qualquer testemunha de um fato (SODRÉ e PAIVA, 2011).
Essa construção se alicerça num discurso para dizer a verdade, o que não elimina paradoxos, na medida em que, conforme Alsina destaca, os leitores ao mesmo tempo em que estão dispostos a acreditar no que se escreve nos jornais, também desconfiam que os jornalistas mintam
A hipótese de Sodré e Paiva é que a falha na apuração e o excesso de informação em circulação ou à disposição têm produzido um ambiente em que as notícias circulam de maneira acelerada, favorecendo o boato e a mentira.
Com isso, o lastro de confiabilidade que caracterizaria o jornalismo tradicional foi substituído pelo lastro da celebridade, que pode assinar um blog ou post em rede social e conferir autenticidade ao conteúdo publicado. A mídia acaba por referendar essa geração de informação na medida em que reconhece na “interatividade” com o público um canal para aumentar suas próprias informações e garantir maior criatividade.
Traquina reconhece que há vários elementos condicionando e provocando tensões na prática jornalística. Esses constrangimentos, por outro lado, se complementam para forjar, na própria trajetória histórica do jornalismo, uma cultura compartilhada – o ethos jornalístico: um modo de agir, falar e ver o mundo; um o modo de ser jornalista e estar no jornalismo; um dever-ser (Dairan, Christoffoletti, 2020) .
Para Cornu (1999), a liberdade caracteriza-se como espaço necessário à abertura, justamente, da dimensão ética, mas é preciso considerar o jornalismo não um ato individual, e sim, um ato social que se desenvolve em um espaço público. “A liberdade de imprensa não é senão um dos aspectos da liberdade de expressão, que pertence a todos os homens; por isso em nada é privilégio da imprensa, que dela se reclama, ou dos homens que fazem ofício de informar, de formular opiniões, de emitir críticas” Cornu (1999, p. 133).
Portanto, a defesa da liberdade de expressão está vinculada a uma ética compartilhada. Essa conduta é regrada por códigos deontológicos ao redor do mundo, ditados por empresas e associações de classe. Em Botsuana (“A salvaguarda da liberdade de expressão em Botsuana deve estar estritamente relacionada ao direito de acesso à informação”), no Brasil (“O Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros tem como base o direito fundamental do cidadão à informação, que abrange direito de informar, de ser informado e de ter acesso à informação”) ou na Bélgica (“Liberdade de expressão é um dos direitos fundamentais do homem, uma condição essencial para a opinião pública ser esclarecida e informada”), na Alemanha (“a liberdade de imprensa, consagrada na Constituição, inclui a independência e a liberdade de informação e o direito de expressão e crítica” ou na África do Sul (“o princípio básico a ser acolhido é de a liberdade de imprensa é indissociável e sujeita aos mesmos deveres e direitos de um indivíduo”) todos os preâmbulos destacam a liberdade de expressão como virtude fundamental.
Apesar de que exista todo tipo de paradoxo e ambiguidade nessa deontologia profissional, esse dever ser profissional assume uma garantia ética. No entanto, estamos diante de uma mudança substancial em que o exercício do jornalismo não se restringe apenas aos profissionais que a ele se dedicam (RUELLAN; ADGHIRNI, 2009; DOMINGO; LE CAM, 2015 apud Dairan, Christoffoletti, 2020), mas também é definido por seus processos de constituição a despeito de quem os empreende.
Se o jornalismo tem necessariamente que reafirmar sua finalidade pública, outros agentes amadores que praticam atividades semelhantes ao jornalismo não sustentam obrigatoriamente o mesmo sistema ético integrado em valores-base comuns. Pelo contrário, há uma dinâmica em que o desafio aos preceitos jornalísticos é valorizado, substituindo o papel de instância verificadora da verdade, por um novo tipo de produção customizada, de narrativas ajustadas a posições ideológicas ou estrategicamente construídas para desordenar o ambiente informacional. Ocorre que esse tipo de informação produzida por diferentes protagonistas e perfis, com graus de influência tão amplos quanto voláteis, parece ter alcance e escala, conformando novas dinâmicas de formação de opinião, com índices de celebridade mais valorizados do que a especialidade. Esses novos fenômenos se ancoram numa visão antissistema e numa redução da confiança no jornalismo profissional. O relatório do Instituto Reuters para Estudos do Jornalismo da Universidade de Oxford, com base em pesquisa realizada pelo Instituto Datafolha no Brasil, no primeiro semestre deste ano, mostra que houve uma redução da confiança do brasileiro na imprensa e que essa redução é maior entre os que aprovam o Presidente da República. Enquanto 53% dos que não confiam na imprensa aprovam o líder da nação, esse índice foi de apenas 28% entre os que confiam. A pesquisa foi realizada simultaneamente no reino Unido, EUA e Índia, permitindo comparativos interessantes. Em comum entre os países, o perfil dos mais descrentes: homens brancos e mais velhos. Dentre as particularidades do Brasil, os com menor confiança não são oriundos de cidades pequenas ou têm menor nível de educação e renda, como nos outros países. Esse fenômeno urbano e disseminado entre perfis socioeconômicos mais privilegiados pode trazer consequências muito graves, não apenas para o sistema democrático, mas para a integridade física, vida e saúde das pessoas.
Assim, quando alguém evoca o direito à Liberdade de Expressão para disseminar tratamentos ineficazes ou com efeitos que agravam uma doença e levam a morte, usa claramente uma prerrogativa que precisaria ser subalterna ao direito à vida e ao respeito à saúde pública. As ações de desorientação, mentiras, manipulação e ataque aos preceitos científicos podem ter gerado milhares de mortes evitáveis no país durante a pandemia. E nesse caso, cabe ao jornalismo a função de esclarecimento, o que condenaria a falsa ideia de simetria, de que é preciso ouvir e mostrar “os dois lados” ou outros pontos de vista.
Quando a liberdade é acionada para ferir o sistema democrático e corromper o equilíbrio republicano, na verdade põe em risco a segurança e a ordem públicas. Do mesmo modo, o posicionamento homofóbico de um atleta gera sim não apenas controvérsia, mas risco real em um país com o primeiro lugar no ranking de assassinato por homofobia e transfobia. Nesses exemplos citados (poderiam ser muto mais) a resposta se deu em diferentes âmbitos: político, jurídico e social. Desde a investigação por comissão parlamentar de inquérito, a processos no Supremo Tribunal Federal, até movimentos de boicote de patrocínios por marcas que não desejam se associar a posições preconceituosas.
A maior parte do jornalismo, nesses exemplos concretos, tem garantido uma atuação ética e comprometida com os cânones da profissão. A cobertura da pandemia e o esforço para fazer valer a ciência no combate ao Covid restabeleceram, nestes acontecimentos trágicos, um papel de interesse público que deve ser o norte da atividade jornalística. No entanto, apesar da conduta majoritária que ajudou a clarear o debate em torno dos limites da Liberdade de Expressão, esta conclusão necessita de uma ponderação incontornável: o jornalismo como vocação iluminista, como apelo e compromisso para proteger e, sobretudo, promover certos valores da comunidade humana, como a verdade, a liberdade e a justiça, se expressa mais como exceção do que como regra tendo em vista os interesses financeiros e mercadológicos que o atravessam.
A missão informativa que se revelou claramente nesses casos (a gente sempre percebe quando o jornalismo é jornalismo) não se repete nos editoriais e coberturas que produzem falsos consensos em torno da necessidade de reformas arrasadoras dos direitos e das funções públicas do Estado. A tensão entre o dever ser e a vida concreta é permanente e reveladora da crise que também assola a tarefa de narrar os fatos neste mundo mais caótico. A atividade jornalística, no entanto, diferente das outras expressões de produção e circulação de versões, sofre um salutar constrangimento de seus códigos de normatividade.
As questões apresentadas no início do texto permanecem e certamente deverão padecer de incrementos decorrentes das cada vez mais complexas dinâmicas informacionais.
Referências
ALSINA, Miquel Rodrigo. A construção da notícia. Petrópolis: Vozes, 2009.
BLUMLER, Jay G.; GUREVITCH, Michael. The crisis of public communication. Routledge: London, 1995.
CORNU, Daniel. Jornalismo e verdade: para uma ética da informação. Traduzido por Armando Pereira da Silva Lisboa. Lisboa: Labor et Fides, 1994.
DAIRAN Paul; CHRISTOFOLETTI, Rogério. Cuidado, virtude e dilemas morais nas práticas de não-jornalistas- Intercom – RBCC São Paulo, v. 43, n. 1, p.21-36, jan./abr. 2020
DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS. Proclamada pela resolução 217 A (III) da Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948. 4ª Rev. Brasil: Unesco, 1998
SODRÉ, Muniz e PAIVA, Raquel- Informação e boato na rede _ Jornalismo_contemporâneo : figurações, impasses e perspectivas / Gislene Silva … et al. organizadores. – Salvador : EDUFBA; Brasília : Compós, 2011
SCHUDSON, Michael. Por que a conversação não é a alma da democracia? Vol. 1, n. 14, pp.19-31. Porto Alegre: FAMECOS, 2001