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Novas configurações do capitalismo, economia e colonialismo como lócus da desinformação

Ana Regina Rêgo

 Jornalista. Professora PPGCOM-UFPI. Coordenadora da Rede Nacional de Combate à Desinformação -RNCD BRASIL

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Introdução

O capitalismo de vigilância reivindica de maneira unilateral a experiência humana como matéria-prima gratuita para a tradução em dados comportamentais. Embora alguns desses dados sejam aplicados para aprimoramento de produtos e serviços, o restante é declarado como superávit comportamental do proprietário, alimentando avançados processos de fabricação conhecidos como “inteligência de máquina” e manufaturando em produtos de predição que antecipam o que um determinado indivíduo faria agora, daqui a pouco e mais tarde. Por fim, esses produtos de predições são comercializados num tipo de mercado para predições comportamentais que chamo de mercados de comportamentos futuros. Os capitalistas de vigilância têm acumulado uma riqueza enorme a partir dessas operações comerciais, uma vez que muitas companhias estão ávidas para apostar no nosso comportamento futuro. (Shoshana Zuboff)

 

 

            Inicio este texto com a citação (acima) da professora da Harvard Business School, Shoshana Zuboff, porque efetivamente há uma relação direta entre o capitalismo de vigilância que ela, em uma longa pesquisa, nos traduz e, o mercado da desinformação, visto que a estruturação do primeiro, a partir da extração do potencial comportamental dos usuários, transformado em capital de predição e da consequente competição por tal capital, termina por privilegiar de modo consequencial a circulação de desinformação, transformando-a em um produto lucrativo, tanto para quem a produz, como para as próprias plataformas.

Em 2018 o Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) divulgou os resultados de uma pesquisa que atestava que as “notícias falsas” se espalhavam numa velocidade 70% mais rápido do que uma informação jornalística comprovada, por exemplo. À época a pesquisa teve como foco o Twitter e analisou 126 mil postagens replicadas por 3 milhões de pessoas. Os resultados dão conta de que uma notícia que se aproxima do real atinge em média, mil pessoas, já as narrativas falsas e de cunho sensacionalista e desinformacional, podem chegar a um público variante entre mil e 100 mil pessoas, dependendo dos personagens (políticos, digital influencers, artistas…) que no meio do caminho venham a se engajar e a compartilhar a postagem mentirosa.

Esses dados nos servem como impulsionadores de reflexão sobre o modo como as plataformas desenvolvem suas estratégias de potencialização da lucratividade em escala crescente e constante e para tanto, desenvolvem um modelo de negócios que mistura economia da atenção com economia da ação, por onde caminham vigilância e controle dos usuários a partir de uma arquitetura orquestrada por inteligência artificial distribuídas em algoritmos e bots que monitoram e extraem os dados de predição comportamental para uso direto pelas plataformas em negociação com os mercados inseridos em seus espaços e que também disputam atenção e visibilidade.

Esse processo complexo de monitoramento/vigilância permanente e constante que objetiva a extração já mencionada, e que utiliza estratégias de ação pautadas, como no passado, tanto na psicologia behaviorista como na psicometria que se pode denominar já presentista e não mais futurista; objetiva promover a disputa pela atenção entre os usuários, incluindo, empresas e demais organizações, disputa esta que direciona a visibilidade e possibilita a lucratividade.

Obviamente que o interesse maior das Big Techs é crescer e aprimorar o seu capital de predição comportamental, contudo, as estratégias que os usuários se utilizam para se beneficiar desse modelo de negócios são tão múltiplas e díspares como as das próprias plataformas, nesse sentido, vale ponderar que o mercado da desinformação foi descoberto por pessoas comuns, mas também por empreendedores da mentira que passaram a trabalhar receitas de bolo do passado pautadas não somente por um processo behaviorista de Estímulo – Resposta  paloviano, mas também pelo incremento  skinneriano ao modelo, com a adoção do controle, usado tanto pelas plataformas como pelos produtores de desinformação em disputa pela atenção e pelo fluxo de recursos que se define na rede a partir de contratos unilaterais, onde somente as plataformas dominam e determinam para onde o dinheiro vai.

Os mercadores da mentira (Proctor, 2008), no entanto, criaram fórmulas específicas com narrativas simplistas e sensacionalistas, em que plantam a dúvida e exploram o velho como novo, o espanto, o medo, a angústia com o intuito de promover o engajamento permanente, e, de quebra terminam acarretando em uma maior circulação das narrativas que desinformam, além de promover pautas negacionistas e discurso de ódio, modificando comportamentos e promovendo o desentendimento político adotado aqui conforme a definição de Rancière (2018), em determinados contextos.

Obviamente, que para além das questões relacionadas ao ambiente das Big Techs que nos impõe uma bios virtual ubíqua a partir de uma ideologia da inevitabilidade existencial contemporânea no mundo digital, os mercadores da mentira se esforçam diariamente para, a partir de uma construção híbrida de narrativas que carregam não somente fraudes, mas fatos juntos e misturados com descontextualizações temporais ou espaciais; promover a dúvida ou, certezas absolutas, ambas pautadas na inconsciência social e histórica de parte da sociedade que se vê absorvida em um labirinto de narrativas que constroem literalmente um mundo paralelo.

Nesse sentido, não consideramos ser possível desvelar o mercado da desinformação de forma separada do ambiente em que tem se desenvolvido nas duas últimas décadas e se potencializado como um câncer social, a saber: _ a vida virtual nas plataformas digitais e aplicativos de mensagem. Isso envolve, portanto, uma visada voltada para o capitalismo de vigilância e seus tentáculos neocolonialistas, assim como, suas estratégias psicológicas e econômicas tais como ação e atenção.

 

Da ação ao controle comportamental

A denominada Economia da ação mobiliza estratégias que movem o core business das Big Techs, conformando seu maior ativo, o capital de predição de seus milhões e milhões de usuários, negociados a todo vapor com o mercado de anunciantes, que por sua vez, também se enquadra na cadeia da produção de conteúdo, e, disputa atenção, mas também sofre com a vigilância, embora, raramente tenha consciência de toda a engrenagem na qual está inserido.

Até recentemente falávamos de centralidade da mídia, posteriormente, passamos a falar em ubiquidade das redes na bios virtual, hoje, no entanto, os engenheiros de software das empresas do Vale do Silício falam em intervenção, ação e controle ubíquos. De acordo com Shoshana Zuboff (2020, p.336), “o poder real é que agora podem-se modificar ações em tempo real no mundo real.  Sensores inteligentes conectados podem registrar e analisar qualquer tipo de comportamento e, de fato, descobrir com mudá-lo. A analítica em tempo real se traduz em ação em tempo real”.

A capacidade de intervenção das redes na vida social tem crescido com a intencionalidade de prever o comportamento que irá compor o capital de predição formado pelas redes a partir da vigilância dos usuários, capital este que passa a ser vendido em tempo real ao mercado, e se coloca como um imperativo  de predição que termina por enfatizar as economias da ação. Essa seria uma nova etapa no processo “evolutivo” dos meios de produção do capitalismo de vigilância que caminha para um modelo operacional de controle mais complexo. “Sob o capitalismo de vigilância, os objetivos e operações de modificação comportamental automatizada são planejados e controlados pelas empresas para atender aos próprios objetivos de receita e crescimento” (Zuboff, 2020, p.337).

            No caminho da economia da ação que pressupõe parcerias com as estratégias da economia da atenção e sob a tutela do capitalismo de vigilância, três principais abordagens básicas se estabelecem objetivando o sucesso da ação intencional das plataformas em direção ao controle dos usuários, objetivando a mudança comportamental que lhes interessa. A primeira abordagem estratégica é o Sintonizar que pode acontecer de diversas formas e envolver “palpites subliminares programados para moldar de maneira sutil o fluxo de comportamento no exato tempo e lugar para a influência ter o máximo de eficiência”, ou ainda utilizar estímulos díspares em direção ao consumo de determinados conteúdos, conformando aspectos de uma arquitetura de escolha que pode alterar o comportamento de uma pessoa de modo previsível (Zuboff, 2020, p.337).

Os engenheiros de software das grandes plataformas digitais denominam de arquitetura de escolha a estruturação de situações que podem ser acionadas para canalizar a atenção dos usuários e moldar a ação destes. Nas redes sociais, por exemplo, a maioria das ações já definidas de modo intencional, objetivam comportamentos específicos.

A ação, no entanto, não está sendo planejada somente pelos engenheiros já mencionados, mas participam do processo de construção das estratégias que estruturam a arquitetura de escolha, tanto economistas comportamentais quanto os adeptos do capitalismo de vigilância que o usam para fortalecer financeiramente seus impérios corporativos atuais.  Os economistas comportamentais de uma linha determinista específica, porque acreditam na falibilidade da ação humana e desejam guiar a ação pessoal através dos mecanismos disponíveis na bios virtual.  Já os capitalistas de vigilância terminaram por adaptar as ideias dos economistas comportamentais objetivando legitimar suas ações na comercialização direta, tanto da predição comportamental, quanto das possiblidades de mudanças comportamentais.

A segunda abordagem estratégica é diretamente de vigilância (o pastorear) e consiste em controlar elementos essenciais concernentes aos usuários, segmentando a atuação das redes e limitando a ação dos usuários, exercendo não somente a vigilância, mas o controle comportamental.

A terceira e última abordagem é o condicionar e está relacionada com a indução direta de mudança comportamental e sofre influência da abordagem behaviorista de Skinner, comumente recorrente em ações da sociedade de massa e agora da sociedade em rede. O reforço da ação é chave para o condicionamento do usuário que já vigiado pelos dispositivos móveis que utiliza, fornece inconscientemente, informações sobre suas ações cotidianas. Como nos diz Zuboff (2020, p.340), “à medida que sinais monitoram e rastreiam as atividades diárias da pessoa, a companhia vai dominando aos poucos o esquema de reforços- recompensas, reconhecimento ou elogio que podem provocar com bastante sucesso os comportamentos específicos do usuário que a companhia seleciona para dominar”.

De modo simplista, podemos dizer que a economia da ação desempenha no atual cenário de capitalismo de vigilância dominado pelas gigantes digitais, um papel central na articulação dos fluxos do capital de predição comportamental, com os quais essas grandes plataformas nos negociam nas redes, ao tempo em que exploram nossa atenção e nos vigiam diuturnamente, obtendo lucros inimagináveis.

Já na década de 1970, Herbert Simon alertava para os problemas que seriam provocados pela superabundância de informação que carregaria a reboque um problema de grandes dimensões que seria a carência de atenção, que impediria e impede que o círculo narrativo se consolide na recepção por parte de um público.

Essa carência de atenção de tudo e de todos dentro das redes impulsiona táticas paralelas de ação, atenção, julgamento e controle nas plataformas digitais, o que envolve uma ampla espacialidade com toda a reticularidade do modo de existência atual, o virtual. Como bem nos revelou o documentário O Dilema da Redes (2020), a atenção do usuário é prioridade no trabalho das plataformas, é preciso manter todos conectados o maior tempo possível, porque a lucratividade de quem produz na rede e das próprias plataformas depende da atenção que nós usuários dispensamos aos conteúdos produzidos. Contudo, nós também disputamos atenção e para termos mais e mais atenção de outros, precisamos dispensar nossa atenção a todos. Esse processo de conexão intermitente que aparentemente visa tão somente a lucratividade imediata pautada em nosso controle, é o principal viés de extração de dados, pois aos nos conectarmos estamos tanto publicando conteúdo, como curtindo, compartilhando e de algum modo nos engajando no que está disponibilizado, ou seja, estamos revelando quem somos e o que gostaríamos de comprar ou vender. Para além disso, nós usuários, em analogia com a fruta nordestina Caju, da qual aproveitamos tudo, somos para as plataformas uma forma de Caju, pois tudo de nós é tirado e comercializado, somos produtores e produtos, não apenas nossos dados são vendidos a uma velocidade impensável, assim como o conteúdo que produzimos, mas nosso comportamento imediato é negociado para todos os mercados de produtos tangíveis e intangíveis, principalmente, para o mercado que negocia comportamentos em prol de sua lucratividade.

Nesse sentido, o teórico empoderamento social proporcionado pelas plataformas digitais, “dando voz a todos”, trouxe dentre benefícios e malefícios, uma profusão de produção de conteúdo que a todo custo disputam mais e mais atenção. As corporações cientes da disputa de atenção de todos contra todos dentro das redes, transformaram a atenção em uma estratégia negocial que pode tanto impulsionar lucratividade, quanto relegar ao esquecimento, e não é nem mesmo preciso se utilizar de estratégias de cancelamento, basta não aderir às táticas previamente definidas para o trânsito narrativo no ambiente virtual, a partir de uma estruturação que na superfície visa a visibilidade, para na camada seguinte, ser trabalhada em nível lucratividade imediata que remunera produtores de conteúdo e plataformas, mas que em uma camada mais profunda conforma o capital de predição comportamental, hoje, o petróleo que formamos e é o coração do negócio das Big Techs.

A Cambridge Analytica, empresa do Reino Unido já fechada, se apropriou de tal capital em determinado momento e obteve “grandes êxitos” tanto na eleição de Donald Trump como no Brexit, ambos em 2016, e terminou revelando o que já estava em uso nas plataformas digitais e que desenha um novo modelo colonial com parâmetros de poder não antes vistos, mas que reflete a temporalidade atual.

 

Novas faces do capitalismo e o neocolonialismo

 

Nesse caminho várias pesquisas e abordagens nas ciências econômicas, nas ciências da informação, na tecnologia de dados, na história, na filosofia, na sociologia e na comunicação, vem tentando trazer perspectivas distintas sobre o momento em que vivemos e contribuir de algum modo para desvelar os fenômenos que correm em rios subterrâneos digitais e cujos tentáculos nos envolvem diuturnamente.

No início da década passada, Alexander Nix apresentava o principal produto de sua empresa, a Cambridge Analytica, como o novo petróleo. Esse produto não era a mineração de dados pura, mas a mineração de dados orientada por métodos da psicometria que possibilitavam detalhar os perfis psicológicos de usuários de plataformas digitais. Isso possibilitou a Cambridge Analytica intervir nos destinos políticos dos Estados Unidos, Inglaterra e Índia, dentre outros países onde atuou, durante seu curto período de existência no mercado.

Em 2017, a revista The Economist apresentou em sua capa da edição de número 40 daquele ano, a expressão: Dados são o novo petróleo, o que para Nick Couldry, pesquisador e professor do The London School of  Economics and Political Science-LSE, se configura numa referência potencial ao colonialismo tradicional.

Nick Couldry autor do livro The Costs of connection: How Data is colonizing Human life and appropriating it for Colonialism, em entrevista ao Instituto Humanitas Unisinos apresenta sua teoria sobre o capitalismo de dados e o novo estágio de colonialismo humano.

Para este cientista, o capitalismo entrou em uma nova era que não somente envolve a produção de conhecimento, cientifica e tecnológica, mas a vincula ao lucro das grandes empresas multinacionais de tecnologia, e, em consequência desenvolve um novo tipo de colonialismo, que seria o colonialismo de dados, sobretudo, porque a fusão entre o conhecimento e o mercado se dá pelo domínio privado dos dados do público. O conhecimento sobre todas as informações pessoais e coletivas encontram-se nas mãos de poucas empresas no mundo, o que ocasiona o uso privado e intencional voltado para a lucratividade, no caso, em potencial, das grandes plataformas digitais que em certa medida já se alastram também por outros ecossistemas digitais. Em suma, a sociedade mundial, não tem ideia de onde e como está sendo usada, muito menos com que objetivos.

Entretanto, o que tenta nos trazer Couldry é que o capitalismo denominado por ele e por outros, de capitalismo de dados, está nos impondo uma nova ordem social que está se configurando a partir da vigilância como requer Zuboff (2020) e  Rêgo (2020), em perspectivas diferentes; como também a partir da economia da atenção, ou mesmo  do capitalismo digital, mas, para Couldry(2020, s/p) é importante perceber que existe algo muito importante acontecendo com os dados e que está sendo usado para uma reconfiguração geopolítica mundial, em suas palavras “ uma nova fase nas relações entre colonialismo e capitalismo, uma relação que existe há 500 anos pelo menos. Pois foi o colonialismo histórico, começando pela América Latina em 1500 aproximadamente, que pavimentou o caminho para o que conhecemos, hoje, como capitalismo”.

Tomando a metáfora do petróleo como representante de um pensamento colonialista, Couldry diz que não se trata tão somente de uma metáfora, entretanto de um novo modo de produção capitalista que se apropria de novos tipos de ativos. O colonialismo se apropriava de terras, de riquezas minerais, de produtos agrícolas, de pessoas que eram escravizadas, etc., já o novo colonialismo aliado ao capitalismo de dados, tem procurado se apropriar da essência da humanidade, não são apenas nossos dados como nome, endereço, número de contas bancárias, cartões de crédito, número de cadastro de pessoa física-CPF, número no cadastro do registro geral -RG; a garimpagem e mineração de dados se apropria dos nossos valores e do nosso comportamento, através do modo como nos expressamos e nos colocamos no mundo por meio das redes sociais. Para Couldry (2020, s/p) vale lembrar que o “o colonialismo histórico não morreu, muito embora as instituições dos governos coloniais tenham desaparecido. As relíquias, as sobras do colonialismo histórico ainda continuam e coexistem com este novo colonialismo de dados e seu legado”.

Como propõe Couldry (2020, s/p) o colonialismo de dados é em si, uma nova ordem social e econômica que tem a apropriação da vida humana como meta, possibilitada pela crescente e constante extração de dados, com vistas ao lucro. Nesse sentido, “ é um modo de configurar o mundo inteiro, de tal forma que um recurso novo possa ser extraído- e esse recurso é a vida humana  a partir da qual se pode extrair um valor econômico”.

Essa visada de Couldry é similar à nossa e que consiste na mímese de que nas plataformas digitais não somos mais que escravos e que somos explorados de todas as formas quando atuamos nas redes, mesmo quando apenas estamos presentes, mas sem nos manifestarmos publicamente, terminamos viajando pelos links que nos surgem e pelas ideias que vão nos desviando a atenção. Nossa atenção é um dos principais produtos vendidos hoje no mundo virtual.

Para Couldry, o colonialismo de dados possui objetivos similares ao colonialismo tradicional, qual seja: _explorar alguns para o enriquecimento de poucos.

No que concerne a abrangência dos colonizadores no novo capitalismo de dados, Couldry ressalta que não se trata tão somente das grandes plataformas, mas também de perceber o escopo de plataformas que envolve as mais variadas áreas da vida humana, tais como a economia gig onde dominam aplicativos como Uber, Lyft e plataformas como o Airbnb. Em todos esses espaços verificamos uma expansão massiva da vigilância e do monitoramento dos humanos, pois sempre se faz necessário julgar e a um tempo ser julgado, por outro lado, em alguns casos, nesse modelo econômico,  há um retorno a um estágio de trabalho com baixo status e sem direito algum.

Vale pensar que entre as grandes plataformas de mídias digitais, de transporte, de hospedagem, de entrega de comida, há pontos comuns que potencializam a extração de dados, a vigilância, o controle e o julgamento.

 

A Desinformação

 

Diante do exposto a desinformação tanto se coloca como uma estratégia do que denominam (Rêgo e Barbosa, 2020) como mercado intencional da construção da ignorância, ou seja, um mercado que se pauta na construção da desinformação com vistas a potencialização da visibilidade e lucratividade, e, para tanto, se utilizam de estratégias de sensibilização, atração e manipulação das mentes não somente acríticas, mas de indivíduos que, em não mantendo uma relação primordial com a educação e com a experiência histórica, terminam recepcionando a desinformação e tornando-se um atores chaves na divulgação de narrativas que em condições extremas, podem, no caso da pandemia, por exemplo, expor as pessoas ao vírus e levar à morte.

Nesse sentido, e, embora tenhamos visto as grandes plataformas digitais negarem que uma narrativa que desinforma possui maior potência do que uma notícia que se aproxima do real, para conseguir engajamento e potencializar a circulação; os dados de inúmeras pesquisas revelam exatamente o contrário, ou seja, revelam que a desinformação é um dos produtos mais lucrativos da atualidade, tanto para quem o produz na rede mundial de computadores, independentemente da plataforma que utiliza, assim como, para as próprias Big Techs, mesmo que este processo seja tão somente uma gravíssima consequência do modelo de extração de capital comportamental e não uma estratégia das plataformas.

Um exemplo gritante de quanto o mercado da desinformação lucra no atual modelo existencial virtual é o movimento antivacina revelado recentemente de modo mais claro pelo Center for Countering Digital Hate dos Estados Unidos que divulgou recentemente uma pesquisa sobre o que denominam de indústria da desinformação que tem como foco o movimento antivacina. Indústria que tem se tornado cada vez mais lucrativa para quem investe nesse tipo de fake News e trabalha em perfis e páginas nas plataformas digitais.

De acordo com o CCDH a indústria da desinformação focada nas narrativas antivacinas, viu na pandemia da Covid-19, uma grande oportunidade para tornar-se mais e mais lucrativa, para tanto, potencializou a produção de diversas modalidades de narrativas (vídeos, áudios, matérias escritas) direcionadas à diversos públicos, em que procuram explorar falsas curas com medicamentos aleatórios ou remédios caseiros e promover mentiras sobre os efeitos das vacinas.

Para o CCDH, a confiança dos que investem abertamente em promover mentiras vem de anos de impunidade e de uma expertise de trabalho com as plataformas mais populares de mídia social, direcionando tráfego e dólares de publicidade para o Facebook, Instagram, Twitter e YouTube, enquanto se beneficiam do enorme alcance que as plataformas de bom grado oferecem  a eles. Como podemos ler no documento do CCDH(2021, s/p), “é um acordo mutuamente lucrativo – pelos nossos cálculos, valorizar o público antivacina, agora com mais de 62 milhões de seguidores, deve gerar cerca de até US $ 1,1 bilhão em receita anual para as Big Tech. A própria indústria antivacina como detalhado neste relatório, ostenta receitas anuais de pelo menos US $ 36 milhões”.

De acordo com o relatório do estudo, denominado de “Quem lucra com a pandemia: o negócio do movimento antivacina, em uma conferência realizada em outubro de 2020, os antivaxxers se reuniram para planejar seus impulsos estratégicos. Eles decidiram minimizar os perigos da Covid (uma doença que, apesar do bloqueio e medidas preventivas massivas já matou mais de 4,5 milhões de pessoas em todo o mundo, sendo que 600 mil pessoas somente no Brasil, até o presente momento), para subverter os especialistas em saúde (os que estão no melhor lugar para mitigar a crise) e impedir a vacina de todas as maneiras que pudessem, principalmente, amplificando quaisquer possíveis dúvidas e efeitos colaterais sobre os imunizantes que estavam sendo desenvolvidos e que hoje estão no mercado.

O documento do CCDH informa que a indústria é antiga e a remonta à época de Andrew Wakefield que no final da década de 1990 publicou um artigo fraudulento intitulado MMR vaccination and autism  na revista científica de grande reputação, The Lancet,  no artigo  Wakefield estabelecia uma suposta relação entre a vacina tríplice viral e o autismo. Posteriormente, diversas pesquisas foram realizadas e chegou-se ao diagnóstico de que não havia nenhuma relação e que as condutas de Wakefield foram completamente antiéticas, posteriormente, após mais de dez anos da tese fraudulenta o Conselho de Medicina do Reino Unido cassou sua licença médica, tendo em vista as acusações de fraudes de evidências em suas pesquisas.

Todavia, o mal já havia sido plantado e segundo o CCDH (2021, s/p), suas ideias encontraram um porto seguro no Vale do Silício, com sua crença no lucro e na liberdade de expressão irrestrita, além de uma mistura hiper capitalista de libertarianismo com o evangelho da prosperidade. “Seus protegidos diretos e aqueles em que ele se inspirou agora somam dezenas, com os doze mais perigosos – a quem apelidamos de Dúzia da Desinformação em um relatório anterior – criando dois terços de todos os compartilhamentos de desinformação nas redes sociais nesta pandemia”.

No relatório, o CCDH expõe a rede de empresas, organizações sem fins lucrativos, ações políticas, comitês, esquemas de afiliação e impérios de marketing de mídia social que formam a Indústria AntiVaxx. Enquanto as pequenas empresas lutavam contra a pandemia, as empresas que compõe o mercado da desinformação antivacina, obtiveram pelo menos US $ 1,5 milhão em empréstimos do governo dos EUA. Para além disso, o CCDH analisa no documento, como os antivaxxers financiam sua luta contra a ciência e como eles mudaram especificamente suas estratégias para lucrar durante a pandemia.

Dentre as principais questões apontadas no relatório, vale ressaltar a identificação dos doze líderes do movimento antivacina que gerenciam negócios e organizações com receitas significativas. Esses doze são responsáveis ​​por até 70 por cento do conteúdo antivacinas compartilhado com o Facebook. Três desses doze poderosos, a saber:  – Joseph Mercola, Del Bigtree e Robert F. Kennedy Jr. – são tão influentes que respondem por quase metade desse conteúdo. Alguns líderes deste movimento nos EUA estão ganhando salários de seis dígitos por cargos de liderança em organizações sem fins lucrativos com foco antivacina, incluindo Robert F. Kennedy Jr., que ganha $ 255.000 por ano como Presidente da Defesa da Saúde da Criança (CCDH, 2021, s/p).

As organizações antivacinas representam uma indústria com receitas anuais de pelo menos US $ 36 milhões de dólares nos Estados Unidos. A CCDH chegou a esse número com base em uma visão limitada de suas finanças, com base em registros autorrelatados publicamente e estimativas de receitas disponíveis para 22 organizações pertencentes aos doze maiores líderes da indústria. A indústria antivacina emprega pelo menos 266 pessoas.

As Organizações antivacinas nos EUA,  lideradas por Robert F. Kennedy Jr., Del Bigtree e Larry Cook admitiram privadamente em processos judiciais que dependem das principais mídias sociais/plataformas para  alcance de público e geração de receita. Os mesmos registros legais revelam que as plataformas não acreditam que violam as proteções de liberdade de expressão, com o Facebook e o YouTube declarando que eles são “partes privadas, não atores estatais. E de acordo com a lei estabelecida, sua moderação de conteúdo e suas decisões não estão sujeitas às restrições da Primeira Emenda” da Constituição daquele país ( CCDH, 2021, s/p)

No Brasil, o movimento antivacina tem feito estragos e levado muitas pessoas à morte neste momento de pandemia da Covid-19, visto que se alia à inúmeros movimentos e outras narrativas fraudulentas que procuram descredibilizar medidas de distanciamento social e uso contínuo de máscaras em locais públicos.

Por fim, vale pensar na complexidade do modo de vida atual, em que mergulhada em um bios virtual inconsciente, a sociedade segue refém de grandes empresas que exploram a humanidade como o grande e maior capital. Vigilância, controle, atenção e ação são movidas em prol da extração de informações comportamentais. Seguimos escravizados e inconscientes.

 

 

Referências

CCDH. Pandemic Profiteers: the business of anti-vaxx. 2021. Disponível em: < https://www.counterhate.com/ >. Acesso em 20 set 2021.

FOER, Franklin. O mundo que não pensa. Rio de Janeiro: LeYa, 2018.

O DILEMA das redes. Direção: Jeff Orlwoski. Estados Unidos: Netflix, 2020

PELA Primeira vez na história humana, a produção do conhecimento funde-se com a produção do lucro. Entrevista especial com Nick Couldry. Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/607425-pela-primeira-vez-na-historia-humana-a-producao-de-conhecimento-funde-se-com-a-producao-de-lucro-entrevista-especial-com-nick-couldry >. Acesso em: 20 abr 2021.

PROCTOR, Robert. Agnotology: the making and unmaking of Ignorance. Califórnia(USA): Stanford University Press, 2008.

RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento: política e filosofia. São Paulo: Ed. 34, 2018.

RÊGO, Ana Regina e BARBOSA, Marialva. A construção intencional da ignorância. Rio de Janeiro: Ed. Mauad, 2020.

RÊGO, Ana Regina. Vigilância, controle e atenção: a desinformação como estratégia. In: Revista Organicom-USP, ano 17, n.24, set-dez, 2020, p.82-92.

SIMON, Herbert. Rational decision making in business organization. In:American Economic Review, Pittsburgh, v. 69, p. 493-513, 1979.

ZUBOFF, Shoshana. A era do Capitalismo de vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira do poder. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.