1. A tendência à colisão de direitos e o protagonismo de Bolsonaro
No início da pandemia, aparecendo uma tendência a colisão das medidas de defesa da vida e da saúde com o exercício do direito às atividades econômicas e do direito ao trabalho, o Presidente afirmou que devia prevalecer sem concessões a continuidade da economia. Além de rejeitar quaisquer medidas necessárias à contenção das contaminações, obrava contra elas, proclamando reiteradamente que as perdas de vidas acumuladas eram desprovidas de significado ético ou jurídico. Elas seriam mera antecipação da morte, ‘o fim inexorável de todos nós’ .
Impedido de impedir as medidas de contenção da pandemia adotadas pelos Estados e Municípios, autorizadas pelo STF, agiu estrategicamente com o objetivo de gerar a eliminação das restrições às atividades econômicas. Por um lado, pregava a reação dos setores econômicos cerceados e dos trabalhadores desempregados contra as medidas de controle das contaminações e, por outro, negava-lhes o apoio financeiro devido pelo Estado. A resistência dos governos municipais e estaduais foi vencida no curso de março e abril deste ano, quando ressurgia o crescimento exponencial das mortes, com o advento da segunda onda da pandemia, já contabilizadas mais de quatrocentas mil mortes.
Aproximando-se a liberação completa das atividades econômicas, pela pressão dos pequenos e micro empresários sobre os Estados e Municípios, Bolsonaro anuncia que vai decretar o fim de todas as restrições remanescentes, usando as “suas” forças armadas para assegurar o cumprimento do decreto, ameaçando os Tribunais. Ele invoca o artigo 5º da Constituição, onde são positivadas as liberdades econômicas e de trabalho entre os direitos individuais fundamentais, É notória a manipulação na leitura do texto, porquanto passa por cima da proclamação da inviolabilidade do direito à vida que abre o enunciado normativo, assumindo precedência sobre todos os outros direitos fundamentais individuais.
Na parte orgânica da Constituição, estão as garantias institucionais e as medidas para a defesa e efetivação dos direitos mais fundamentais à vida e à saúde, agora ameaçadas pelo vírus que ocupa o território e devasta a população brasileira. Por outro lado, nela conformam-se também as garantias ao exercício da atividade econômica, expressa no princípio da livre empresa, associada a garantia da liberdade de trabalho. Estamos na situação concreta diante da tendencia à colisão de direitos fundamentais. Quando isto ocorre, segundo a doutrina universal, é necessária uma ponderação para definir os direitos fundamentais cujo exercício deve prevalecer.
A Constituição confere precedência ao direito à vida sobre todos os demais direitos, devendo ceder a livre atividade econômica e a liberdade de trabalho. No entanto, deve ser assegurado o menor dano possível aos direitos que cedem, limitando-se as restrições ao seu exercício ao que for necessário e útil para a efetivação dos direitos prevalecentes. Além disto, é devida pelo Estado uma tutela compensatória para reparação dos prejuízos causados aos seus titulares. Estas as regras do princípio da proporcionalidade, que deve ser observado quando a realidade social impõe uma ponderação de direitos fundamentais tendencialmente colidentes no seu exercício. No caso concreto, além da prudência na adoção das medidas restritivas, é evidente a necessidade de medidas compensatórias, para que não resulte um gravame excessivo aos agentes econômicos e aos trabalhadores prejudicados no acesso ao trabalho. Tutelas que foram adotadas por todos países atingidos pela pandemia.
2. A ponderação dos direitos individuais tendencialmente colidentes.
A Declaração Universal Direitos Humanos de 1948 dispõe no seu Artigo 3 : “Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”, o que foi ratificado pela nossa Constituição, colocando à frente de todos os direitos “a inviolabilidade do direito à vida.” A garantia institucional do direito à vida é positivada através da proteção à saude, regulada no capitulo da seguridade social:
“Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”
Ao dizer que a saúde é um dever do Estado, parece inegável que a norma constitucional gera um mandato para ser cumprido pelos poderes constituídos, exigindo ações concretas dos agentes investidos na direção das instituições que os conformam. Cabendo a iniciativa ao Executivo por ter a administração e a prerrogativa de iniciativa das leis.
As politicas sociais que visem à redução do risco de doença, no contexto da calamidade pública iniciada há um ano, e agravada exponencialmente agora, seriam as medidas de isolamento social e quarentena, mais a medida extrema do lock down, E caberia ao Chefe do Poder Executivo promovê-las e coordená-las nacionalmente. Tais medidas, reduzindo o avanço da contaminação, cumpririam também a função de assegurar a continuidade do acesso universal e igualitário às ações e serviços para a proteção e a recuperação da saúde, conforme dispõe o enunciado normativo do artigo 196. A sua conduta omissiva se agrava com a resistência explicita à aquisição tempestiva de vacinas, como foi explicitamente reconhecido por ele próprio, além de comprovado documentalmente na CPI do Senado.
Cumpre observar, por outro lado, que a Constituição no seu artigo 1º inclui entre os fundamentos da República “os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa “ atribuindo ao trabalho e à livre iniciativa um lugar central no projeto de sociedade que ela edita. O seu artigo 170 diz que a ordem econômica é “fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa”. E entre os princípios que regem a atividade econômica está “a busca do pleno emprego”, “assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização dos órgãos públicos”.
Esses direitos veiculam os valores estruturantes da ordem econômica e social. Eles devem ser tutelados pelo Estado, no atual momento nacional, na medida em que seu exercício cedeu ante a primazia do direito à vida. Eis aí configurado o dever jurídico do Estado de oferecer ao trabalho e a atividade econômica um amparo efetivo através de subsídios suficientes e medidas eficazes, no curso da calamidade pública.
O inciso XXV do artigo que foi invocado pelo Presidente, pressupõe uma tendência à colisão no exercício de direitos fundamentais. No caso de iminente perigo público – como é a situação atual que gera risco de vida coletivo – ele autoriza a autoridade competente a usar propriedade particular. Mas a intervenção no uso do direito de propriedade – direito que embasa as atividades econômicas – impõe ao Estado uma indenização:
“ XXV – no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior se houve dano”.
Este enunciado faz uma ponderação dizendo, primeiro que o Estado pode intervir no uso da propriedade, cerceando o exercício das liberdades nela fundadas, como a livre empresa e a venda da força de trabalho – que é a propriedade do homem sem posses conduzida por ele ao mercado. Mas a norma diz também que o Estado é obrigado a indenizá-los: eis aí fundamento constitucional da obrigação do Estado prover a subsistência dos que são privados do seu direito ao trabalho e amparar os agentes econômicos que são privados do exercício da liberdade economica.
Os países atingidos pela pandemia, logo que promoveram medidas restritivas, destinadas a conter as contaminações, estabelecendo restrições às atividades econômicas, organizaram sistemas de tutela para reparar em tempo real os danos causados aos setores economicos atingidos e aos trabalhadores privados do acesso ao trabalho. Mesmo países compromissados com a austeridade fiscal, vêm adotando planos vigorosos de subsídios às pequenas e micro empresas, além de auxílios emergenciais aos trabalhadores, como é o caso do programa francês com a injeção de mais de 100 bilhões de euros[1] e o mais recente plano estadunidense que disporá de quase 2 trilhões de dólares[2].
Contrasta com a responsabilidade assumida pelos Estados nacionais ao redor do mundo, a resistência oferecida pelo governo brasileiro aos apelos no sentido de prestar apoio financeiro suficiente aos agentes econômicos e aos trabalhadores, para reduzir os efeitos da crise sanitária sobre a vida social. O governo federal, além de resistir a adoção das medidas de contenção das contaminações, assumindo postura colaboracionista com o avanço do vírus letal sobre o nosso território, resistiu às medidas de tutela dos agentes econômicos prejudicados, assumindo sob pressão crescente programas absolutamente insuficientes para tutela dos direitos fundamentais tendencialmente colidentes.
Diante do agravamento da crise sanitária – que já produziu mais de 500 mil mortes e levou ao estado de miséria dezenas de milhões de brasileiros – cabe o questionamento sobre a discricionariedade do Presidente para exercer ou nao as competências conferidas aos poderes constituídos para a tutela dos direitos fundamentais vulnerados. Ele tem promovido medidas de apoio financeiro de forma intermitente, fixando valores absolutamente insuficientes para os trabalhadores privados do acesso ao trabalho, e oferecendo empréstimos onerosos às pequenas e micro empresas, restringindo o acesso efetivo ao crédito; na primeira rodada menos de 20% dos destinatários foram contemplados. No discurso de justificação do governo é invocado o princípio do financeiramente possível, fundamentado em argumentos meta-jurídícos. Primeiro vem a falácia de que o Estado brasileiro está falido, em face do peso dos serviços públicos, chegando a condicionar as medidas de apoio financeiro insuficientes que concede ao avanço das reformas.
Por outro lado, é propagada a crença na existência de um teto para a tributação, que já teria sido ultrapassado, como se existisse uma lei natural descoberta pelos cientistas da macro-economia . Ambos fudamentos são repetidos a exaustão pelos portais midiáticos do mercado, recorrendo aos depoimentos dos economistas ortodoxos hegemônicos nas catedrais do saber – as universidades publicas e privadas.
Já está demonstrada empiricamente a falsidade desse discurso de justificação, como fake news concebidas pelos intelectuais orgânicos do mercado, manejadas para pavimentar o avanço das reformas em curso no Brasil, visando realizar a utopia do mercado auto-regulado. Deve prevalecer, então, a imputação de descumprimento das obrigações constitucionais pelo Presidente, incontornável por essas razões meta jurídicas.
3 – Da obrigação dos poderes constituídos de cumprir as medidas previstas na Constituição
No Estado Constitucional de Direito, o princípio da supremacia do Constituição, impõe aos poderes constituídos a observância e o cumprimento das suas prescrições. Ele se expressa diretamente no enunciado do seu artigo 78, que regula o ato litúrgico da investidura do Presidente da República no cargo. Ele deve então “prestar o compromisso de manter, defender e cumprir a Constituição, além de observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro e sustentar a reunião a integridade e a Independência do Brasil”.
Este enunciado revela que, com a investidura no cargo, o primeiro mandatário assume – não uma representação comum, como aquela que se realiza entre particulares, através de mandatos de direito privado – mas uma representação política, que tem objetivos bem determinados que se obriga a cumprir em toda a extensão e nos limites fixados pelo ordenamento constitucional,.
A vinculação do Presidente à Constituição não é definida apenas pelas obrigações de mantê-la e de defendê-la, o que poderia ser entendido como um compromisso de não a contrariar e de não permitir que ela seja ofendida. Vai muito além disto, eis que assume expressamente o dever de cumpri-la, o que corresponde inquestionavelmente a fazer o que ela prescreve. Daí resulta que as omissões no cumprimento dos mandamentos constitucionais, extensamente enunciados no seu corpo, violam o seu compromisso de cumprir a Constituição. A retórica do Presidente, habitualmente em forma de bravata e em tonalidade triunfalista, expressando menosprezo total aos seus oponentes reais ou imaginários, constitui um constante desafio à supremacia da Constituição.
Mas as manifestações de vontade do chefe do Poder Executivo, o mais robusto dos poderes constituídos, estão subordinadas à vontade expressa do poder constituinte. E cabe ao TRIBUNAL CONSTITUCIONAL a sua defesa, impondo-lhe o seu cumprimento. Essa missão foi explicitada pela Assembleia Constituinte no Preâmbulo, reconhecido pelo constitucionalismo contemporâneo como primeira fonte orientadora da interpretação do ordenamento constitucional.
O preâmbulo é uma narrativa feita pelos constituintes na instalação da Assembleia, quando se identificam como meros representantes do povo. Reconhecem que a missão recebida é a de instituir um estado democrático destinado “a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais” e, ainda, a assegurar “a liberdade, a segurança, o bem estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça”. Foi dos embates travados no processo constituinte que resultaram as instruções do mandante para o cumprimento do mandato conferido. Instruções que os mandatários declaram ter assumido para a instituição de um estado democrático “destinado a assegurar o exercício dos direitos.” e mais a eleição dos valores superiores que devem orientar a construção da sociedade definida como “fraterna, pluralista da e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias.“ A sociedade dotada destes atributos constitui a utopia possível, expressa pelos integrantes do povo soberano no processo constituinte concluido com a promulgação da Carta.
4 – O princípio da solidariedade como gerador de imposições tributárias para efetivação dos direitos fundamentais sociais
A solidariedade surgiu na base da sociedade, no curso do século XIX, com a formação das associações operárias, de adesão voluntária, tendo o objetivo de cobrir os infortúnios dos seus membros. Na sequência, veio a conquista da contribuição das empresas. A solidariedade intra classe avançou para a solidariedade de inter classes. E na penúltima década desse século, a força do movimento operário levou à conquista da participação do Estado, com a instituiçao da previdência social, pela primeira vez na Alemanha de Bismark. Ele instituiu a previdência social reconhecendo o dever de solidariedade da sociedade para com os trabalhadores, dizendo que os ônus assumidos seriam menores do que o risco de uma revolução. A solidariedade social, perdia seu caráter voluntário, fundado na virtude moral, passando a ser obrigação imposta por lei, mediante imposições tributárias.
Tendo surgido na base da sociedade, foi assumida pelo Estado, passando a ser um princípio jurídico gerador de obrigações expresso no ordenamento. Observa-se que ela não gera diretamente os direitos, mas sim as obrigações que propiciam a efetivação dos direitos. O princípio da solidariedade pode gerar obrigações para toda a sociedade, mediante imposições tributárias, em benefício de uma parte dela, como ocorre na previdência social, que garante os trabalhadores na suas incapacidades. Mas pode também ser imposta a uma parte da sociedade em beneficio de um segmento social mais amplo, como ocorre na instituição de renda mínima para os pobres, ou para os desempregados, mediante imposições tributárias sobre as grandes fortunas, a criação ou a elevação de tributos sobre lucros e dividendos dos grandes empresários, como está ocorrendo na situação de calamidade pública em diversos países, entre estes a Argentina e os EEUU.
O princípio da solidariedade, foi inscrito no umbral da nossa Constituição com uma função dominante. Foi enunciado entre os objetivos fundamentais da República, no seu artigo 3º que consagra o projeto de “ I – construir uma sociedade livre, justa e solidária”; com os propósitos de “II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos sem preconceitos (…) e quaisquer outras formas de discriminação”.
Ele gera as garantidas institucionais e as prescrições normativas necessárias à efetivação do direito ã vida e à saúde, e também para a tutela compensatória das liberdades econômicas e de trabalho. Contempla no contexto da calamidade pública a tutela dos direitos tendencialmente colidentes Impõe primeiro o gesto solidário de suspensão do exercício dessas liberdades aos seus titulares e depois promove a compensação devida aos prejudicados através dos subsídios financeiros prestados pelo Estado, mediante as imposições tributárias necessárias sobre toda a sociedade ou parte dela.
Os enunciados normativos do artigo terceiro da Constituição revelam que o princípio da solidariedade é dotado de função estruturante do projeto de sociedade aprovado no pacto social – sendo gerador de garantias institucionais e de normas de conduta imperativas para os agentes públicos e também de obrigações fundamentais para os particulares, como a obrigação de pagar tributos. ELE conduz o Estado republicano, instituído pelo poder constituinte, na construção de uma sociedade justa, livre e fraterna, como anuncia o Preâmbulo. Preâmbulo que é portador da reserva de valores que baliza toda a dogmática constitucional, para assegurar a efetividade da força normativa da ordem instituída.
A suspensão das atividades dos agentes econômicos e do acesso ao trabalho equivale a uma privação fundada no postulado moral da solidariedade. Mas sendo uma restrição ao exercício de direitos positivados, passa a ser uma solidariedade involuntária, imposta pelo Estado. Ela consiste num ônus abrangente de frações extensas da sociedade em benefício dos segmentos mais vulneráveis ao vírus letal, aparentemente o universo dos idosos, ampliado no curso da pandemia. Uma solidariedade operada por quem representa o universo maior – a sociedade inteira – o Estado.
A suspensão do trabalho, que pode importar na privação imediata do alimento, e as restrições continuadas das atividades econômicas, que podem levar ao fechamento da empresa, tendem a produzir danos irreversíveis. Nessas condições, é incontornável o dever ético (e também jurídico) da sociedade inteira, de subsidiar, a partir do Estado, a fração da sociedade chamada ao sacrifício, para contenção da pandemia. Os subsídios financeiros destinados a essa fração da sociedade, decorrendo de imposições tributárias sobre a sociedade inteira, realizariam uma solidariedade de sentido inverso, gravando agora todo o universo social. Mas podem resultar de imposições tributárias apenas sobre os estamentos privilegiados, que tendem a aumentar seus ganhos no curso da pandemia.
A solidariedade jurídica, sendo imposta através do direito, difere da solidariedade moral, que é sempre um gesto espontâneo. Mas cumpre lembrar que o ato de solidariedade imposto à toda a sociedade em beneficio de uma parte dela, ou a uma fração da sociedade em benefício de segmento social diverso, tem seu fundamento último na vontade geral do povo expressa no momento constituinte, e em manifestações pontuais da vontade geral, através da lei editada pelos poderes constituídos. O grande operador da solidariedade social é o Estado, que atua geralmente através de imposições tributárias, mas pode também atuar com a suspensão impositiva do exercício de direitos e liberdades.
A solidariedade imposta através do Estado vincula a sociedade inteira com um ou mais segmentos sociais, mas pode também vincular dois segmentos sociais diferentes. E haverá sempre o grupo dos solidarizantes e o dos solidarizados. As direções e sentidos podem ser diversos. Ela foi destinada pela Constituição a ser o ator predominante para a redução das desigualdades sociais, gravando os estamentos sociais mais elevados em beneficio da base da sociedade. No Brasil ela têm operado no sentido inverso, em face da hegemonia dos estamentos econômicos dominantes na direção dos poderes constituídos. Mas é possível que isto seja revertido pelo movimento de resistência da sociedade ao avanço da utopia do mercado auto regulado, que se quer livre de obrigações, prometendo gerar a prosperidade geral, sempre em momento posterior, quando conquistar o estado puro almejado.
5. A viabilidade economica das tutelas devidas pelo Estado
As restrições no curso da pandemia incidem sobre uma fração extensa da sociedade com a suspensão forçada das atividades econômicas, de forma intermitente ou continuada, repercutindo sobre a oferta de trabalho para milhões de desempregados. Esse contingente abrange mais de 14 milhões de desempregados a que se somam seis milhões de desalentados, além de mais de trinta milhões de informais, com renda media inferior a meio salário mínimo. Deve ser considerado ainda o contingente de 4 milhões de pequenos empresários, que empregam mais de 40 milhões de trabalhadores formais e informais, além de 24 milhões de micro-empreendedores sem empregados e trabalhadores por conta própria, que sofrem os efeitos da piora substancial da situação dos consumidores.
Com o prolongamento das restrições às atividades econômicas, algumas lideranças do campo da oposição assumiram atitudes propositivas fundamentadas na Constituição, lembrando a previsão do legislador constituinte de situações de calamidade publica, como é o caso das crises sanitárias, apontando medidas excepcionais de tutela dos segmentos da sociedade direta ou indiretamente atingidos. Ciro Gomes apontou o caminho mais célere para o Estado buscar as receitas necessárias as operações de apoio aos grupos sociais chamados ao sacrifício. Poderia o Tesouro Nacional emitir letras no montante de 600 bilhões de reais, compradas de imediato pelo Banco Central, que detém moeda retirada de circulação em montante várias vezes maior. Elas seriam resgatadas com emprestimo compulsorio por dois anos sobre os segmentos privilegiados, depois resgatado mediante a imposição tributária suficiente sobre eles. A fonte de receita coincide com a do projeto construído pelo Instituto Justiça Fiscal – IJF – para a tributação dos super ricos, com dimensionamento semelhante da arrecadação anual prevista: 300 bilhoes de reais.
O governador do Maranhão – Flavio Dino – defendeu a formulação de um programa emergencial, mostrando que a Constituição torna obrigatória a tutela do Estado em caso de calamidade pública, da mesma forma que no caso de guerra, prescrevendo os meios de intervenção. (No art. 167, § 3º, é autorizada a abertura de crédito extraordinário para atender a despesas imprevisíveis e urgentes, como as decorrentes de “guerra, comoção interna e calamidade pública”).
O imperativo da adoção de políticas públicas de preservação de empregos e de instituição de renda suficiente para a segurança alimentar de dezenas de milhões de brasileiros excluidos, em situação de miseria, é defendido por parlamentares de oposição. Deputados do PSOL estudam imposições tributarias emergenciais sobre os setores favorecidos durante a pandemia, apontando o agronegócio, o sistema bancário,e as plataformas de delivery, como ifood e uber. E o IJF, na mesma linha, aponta mais setores setores favorecidos, as mineradoras e industrias de agrotóxicos, alem de bancos, “para o financiamento de políticas públicas que atendam as vitimas da Covid-19.
Ao contrário do que propaga o governo – existem fontes reais para os aportes financeiros que cabe ao Estado fazer, atendendo as prescrições constitucionais. Como sustenta Ladislau Dowbor, em artigo recente: “O país tem os recursos, tem capacidade administrativa, e pode perfeitamente montar uma estrutura emergencial de alocação de recursos descentralizada, transparente e participativa. O problema não está em onde encontrar os recursos, mas em direcioná-los adequadamente, e administrá-la com transparência.”[3] Diz ele ainda que:
… o problema não está em “de onde tirar” recursos, pois tanto podem ser do orçamento, do endividamento, da conversão das reservas cambiais, de emissão monetária ou de uso das reservas do BNDES e outros bancos públicos, e sim do seu direcionamento adequado: (para) que cheguem às famílias e às pequenas e médias empresas, pois o dinheiro na base gera efeitos multiplicadores, conquanto não seja com juros que mais extraem do que aportam. Fernando Haddad, no seminário sobre propostas econômicas da Fundação Abramo (Março 2021) afirma com razão de que “não existe desenvolvimento sem crédito barato”, e de que “o orçamento foi capturado pelas elites”. O crédito cujo custo é mais elevado do que o impacto produtivo gerado, trava a economia.
A proliferação do vírus em escala mundial, exigindo o combate dos Estados, tem levado a quase totalidade dos países a adotar medidas restritivas de isolamento social, seguindo recomendações da comunidade científica e da Organização Mundial da Saúde, com consequências econômicas. Para não permitir que as exigências sanitárias conduzam ao caos econômico e social, mesmo países sob governos de viés neoliberal – logo compromissados com a austeridade fiscal – vêm incrementando audaciosos planos de incentivo e desenvolvimento das economias. Parecem ser emblemáticos o programa francês de recuperação econômica com a injeção de mais de 100 bilhões de euros[4] e o mais recente plano estadunidense que disporá de quase 2 trilhões de dólares[5].
Essas realidades são muito distantes da vivenciada no Brasil, onde o governo federal, sob o comando de Jair Bolsonaro, nem sequer utilizou integralmente a verba destinada no orçamento de 2020 para o combate à pandemia, deixando de alocar mais de 80 bilhões de reais, algo em torno de 15% da quantia aprovada pelo Congresso Nacional para tal finalidade[6]. Desse valor quase 29 bilhões referem-se ao auxílio emergencial que poderiam ter alcançado 16 milhões de pessoas a mais do que as beneficiadas pelo programa. Dinheiro que – por ficar retido – não serviu ao propósito de permitir a manutenção de condições mínimas de subsistência de um percentual expressivo da população. São recursos que não circularam na economia deixando de alavancar o desenvolvimento econômico. Além disso, os 50 bilhões restantes poderiam ter sido destinados a programas de linhas de crédito de bancos públicos às micro e pequenas empresas, em especial de setores econômicos mais atingidos pela pandemia.
5. Conclusões
5.1. O Presidente resistiu e se opôs ao cumprimento da Constituição ao longo da pandemia, negando cumprimento à normatividade que prescrevia medidas de tutela ao direito à vida e a saude dos brasileiros, resistindo e obstruindo a sua implementação e, de outra parte, resistindo à efetivação das medidas de tutela dos agentes econômicos e trabalhadores atingidos pelas medidas de isolamento social e as quarentenas.Ao anuncia-las – em valores notoriamente insuficientes – tratou de obstruir e restringir o acesso os destinatários aos créditos abertos e de restringir o universo dos trabalhadores beneficiados.
Ficou plenamente caracterizada omissão no cumprimento da Constituição, dando ensejo ao ajuizamento de Ações de Inconstitucionalidade por Omissão – ADO – por vários partidos de oposição – PCdoB, PSOL e PT – em que postulam a criação de uma comissão nacional para coordenação das ações de combate à pandemia, com a participação dos entes federativos e de representantes da comunidade científica; mais a fixação de auxilio emergencial para os trabalhadores com referencia no salário mínimo e a criação de subsídios para as pequena e micro empresas limitadas em suas atividades.
A Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão foi inscrita no §2º do art.103, constituindo o meio de defesa mais avançado da efetividade da Constituição, atribuindo competência para o seu processamento ao Tribunal que é o guardião da Constituição, e por isto mesmo o guardião da soberania popular que se manifesta no momento constituinte. Dispõe esta norma. Dispõe esta norma:
2º – declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao poder competente para adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em 30 dias.
Segundo dispõe a Lei Nº 9.868/1999, que disciplina a Ação Direta de Inconstitucionalidade, no seu artigo 12-B d, a omissão denunciada pode ser na obrigação de legislar ou em providencia administrativa, cabendo ao Tribunal determinar que as omissões sejam sanadas. : “I – a omissão inconstitucional total ou parcial quanto ao cumprimento de dever constitucional de legislar ou quanto à adoção de providência de índole administrativa; II – o pedido, com suas especificações.”
O relator designado adiantou o seu voto, pela procedencia parcial, determinando a formação da comissão com o desenho institucional indicado, que prestará assessoramento para a adoção do confjunto de medidas economicas, e encaminhou a ação para a deliberação do Pleno.
5.2. As tutelas devidas aos titulares de direitos individuais cerceados em suas atividades – pequenos e micro empresários, mais os trabalhadores privados do acesso ao trabalho – devem ser aprovadas por lei, cabendo a adoção de medida provisória em face da urgência e relevância, o que constitui prerrogativa do Presidente da República. Mas qualquer parlamentar ou comissão do Congresso pode apresentar projeto de lei ordinária, buscando este texto fornecer elementos para a exposição de motivos. Cabe ainda a inciativa popular no projeto de lei.
E cabe, além da formatação dos benefícios a indicação das fontes de receita para cobrir o seu montante pelo tempo determinado. O auxílio emergencial proposto pelo governo no corrente ano foi fixado em valores extremamente rebaixados, notoriamente insuficientes para atender a necessidade mais elementar da alimentação. No anterior ele foi proposto no patamar de duzentos reais e no Congresso foi elevado para seiscentos, mas ele se esgotou em dezembro passado. O seu restabelecimento em valores irrisórios so ocorreu em maio,. Nas manifestações do mes corrente ouviu-se o clamor popular pela elevação ao patamar anterior de seiscentos reais, ainda insuficiente.
Um novo projeto de lei deve fixar, além dos valores, o tempo de duração, dimensionando o seu custo e indicando as fontes de receita. O projeto concebido pelo IJF, dando ensejo a campanha para tributação dos super ricos, indica fontes de receita suficientes para cobrir as despesas com o auxilio emergencial nos patamares defendidos.
5.3 O princípio da solidariedade, elevado ao patamar de princípio fundamental na Constituição de 1988, é o gerador das obrigações fundamentais destinadas a efetivação dos direitos fundamentais fundamentais sociais. Este principio atua principalmente através de imposições tributárias destinadas a cobrir os gastos sociais com os serviços públicos e prestações pecuniárias do Estado. A solidariedade consagrada pelo constituinte deve ser operada pelos poderes constituídos, mediante as imposições tributárias, conduzindo à realização dos objetivos fundamentais da Republica. Eles são enunciados no artigo terceiro: – erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos sem preconceitos (…), além de garantir o desenvolvimento nacional . Para que ele concorra efetivamente para a realização dos objetivos da Republica, é necessário que os segmentos sociais mais abonados sejam chamados a cumprir a função de solidarizantes, pagando os tributos necessários para que possam ser mantidos, ampliados e aperfeiçoados os serviços públicos, a forma mais relevante de acesso da solidariedade à base da sociedade.
Ficou evidenciado que o Estado é o grande operador do princípio da solidariedade – o macro princípio que conduziu a formação do estado do bem estar social nos países centrais, com formações mais modestas nos estados periféricos. E o vetor principal na efetivação deste princípio é a tributação, devendo incidir principalmente sobre os operadores econômicos. Ela teve um protagonismo decisivo no mais relevante gesto de engenharia social produzido pela solidariedade humana.
É oportuno lembrar que – segundo dados colhidos na OCDE – a carga tributária existente nos países centrais na primeira década do século XX, nos estertores do estado liberal, não alcançava dez por cento do PIB. Passou a crescer então , mais acentuadamente no segundo pós guerra, até alcançar uma média superior a 45 % nas últimas décadas desse século. Nos diversos países da União Europeia a parcela corresponde aos gastos sociais fica entre 25 e 35 % do PIB.
Nestas condições, podemos pensar que o conteúdo da Justiça Fiscal – postulado fundamental do relevante movimento sócio-politico do Instituto Justiça Fiscal – corresponde à realização dos objetivos fundamentais da Republica, enunciados no artigo terceiro da Constituição. O IJF cresce como uma instituição, e também um movimento sócio-politico, que concorre para a realização do projeto de sociedade assumido pelos brasileiros no processo constituinte, o momento mais elevado de manifestação da soberania popular.
[1] https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/rfi/2020/09/03/franca-plano-de–100-bilhoes-para-reanimar-economia-leva-em-conta-a-ecologia.htm. Acesso em 11. Abr. 2021.
[2] https://oglobo.globo.com/mundo/e-grande-ousado-nos-podemos-faze-lo-biden-apresenta-plano-economico-colossal-24950460. Acesso em 11. Abr. 2021.
[3] DOWBOR, L. Colocar o dinheiro onde é preciso. Disponível em: https://direitosfundamentais.org.br/colocar-o-dinheiro-onde-e-preciso/. Acesso em 11. Abr. 2021.
[4] https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/rfi/2020/09/03/franca-plano-de–100-bilhoes-para-reanimar-economia-leva-em-conta-a-ecologia.htm. Acesso em 11. Abr. 2021.
[5] https://oglobo.globo.com/mundo/e-grande-ousado-nos-podemos-faze-lo-biden-apresenta-plano-economico-colossal-24950460. Acesso em 11. Abr. 2021.
[6] https://brasil.elpais.com/brasil/2021-04-07/governo-deixou-de-gastar-807-bilhoes-de-reais-destinados-a-pandemia-em-2020-diz-estudo.html. Acesso em 11. Abr. 2021.