“nesta terra, andam as coisas trocadas, porque toda ela não é república. Assim, estando as casas dos ricos providas de todo o necessário – ainda que seja à custa alheia, pois devem quanto têm a escravos, pescadores, caçadores, que lhes trazem a carne e o peixe, pipas de vinho e de azeite – nas vilas muitas vezes se não acha isto à venda… São razões por que não permanece o Brasil nem vai em crescimento…”
Nem bem passado século e meio desde o apossamento do território brasileiro pela Coroa Portuguesa, já era possível – como dá exemplo a obra de 1627, de nosso primeiro historiador, o franciscano Vicente de Salvador – escrutinar o destino da nova terra. Nesse mundo em que nada se dava ao espaço público e tudo era privado, em que os ricos viviam da abundância que lhe era proporcionada pelo trabalho de pobres e escravos, era de se imaginar que o direito viesse a ser criado se não para perpetuar um estado de coisas antirrepublicano, ao menos impregnado por esse espírito da desigualdade e da exploração.
E assim foi. Tivemos um regime jurídico colonial precipuamente voltado para o ganho de sinhôs e sinhás, à custa do trabalho escravo e livre precário. Tivemos, a seguir e sem ruptura, uma monarquia que – a partir do Rio de Janeiro, nova sede do governo metropolitano – fez acentuar as condições de dominação, preocupados que estavam os juristas, formados em Coimbra ou nos Cursos criados no novo império, com leis e ordenações que impedissem a afirmação de um regime representativo autêntico, a autonomia de empresa e de trabalho, evitando – por meio de uma Constituição pródiga em formulações liberais destituídas de eficácia e de instrumentos conservadores dotados de notável executividade; de uma legislação penal opressiva; e da ausência de uma legislação civil digna – que os subjugados da terra pudessem ter consciência e capacidade para agir por sua libertação e pela mudança desse regime. A era republicana pouco trouxe de novidade, ao estabelecer constituições que isolavam o povo dos centros de poder e de decisão e o submetiam a um regime de trabalho crescentemente de opressão e de exploração. É evidente que há detalhes no curso dessa história, ações importantes de resistência, alguns avanços, mais da ordem da iniciativa, de qualquer modo, pouco duráveis.
Dessa história trágica dá testemunho o momento inseguro em que vivemos, na véspera do Bicentenário de nosso País. Tivemos, sim, um período extremamente importante de ruptura com essas velhas estruturas do regime oligárquico, que tanto marcou o direito brasileiro e a mentalidade de seus juristas. Esse período iniciou-se com a lenta e gradual redemocratização, logo após a sangrenta ditadura de 1964-1986, e foi completado com o resultado da Constituinte de 1987/88, consubstanciado em boa parte pela Constituição de 1988, cujos valores somente obtiveram efetiva concreção, em termos de implementação de políticas públicas eficazes, em cenário de estabilidade e crescimento, a partir do início do Século XXI. Entretanto, o direito brasileiro retomou sua velha senda, de 2016 para cá, de perversa dominação, extinguindo conquistas democráticas e de modo de vida popular, seja por meio da mudança de regras das relações econômicas e sociais, seja pela ostensiva militância contra os valores, direitos, deveres e políticas públicas preconizados pela Constituição de 1988, marco imperfeito daquela ruptura, hoje fortemente ameaçada.
Há várias forças responsáveis por essa insegurança atual e pelo regime que venho denominando de anticonstitucional. Aqui, vou me ater a comentar a responsabilidade de algumas tendências de nosso direito, que, mesmo contraditórias e frequentemente em concorrência, em ação conjunta abriram caminho e mesmo apoiaram a ascensão da extrema-direita ao poder, em nosso País.
A atuação dos avatares – figuras tão cortejadas pela grande mídia, que compõem o mainstream do universo jurídico e de seu imaginário midiático – dessas tendências ocorre do modo habitual: protagonismo em determinadas questões – a favor de ideias, posições políticas e dos que consideram amigos (entenda-se, pessoas ligadas ao ideário das velhas e novas oligarquias), e contra outras ideias, posições políticas e dos que consideram inimigos (de forma geral, movimentos e agentes políticos populares) – e omissão em outras questões, desprezadas, sobretudo, aquelas que seriam cruciais para a ocupação da capacidade política pelo povo.
Vou denominar essas tendências jurídicas inimigas da democracia e do próprio caráter civilizacional do direito, de lavajatismo, estrangeirismo e missionarismo, e explicar algumas de suas características, no presente artigo, preparando o terreno para outros artigos de crítica mais ampla e, sobretudo, de apresentação de sugestões simples que podem ser adotadas em um projeto de retomada civilizatória, que se apresente ao voto em 2022 e, vencedor, como se espera, opere o governo que se seguirá, no sentido da restauração democrática e de retomada das conquistas populares e dos valores postos pela Constituição de 1988..
Lavajatismo, estrangeirismo e missionarismo são, por um lado, três figurações muito brasileiras daquilo que, no âmbito internacional, chama-se de ativismo jurídico. Guardam, contudo, feições próprias ao cenário brasileiro. Muito embora essa vinculação a correntes internacionais precisas, acredito que exagerar o acento em tais correntes na análise da situação jurídica problemática brasileira, além de expressar a permanência de um pensamento colonizado, prejudica a conformação de um diagnóstico e de uma crítica mais condizentes com a feição dos problemas causados ao espaço/tempo público brasileiro pela intromissão e predominância de tais tendências. Bem assim, não acredito que sejam totalmente novas, em nosso universo ainda impregnado de colonialismo, como algumas opiniões tentam cogitar, mas atualizações de tendências presentes no processo histórico de formação de nosso, também ainda colonizado, direito.
Em breve síntese, eis o que representam.
O lavajatismo é a instrumentalização do direito, sobretudo penal, para impedir o acesso ou a permanência de atores populares ou democráticos no espaço público brasileiro. Ele se utiliza de novos instrumentos legislativos, implementados em razão de duas influências precisas na conformação da legislação recente brasileira: uma, o moralismo exacerbado; outra, o deslocamento para o âmbito internacional da capacidade de iniciar o processo legislativo. Esse moralismo, que refere como inimigo, sempre, a corrupção (dos outros, claro), tem várias origens: seja na tradição do pensamento brasileiro, que sempre aponta o Estado como objeto de apropriação de interesses privados, de uma oligarquia ávida de exercitar patronato, nepotismo, e sentimentos de filiação privada, mesmo familiar, aos laços de conformação da ordem estatal – nesse sentido, a política seria como que maculada por um pecado original, consistente na pretensa configuração cultural do “povo brasileiro;” seja, ainda, no próprio pensamento de uma esquerda mais conservadora, em relação a seu entendimento do que seria a esfera pública – partindo da ideia de uma pureza original, que deveria pautar os negócios públicos, sendo necessário sempre apontar os desvios e criar órgãos extremamente empoderados – como o ministério público e a magistratura, sem controle externo nem fiscalização – que ajam para conter essa sanha corrupta, presente, pensa essa corrente, na natureza humana. Em síntese, o lavajatismo se volta contra qualquer manifestação política de esquerda, na medida em que é essa vertente da cartografia política que mais se aproxima do povo, tido pelos ativistas do direito como impuro e despreparado, imaturo para compreender o contexto em que vive.
O estrangeirismo guarda vinculação com o lavajatismo, dizendo respeito não apenas ao louvor – típico de classe média e dirigente do País, pouco escolarizada – do estrangeiro como superior ao brasileiro, mas, igualmente, na formação bastante deficiente e acrítica de boa parte da elite jurídica brasileira, que se faz em cursos de curta ou média duração, no exterior, em particular nas especializações mais ou menos breves e nos chamados LLM, cursos de especialização em determinados temas, pretensamente de status de mestrado, em universidades americanas e, em menor número, inglesas. A pouca solidez da formação jurídica brasileira impede um olhar mais crítico e construtivo sobre a experiência jurídica estrangeira, particularmente da common law, pelo que lições, decoradas sem reflexão adequada, nesses cursos passam a pautar a conduta e a atuação desses profissionais, incapazes de conectar essas lições com o sistema jurídico brasileiro. A par disso, há também o deslocamento que referi, da fonte de produção das normas para os modelos estrangeiros ou propugnados, no âmbito internacional, pelas corporações transnacionais ou pelas agências regionais e internacionais, conformadas na chamada Era dos Direitos.
O missionarismo é a convicção de que os juristas teriam um papel missionário no exercício de suas várias funções e profissões, que seria de esclarecimento do povo e imposição de interpretações e decisões mesmo sobre as normas constitucionais, agindo segundo uma razão moderadora e conciliatória de normas, a partir de parâmetros de proporcionalidade e de ponderação valorativa. Nessa missão também estão envolvidos aspectos religiosos, considerados em sentido próprio, como dão conta o evangelicalismo e o neopentecostalismo, assim como as próprias convicções tradicionais e conservadoras de igrejas de elite, que agem para eliminar as manifestações culturais e religiosas dos povos que considera subalternos – no caso do Brasil, perseguindo e violentando física e moralmente qualquer manifestação das culturas indígenas e afro-brasileiras.
Essas três tendências agem em concorrência, em muitos casos de incompatibilidade de ideário e de prática, na busca de invadir e tomar lugares nos espaços de poder. Contudo, quando há conveniência, agem também em conjunto, despertando ideários mais ou menos amalgamados perante inimigos comuns, quando há necessidade e oportunidade de uma ação específica, assim como interesses de poder pontuais ou localizados.
O avatar, como se sabe, é uma imagem emprestada das religiões do sul asiático. Nelas, uma divindade assume várias personalidades, independentemente do tempo e do espaço, como que ocupando o cotidiano das pessoas com personificações fantasmagóricas de um poder onipresente e onipotente, capaz de se disfarçar de diferentes maneiras para exercer seu domínio sobre o povo que crê e não crê. Os avatares dessas três vertentes jurídicas estão em toda parte, prontos a desfigurar o direito e a encontrar atalhos, caminhos e descaminhos para destruir a democracia brasileira.