Artigo

Artigos Recentes

Liberdade religiosa em sociedades desiguais

Romi Márcia Bencke

Bacharel em Teologia pelas Faculdades EST - São Leopoldo. Mestre em Ciência da Religião pelo Programa de Pós-graduação da Universidade Federal de Juiz de Fora. Doutoranda pelo Instituto de Ciência Política da UNB. Integrante do Grupos de Referência da Plataforma dos Movimentos Sociais por Outro Sistema Político. Secretária Geral do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil.

Compartilhe este texto

Resumo

Desde a perspectiva da justiça, a liberdade religiosa não prescinde da noção de igualdade. Para os direitos humanos, a liberdade religiosa carrega consigo a noção de acesso ao direito como inclusão jurídica de todas as pessoas (NEVES 2005, p. 8).

O artigo, a partir de fatos recentes, analisa se o avanço de movimentos religiosos de matriz cristã, que têm como objetivo ampliar sua influência social, política e cultural no Brasil, obstaculiza a construção de uma esfera pública pluralista, respeitadora da multiplicidade de valores, interesses, expectativas e discursos relacionados à reprodução autônoma dos inúmeros subsistemas sociais (NEVES 2006, p. 222).

Para isso, resgata a compreensão de liberdade religiosa no Brasil colônia, imperial e republicano. O artigo analisa se a liberdade religiosa inserida na agenda política destes períodos históricos contribuiu para reproduzir a desigualdade. Procura ainda identificar qual o entendimento sobre religião dos agentes públicos do Estado e quais foram e são as forças e interesses em disputa no debate sobre liberdade religiosa. Analisar momentos da história brasileira contribuirá para apontar respostas à pergunta se as compreensões desenvolvidas sobre liberdade religiosa em nosso país contribuíram para garantir as liberdades individuais e coletivas ou reforçaram as estruturas das desigualdades.

Palavras-chave: liberdade religiosa, desigualdade, igreja católica, escravização.

 

  1. Sociedade hierárquica e desigual como projeção do sagrado

Não é possível falar sobre o Brasil sem levar em conta a expansão ultramarina portuguesa, pois parte significativa das contradições e conflitos que caracterizam o país resulta do projeto colonialista lusitano.

Neste sentido, levar considerar o contexto europeu e o papel de Portugal nos séculos XV e XVI é imprescindível para entender as bases da formação do Brasil que conhecemos. Para isso, recorro ao livro “A sociedade Perfeita – as origens da desigualdade social no Brasil” (FRAGOSO, 2024).  Em sua obra, o autor desenvolve, com base em fontes primárias, o argumento de que a visão de mundo desenvolvida a partir do Concílio de Trento[1] (1545-1563) influenciou significativamente na organização hierárquica e desigual da vida social no Brasil. Segundo o autor, a obediência amorosa a Deus projeta o protótipo das relações de mando do senhor diante de suas aldeias, do poder do pai sobre a família e da Câmara municipal sobre os citadinos (FRAGOSO, 2024, p. 24). Esta lógica de organizar a sociedade conferia ao senhor de terras o dom de prover o sustento e a proteção militar aos vassalos, que em resposta à esta graça recebida deviam obediência ao senhor. A lógica subjacente era a da reciprocidade. A quebra dela poderia desencadear revoltas, que embora reprimidas, eram entendidas como legítimas, por resultarem de uma aliança rompida.

A expansão ultramarina resultou da crise do feudalismo. Nesta época, Portugal era uma região com escassez agrária e fome. Uma alternativa para o país formar a sua própria nobreza, foi motivar os que tinham algum recurso a se incorporar nas guerras de reconquista de territórios conquistados pelo Islã. Como forma de recompensa aos que lutaram, as elites sociais realizavam a justiça distributiva, que era uma recompensa dada pelo rei ao serviço prestado pelos senhores que organizaram pequenos exércitos. Esta recompensa poderia ser em forma de doação de terras e outros privilégios. Esta prática alicerçou tanto a lógica da política de reciprocidade quanto a da desigualdade social, a partir da compreensão de que alguns poucos possuíam a prerrogativa de conceder dons impagáveis em troca da obediência de outros. Terminada a guerra da Reconquista, Portugal não conseguiu mais garantir o sustento da sua nobreza, ameaçando, com isso, a sua arquitetura política e social. Foi neste momento que, por volta dos anos de 1430, o país enveredou para o comércio ultramarino, tornando-se, ao longo dos anos seguintes, uma Monarquia pluricontinental, formada por um reino com uma sociedade aristocrática, regulada pela política, isto é, “pelos direitos da Coroa e pela justiça distributiva, na forma de mercês (FRAGOSO, 2024, p. 57). Com o tempo, uma das fontes principais do comércio ultramarino foi o de cativos africanos.

1.1. Eu te batizo e tornas-te escravo

Embora na Europa do século XVI existissem tentativas de formulação em torno da tolerância e da liberdade religiosa em relação às guerras religiosas, o comércio atlântico de cativos não foi atravessado por este debate. Ao contrário, segundo Fragoso (2024, p. 73), o “trajeto entre os sertões de África, a travessia Atlântica e as fazendas do Brasil converteram cativos em escravos cristãos”. Para o autor, a conversão do cativo em escravo cristão faz parte da história do êxito de Portugal na América até, pelo menos, o século XIX. O cristianismo não apenas convivia com a escravização. Ele elaborou um arcabouço teológico para esta prática:

…antes de o escravismo – o conjunto que engloba (1) produção, (2) comércio de cativos e (3) posse, submissão e exploração de escravos – tornar-se uma distopia ocidental cristã, bulas papais, defesas veementes de dignatários da Igreja Católica e de religiões protestantes lhe deram caução moral e teológica. Sobre a América portuguesa, por exemplo, padres escreveram manuais de conduta senhorial e de obediência escrava sem questionar a escravidão e o trato de seres humanos. Sobre a África, teólogos se preocuparam com a legitimidade da produção e da comercialização de cativos, que a seus olhos, deveriam ser cristãmente justas…Nas Américas católicas, maus senhores e maus escravos, sim, podiam ser criticados, mas não o escravismo e as condições senhorial e escrava. Senhores cristãos deveriam governar cativos cristãos e estes deveriam obedecer. (FRAGOSO, 2024, p. 72).

O sacramento cristão utilizado para escravizar, tanto em termos simbólicos quanto práticos, foi o Batismo. Fragoso (2024, p.73), enumera três fases para um cativo tornar-se escravo inserido no processo produtivo. Na primeira fase, a pessoa era considerada cativa, do caminho percorrido do interior até os portos africanos. Na segunda fase que se iniciava com a travessia atlântica até o desembarque na América, a pessoa seguia como cativa. Na terceira fase, que compreendia o deslocamento das cidades portuárias até as fazendas, ela ainda era cativa. A conversão da pessoa cativa em escrava ocorria quando ela era entregue ao senhor de escravo. Era neste momento que o cativo era batizado e recebia um nome cristão. A escravidão, segundo Fragoso (2024, p. 73), era um ato de nomeação do escravo moldado pelo catolicismo.

Segundo Roberto Guedes (2024, p. 74), a escravização era compreendida pela Igreja Católica colonial como um meio de evangelizar, tanto pessoas escravizadas, quanto seus descendentes. O historiador destaca que a legislação elaborada no Brasil, com algumas adaptações, se orientou pelas normativas do Concílio de Trento. Esta era também a orientação canônica válida nos bispados da Angola, do Congo e de São Tomé. Para a tradição cristã, o Batismo torna as pessoas iguais perante Deus. Por esta razão, nas Américas de colonialismo protestante, pessoas escravizadas não eram batizadas, pois o sacramento as igualaria ao escravizador. Na compreensão católica sobre o Batismo, o fato de ele igualar senhores de escravos e pessoas escravizadas não era um problema, pois a igualdade não era uma promessa carnal, mas espiritual. Portanto, cabia ao senhor tratar bem a pessoa escravizada, que, em resposta ao bom tratamento recebido, deveria obedecer. Reproduzia-se, assim, a lógica da reciprocidade. Quando morressem, senhor e escravizado se igualariam, pois ambos prestariam contas de seus atos diante de Deus.

Esta mesma lógica foi aplicada anteriormente para os povos indígenas. Estes não eram vistos como pessoas com suas próprias visões de mundo e com compreensões sobre o sagrado. Indígenas eram considerados sem alma. Eles somente eram reconhecidos como seres humanos pelo Batismo que lhes conferia um nome cristão. Ser reconhecido como ser humano significava passar a existir para a cristandade e prestar serviço aos que se autoproclamaram donos de terra. Os indígenas não batizados eram chamados de gentios da terra.

A grande maioria das pessoas africanas cativas, convertidas em escravas cristãs, cultuavam deuses tribais, outros eram muçulmanos.  João José Reis (2023, p. 359), destaca que, no início do século XIX, o Brasil era a comunidade muçulmana mais numerosa da diáspora africana nas Américas. Segundo o autor, os africanos escravizados aportados, principalmente na Bahia, foram aprisionados durante os conflitos político-religiosos ocorridos no interior do golfo do Benim. Entre 1800 e 1850, cerca de 73% dos cativos foram embarcados nos portos de Uidá, Porto Novo, Badagri, Onim (Lagos). Dos aproximadamente 307 mil africanos cativos daquela região, em torno de 15% eram islamizados. Os mais numerosos foram os haussás, cujos muçulmanos se chamavam musulmis que, no Brasil, ficou sendo mucurumin. Em menor número, foram trazidos cativos de Gurma, Borgu, Borno e Nupe. Destacam-se os iorubás (ou nagôs) islamizados, conhecidos por males. Reis (2023, p. 360), recupera que Nina Rodrigues, em 1935, observou que, pelo menos, um terço dos africanos sobreviventes na Bahia era mussulmi ou malê, que mantinham seu culto perfeitamente organizado.

Em resposta à pergunta feita na introdução deste artigo, pode-se inferir que, durante o Brasil colônia, a liberdade religiosa não era tema. A pluralidade de visões de mundo e de sacralidade eram anuladas pelo Batismo.

 

  1. Brasil, um império confessional em terreno instável

Nenhum monopólio se mantém sem tensionamentos e contradições. Nem mesmo o religioso. O Brasil, no período imperial, se reconhecia como um país oficialmente católico romano, na prática, entretanto, não era bem assim. A Constituição de 1824, segundo Fábio Carvalho Leite (2011, p. 34), declarava a oficialidade da Igreja Católica Romana. No entanto, esta mesma Constituição ocultava a polêmica travada em relação à religião durante a Assembleia Constituinte, que acabou sendo dissolvida. Segundo o autor, (2011, p. 34)

A Constituição do Império era, guardada as proporções, restritiva em relação às religiões em geral, tanto a católica quanto as acatólicas. A religião privilegiada, embora instituída religião do Estado, não era uma religião nacional. Os dispositivos constitucionais que regulavam os poderes do imperador sobre a instituição eclesiástica geraram mais tensão do que propriamente organização.

Dentre as restrições impostas para as igrejas protestantes, a Constituição previa que os cultos deveriam ser ministrados somente para estrangeiros e na língua desses. Esta era uma maneira de evitar o proselitismo. Os cultos deveriam ser realizados nas casas das pessoas ou, então, em casas de oração sem forma exterior de templo, ou seja, sem sinos e sem cruz. O descumprimento acarretava multa. Os matrimônios protestantes eram equiparados a concubinato e o sepultamento de protestantes era recusado pela administração eclesiástica, a quem eram confiados os cemitérios públicos.  Os privilégios da igreja católica residiam no domínio da educação, da saúde pública e das obras assistenciais. A igreja Católica Romana era a única que poderia emitir registros de nascimento, casamento e óbito.

Entretanto, uma coisa era a letra da lei, outra, diferente, era o que ocorria na prática. As contradições entre o que previa a Constituição e a realidade cotidiana se amplificaram no contexto das políticas migratórias conduzidas pelo imperador para o branqueamento das raças[2] e com a chegada dos primeiros missionários protestantes.

Ao longo do século XIX, algumas interpretações jurídicas relacionadas à religião abriram precedentes importantes para a liberdade religiosa. Leite (2011, p. 35) recupera o debate sobre a realização ou não de culto protestante em língua nacional e, consequentemente, a pregação junto a brasileiros católicos. Em 1850, três juristas deram um parecer favorável ao pastor Robert Reid Kalley, fundador da Igreja Evangélica Fluminense. O Núncio Apostólico acusava o pastor de propagação da fé protestante. O agravante principal, para o Núncio, foi a conversão de duas senhoras da nobreza. O pastor se defendeu das acusações e suas explicações foram consideradas suficientes, razão pela qual, foi inocentado. Este foi um caso emblemático, pois segundo Leite (2011, p. 35), validou uma nova interpretação do artigo constitucional referente à liberdade religiosa.

Chama a atenção que no Brasil império, mais do que a restrição da liberdade religiosa para pessoas de cultos não católicos romanos, a preocupação do clero católico, era perder seu status de privilégio e o Brasil deixar de ser reconhecido como um país católico romano. Este temor pode ser percebido em afirmações como a de Dom José Pereira da Silva Barros:

Os dissidentes, sem algum embargo do poder civil, faziam no Brasil a mais livre propaganda, pregando as suas descrenças particular e    publicamente, distribuindo bíblias falsificadas e folhetos plenos de heresias, de afrontas e diatribes contra a Igreja, seu Chefe, seu culto e seus ministros; batizavam e rebatizavam; casavam a quantos os procuravam nesse intuito, estrangeiros e nacionais, mesmo ligados a impedimentos dirimentes reconhecidos pelas leis civis; tinham seus cemitérios e sepultavam neles os seus mortos com as cerimônias de seus ritos e sem alguma dependência do poder eclesiástico; possuíam seus templos com formas bem diversas das usadas nas habitações particulares e neles celebravam seus cultos publicamente, com as portas abertas a todo povo; viviam enfim no Império, como se habitassem um país protestante. Se além da liberdade não havia igualdade dos cultos, era porque os acatólicos levavam vantagens aos católicos no gozo de imunidades. Parecerá absurdo e estranho isto, mas é a verdade dos fatos. (Vieira, 2007, p. 314, 315. APUD, LEITE, 2011, p. 36).

Embora com a Proclamação da República tenha ocorrido a separação entre religião e Estado, isso, na prática, não significou a supressão de privilégios e nem a descontinuidade das perseguições das minorias religiosas. Segundo Leite (2011, p. 45):

Júlio Andrade Ferreira, em sua História da Igreja Presbiteriana do Brasil, relata diversos casos de apedrejamento e invasão de templos, queima de bíblias protestantes e ataques a pastores presbiterianos, crimes, em geral, sem punição, quando não, endossados pelas autoridades locais. Pedro Tersier, em História das perseguições religiosas no Brasil, também anota inúmeros acontecimentos semelhantes ao longo da época (e, em ambas as obras, esses eventos surgem em quantidade muito superior às ocorrências do período imperial).

Para pessoas espíritas, a dificuldade foi ainda maior, pois parte de suas práticas eram tipificadas como criminosas pelo Código Penal de 1890. A identificação com divindades de matriz africana, também era criminalizada, pois entendia-se que estas práticas eram prejudiciais à tranquilidade pública.

Nota-se que no período imperial, a oficialidade da Igreja Católica Romana, não significou a proibição severa de outros cultos cristãos. A legislação imperial era restritiva e não proibicionista em relação às igrejas protestantes. Já, no Brasil República, a separação entre Religião e Estado, não significou o esvaziamento das religiões no espaço público. O que ocorreu foi, em primeiro lugar, a pressão, por parte de clérigos católicos, para a manutenção de privilégios e, em segundo, a garantia, por parte do Estado, do direito à liberdade de culto para as demais confissões e crenças.

A pergunta que fica dos períodos imperial e republicano, é pela compreensão que os legisladores e juristas tinham da religião. Os estudos indicam que o entendimento que se tinha sobre religião era limitado à diversidade cristã. O debate sobre liberdade religiosa não considerava as tradições não cristãs, entre elas a judaica, muçulmana, espíritas, as expressões afro-brasileiras. Os povos indígenas continuaram sendo campo fértil para as missões proselitistas, pois não eram compreendidos como povos com crenças específicas.  A separação entre religião e Estado e o direito à liberdade religiosa garantiu a igualdade de tratamento por parte do Estado para as igrejas, que são instituições que pertencem a um mesmo ramo religioso: o cristianismo. Estas poderiam existir sem correr o risco de ser assediadas por agentes do Estado. Além disso, a separação entre religião e Estado possibilitou que igrejas evangélicas possuíssem edificações caracterizadas como templos e colocar em prática seus projetos missionários (GILL, 2011, p. 223).

Com isso, argumenta-se, que a forma como a liberdade religiosa foi sendo delineada no Brasil não rompeu com o projeto colonialista, ela apenas garantiu que igrejas católicas e protestantes, fossem tratadas de forma isonômica em relação ao Estado brasileiro. As demais tradições religiosas não foram consideradas no debate sobre o tema. Portanto, considera-se que a forma como a laicidade e a liberdade religiosa foram concebidas no Brasil contribuiu para o aprofundamento das desigualdades e naturalização das discriminações, uma vez que o seu arcabouço conceitual de religião é restrito ao cristianismo.

2.1. Brasil, uma democracia laica, terrivelmente cristã

A liberdade não prescinde do caráter histórico da sociedade humana. Neste sentido, observa-se que a construção histórica do Brasil se deu a partir da noção de privilégios, exclusões e discriminações. Com a liberdade religiosa não foi diferente.

Uma das ideias que contribuíram para naturalizar a relação de privilégio com igrejas foi o mito do Brasil cristão, que, conforme descrito na primeira parte deste artigo, organizou e legitimou a ideia de que uma sociedade perfeita é naturalmente hierarquizada e desigual. A lógica subjacente é a de que a humanidade e o mundo de forma geral derivam da superioridade de Deus.

Se a origem deste arcabouço teológico e político está vinculado ao Concílio de Trento, hoje, ele se manifesta nas infinitas expressões do cristianismo, tanto nas variadas formas do catolicismo, especialmente carismático, quanto nas incontáveis expressões evangélicas. O mito do Brasil cristão, materializado na sociedade perfeita, que é hierárquica e desigual ancora valores sociais que dificultam e impedem políticas emancipatórias para as mulheres e interditam o debate público para a ampliação da cidadania reivindicada por movimentos LGBTQIAPN+, além de tentarem de todas as formas soterrar a diversidade de sagrados que constituem Brasil.

2.2. A instrumentalização da liberdade religiosa para a defesa de valores autoritários

Como lembra Wendy Brown (2019, p. 20) as formulações neoliberais da liberdade anulam a centralidade da igualdade na democracia e mobilizam a extrema-direita com a ideia de liberdade para justificar e legitimar violações de direitos. O neoliberalismo retira o caráter coletivo e de indivisibilidade da liberdade religiosa para reassegurar uma hegemonia branca patriarcal e, no caso brasileiro, cristã.

Nancy Fraser em seu livro Capitalismo Canibal (2024), elabora a diferenciação entre expropriação e exploração. Segundo a autora, a distinção entre ambas é econômica e política. Do ponto de vista econômico, os termos nomeiam mecanismos de acumulação de capital, que, apesar de serem distintas da expansão do valor, estão entrelaçadas com ele. Desde a perspectiva política, expropriação e exploração se referem aos modos de dominação, especialmente, com as hierarquias que diferenciam cidadãos detentores de direitos de povos sujeitados. Fraser (2024, p. 61 e 62) assinala que a distinção entre expropriação e exploração tem tanto uma função de acumulação, como também de dominação. Ela chama a atenção que são as agências políticas, especialmente os Estados, que oferecem ou negam proteção na sociedade capitalista e codificam e impõe as hierarquias de status com distinção entre cidadãos e indivíduos sujeitados.

Fraser provoca a reflexão sobre o papel da liberdade religiosa em contextos de expropriação e exploração, pois tanto uma quanto a outra necessitam de bálsamos para aliviar as feridas que provocam. Perpetuar o arcabouço teológico cristão de que uma sociedade perfeita é hierarquizada e desigual legitima as explorações e promete alívio em uma vida futura.  As lógicas da justiça distributiva e da reciprocidade se atualizam. Desta vez, em lugar do senhor de escravos está o mercado, que promete compensar os esforços sobre humanos para conseguir sucesso. A reciprocidade se expressa na obediência irrestrita aos mandamentos do mercado, que promete uma vida segura e cheia de graça a quem se esforçar e merecer.

Expressões do sagrado que não se enquadram nesta lógica são perseguidas ou sofrem restrições.

No Brasil contemporâneo, um exemplo clássico são os ataques às Casas de Reza dos povos Guaranis-kaiowas, no Mato Grosso do Sul. As Casas de Reza representam o lugar da transmissão da cultura e dos ensinamentos ancestrais. São também espaços de resistência política e ondem habitam os encantados. Os ataques a estes espaços, agravados no contexto do debate sobre o Marco Temporal, representam o aniquilamento da própria existência destes povos. A liberdade religiosa no Brasil continua sendo inalcançável para estes e outros povos indígenas. Ao não serem protegidos em sua liberdade religiosa, tais povos são alvos fáceis da expropriação e da exploração.

Outro exemplo, são as perseguições às pessoas praticantes de religiões de matriz africana. Um caso recente foi o da mãe que perdeu a guarda da filha por tê-la levado para um ritual de cura do Candomblé. Para o Ministério Público de Minas Gerais, a mãe estaria violando o direito à liberdade religiosa da filha. Os familiares que denunciaram a mãe ao Conselho Tutelar eram evangélicos.

Chama a atenção o esforço depreendido por grupos, especialmente cristãos, em caracterizar a liberdade religiosa como um direito humano ameaçado. A manifestação da psicóloga clínica Marisa Lobo, publicada no site Gospel + afirmou:

“…podemos usar nossa fé nessa disputa política, sim, justamente porque ela envolve assuntos que impactam direta e indiretamente as nossas crenças. É por isso que nos envolvemos em temas como aborto, drogas, ideologia de gênero, educação, família e tantos outros – porque ser cristão não é ser alienado!”[3]

A garantia da liberdade religiosa como direito ao controle sobre corpos e culturas funciona como arma ideológica para a exploração, expropriação e dominação.

 

Considerações finais

As violações de direitos que se valem do argumento da liberdade religiosa têm mobilizado pajés, rezadeiras, sacerdotes e sacerdotisas de terreiros, movimentos inter-religiosos, movimentos de ateus para problematizar a aplicabilidade do direito à liberdade religiosa para legitimar discriminações e perseguições.

Ao se organizar e ocupar espaços de participação social estes movimentos contribuem para exigir uma sociedade heterogênea que reivindica o direito à ancestralidade, negada pela aculturação e colonização do imaginário (CUSICANQUI, 2012, p. 106). Na maioria das vezes, tais movimentos são entendidos como movimentos de resistência, mas, acolhendo a “metáfora do ch´ixi” proposta por Cusicanqui (2012), poder-se-ia sugerir que eles significam a afirmação da cidadania ancorada no direito à diferença.

Urge, portanto, pensar a liberdade religiosa para além do direito de praticar ou não uma religião. O conceito de liberdade religiosa precisa considerar as hierarquias que organizam a estrutura das desigualdades no Brasil, especialmente as do racismo e do patriarcado. Organizações religiosas que têm o monopólio do sagrado impõe valores e incidem para a restrição de direitos.

No Brasil, o direito à liberdade religiosa não foi fruto de um debate público. A ausência deste debate, a partir das especificidades históricas e culturais do Brasil, contribui para o aumento e a legitimação de violações de direitos com base na religião. A amplificação da cultura do ódio, coloca em suspensão a atual formulação sobre liberdade religiosa, pois o texto constitucional não deixa explícita a indivisibilidade deste direito em relação aos demais direitos. Destaca-se, por fim, que em certa medida, o entendimento dos agentes públicos e jurídicos em relação ao fenômeno religioso, continua sendo restritivo, pois há uma tendência em compreender a religião a partir do cristianismo ou, quando muito, a partir das tradições abraâmicas. Este entendimento não contempla a diversidade religiosa do país.

 


 Referências Bibliográficas

BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente. São Paulo: Politeia, 2019.

CUSICANQUI, Silvia Rivera. Ch’ixinakax utxiwa: A reflection on the practices and discourses of decolonization. The South Atlantic Quarterly, 111:1, 2012, p. 95-109.

FRAGOSO, João. A Sociedade Perfeita: as origens da desigualdade social no Brasil. SP: Ed. Contexto, 2024, 352 p.

GILL, Anthony. Church-State Relationship in Era of Christendom. In. BADIE, Bertrand. BERG-SCHLOSSER Dirk; MORLINO, Leonardo. International Encyclopedia Political Science, Vol. I, Whashington, DC. CQ Press, 2011, p. 223-224.

FRASER, Nancy. Capitalismo Canibal. Como nosso sistema está devorando a democracia, o cuidado e o planeta e o que podemos fazer as respeito disso. SP: Autonomia Literária. 1ª edição, 2024, 260 p.

GUEDES, Roberto. Resgates de cativos na África e na travessia atlântica e escravidão africana no Brasil. In. A Sociedade Perfeita: as origens da desigualdade social no Brasil. SP: Ed. Contexto, 2024, p.  71 – 108.

LEITE, Carvalho Fábio. O laicismo e outros exageros sobre a primeira República do Brasil. In. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 31(1), 2011, p. 32 – 600.

LOBO, Marisa. Reação contra atuação dos evangélicos na política é uma ameaça à liberdade religiosa. In. https://colunas.gospelmais.com.br/liberdade-religiosa-evangelicos-risco-sob-esquerda_36327.html, acessado em 11 de abril.

REIS, João José. Os malês segundo ‘Abd Al-Raḥmān Al-Baghdādī, um imã otomano no Brasil oitocentista. In. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 43, nº 93, 2023, p. 355-396. Disponível em https://doi.org/10.1590/1806-93472023v43n93-17, acesso em junho de 2024.

NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

______________. A força simbólica dos direitos humanos. In. Revista Eletrônica de Direito do Estado da Bahia, n. 4 – outubro/novembro/dezembro de 2005. Disponível em https://www.trt13.jus.br/institucional/ejud/material-dos-cursos-e-eventos/anos-anteriores/cursos-de-2014/9-teoria-critica-e-direito-06-a-08-de-agosto/neves_forca-simbolica-dos-direitos-humanos.pdf, acessado em 25 de maio de 2024.

[1] O Concílio de Trento organizou a disciplina social das populações católicas romanas, sendo que refinou a compreensão de que sociedades hierárquicas e desiguais são tão naturais como a existência de mares e a separação do dia e da noite. O Concílio estabeleceu rotinas administrativas para a Igreja Católica Romana, como o registro em livros paroquiais dos batismos, casamentos e óbitos e a divisão da cristandade em bispados. Cabia aos bispos realizar visitações eclesiásticas às paróquias para verificar a eficiência do ensino do catolicismo e punir desobediências, especialmente os assim chamados pecados públicos, que eram os praticados diante da comunidade ou que os residentes sabiam que havia sido cometido, embora não tivessem visto. Entre a lista destes pecados puníveis estavam: a bigamia, a sodomia, a feitiçaria e a blasfêmia.

[2] A política de branqueamento das raças foi implementada no Brasil como solução ao número expressivo de populações indígenas negras e mestiças.

[3] Lobo, Marisa. Reação contra atuação dos evangélicos na política é uma ameaça à liberdade religiosa. In. https://colunas.gospelmais.com.br/liberdade-religiosa-evangelicos-risco-sob-esquerda_36327.html, acessado em 11 de abril.

Áudios

Vídeos

O Ciclo 2: A democracia e o Sul global é composto de oficinas preparatórias para um importante momento: uma sessão plenária que irá acontecer, no dia 15 de novembro, durante o G20 Social, quando entregaremos um documentos com análises e recomendações para a nova presidência do fórum, da África do Sul, que assume o comando grupo.
O documentário Vozes pela Democracia reuniu diversas falas vindas de diferentes movimentos sociais, professores e pesquisadores, organizações não-governamentais e de representantes dos governos em prol da defesa de uma sociedade mais justa, igualitária e fraterna.
Por que refletir e debater sobre a importância da segurança pública para a democracia? Como a esquerda trata o tema e de que maneira a segurança deve figurar na agenda do campo progressista? Quais devem ser as ações futuras? A violência, o crime e a regressão de direitos são temas locais. A construção da paz e da democracia deve ser encarada como um desafio transnacional, continental e o Sul global deve ser protagonista na construção dessa utopia. Todas estas questões trazem inquietude e precisam ser analisadas. Com esta preocupação, o Instituto Novos Paradigmas reuniu algumas das principais referências sul-americanas no campo progressista, no Seminário Democracia, Segurança Pública e Integração: uma perspectiva latino-americana, realizado em Montevidéu, no dia 12 de outubro de 2023. Um momento rico em debates e no compartilhamento de experiências, considerando a necessidade da integração regional. Este documentário traz uma síntese do que foi discutido e levanta aspectos que não podem ser perdidos de vista frente às ameaças do crescimento da direita e da extrema direita no mundo e principalmente na América do Sul.
Video do site My News Pesquisa levada a cabo por pesquisadores da Faculdade de Saúde Pública da USP, Centro de Estudos de Direito Sanitário e Conectas explica porque o Brasil não chegou à toa ao caos no enfrentamento da pandemia da COVID 19 Assista a Professor Deise Ventura, uma das coordenadoras da pesquisa.
O ex-ministro da Justiça Tarso Genro aborda as novas relações de trabalho no Congresso Virtual da ABDT.
O ex-ministro da Justiça do Governo Lula participou de um debate ao vivo na CNN com o ex-presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, desembargador Ivan Sartori. O tema foi a decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello de tornar pública a reunião ministerial do dia 22 de abril, apontada por Sérgio Moro como prova da interferência do presidente na Polícia Federal. Tarso Genro considera acertada a decisão de Celso de Mello.
plugins premium WordPress