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Guerra Europeia e Pandemia Global: A Renovada Validade do Não-Alinhamento Ativo

Carlos Fortin, Jorge Heine e Carlos Ominami

Carlos Fortin é um pesquisador emérito do Instituto de Estudos de Desenvolvimento (IDS), Universidade de Sussex; Jorge Heine é professor de pesquisa na Escola de Estudos Globais Frederick S. Pardee, Universidade de Boston; Carlos Ominami é diretor da Fundação Chile 21 e ex-ministro de Assuntos Econômicos do Chile.

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“A Europa tem que deixar de pensar que os problemas da Europa são os
problemas do mundo, mas os problemas do mundo não são da Europa”
S. Jaishankar, Ministro das Relações Exteriores da Índia, no Fórum GLOBESEC 2022,
The Economic Times, 6 de junho de 2022

A guerra na Ucrânia é um ponto de virada nas relações internacionais do século XXI. Como o confronto mais sangrento na Europa desde a Segunda Guerra Mundial e sem fim à vista, trouxe de volta os horrores da guerra a um continente que muitos pensavam tê-los deixado para trás. A invasão russa da Ucrânia, em violação do direito internacional e de princípios básicos como o “respeito à soberania nacional” consagrado na Carta das Nações Unidas, e devido ao sofrimento humanitário que trouxe, foi amplamente condenada por vastos setores da comunidade internacional. Gerou um forte consenso dentro da OTAN e dos países do G7, pondo fim às divisões na Aliança transatlântica durante a administração de Donald Trump. Isto levou a grandes fluxos de ajuda militar e econômica direta e indireta à Ucrânia, o que permitiu a Kiev resistir à ofensiva russa durante o primeiro ano do conflito.

O Presidente Joseph Biden argumentou que a guerra na Ucrânia expressa o que seria a principal fissura no sistema internacional, aquela entre democracias e autocracias, algo que tem ecoado em vários países europeus (Youngs, 2022). Dada a longa tradição de compromisso com o direito internacional e os princípios de “soberania nacional”, bem como de “não intervenção” existentes na América Latina, uma região com uma esmagadora maioria de regimes democráticos, seria de se esperar uma reação semelhante à da Europa, Estados Unidos, Canadá e Austrália. No entanto, não foi este o caso. Embora nenhum país latino-americano tenha votado contra a resolução (quatro deles, Bolívia, Cuba, El Salvador e Nicarágua se abstiveram e a Venezuela não estavam presentes) condenando a invasão russa na Assembleia Geral da ONU em 2 de março de 2022, nove deles se abstiveram e três votaram contra uma
resolução subsequente para suspender a Rússia do Conselho de Direitos Humanos. Nenhum país da América Latina apoiou as sanções diplomáticas e econômicas contra a Rússia promovidas pelos Estados Unidos e pela União Europeia. Os presidentes dos dois maiores países da América do Sul – Argentina e Brasil – visitaram Moscou pouco antes da invasão da Ucrânia, com o presidente brasileiro Jair Bolsonaro dizendo que o estava fazendo “em solidariedade à Rússia”. O presidente do México, Andrés Manuel López Obrador, também expressou sua neutralidade no conflito.

O que explica este comportamento aparentemente contraintuitivo de alguns dos principais países latino-americanos diante de um conflito deste tipo, um verdadeiro divisor de águas em assuntos internacionais? Como se compara a preferência pelo não-alinhamento expressa pelos países latinoamericanos com as nações de outras regiões do Sul? Que novas tendências e padrões-chave observamos em termos de política externa e posicionamento diplomático desses países no Sul Global, e quais são as implicações para a governança internacional?

Uma resposta à competição pela hegemonia

O conceito de “Active Non-Alignment” [Não-Alinhamento Ativo] (ANA) surgiu em 2019 (Ominami, 2019) como uma ferramenta conceitual e recomendação de política externa para os países lidarem com os desafios colocados pela competição EUA-China pela hegemonia, especificamente a pressão para escolher lados, e foi posteriormente desenvolvido (Fortin, Heine e Ominami, 2020; 2021). A expressão mais visível destes riscos foi a campanha agressiva da administração Trump para persuadir, ou melhor, forçar os governos latino-americanos a cortar ou pelo menos reduzir seus laços comerciais, financeiros, tecnológicos e de investimento com a RPC. O termo “ativo” alude a uma política externa em constante busca de oportunidades em um mundo em mudança, avaliando cada um deles em seus próprios termos. Ele reconhece as raízes históricas da política de Não-Alinhamento, mas adapta o conceito às realidades do novo século. Requer uma política externa especialmente hábil, em sintonia com os desafios emergentes no ambiente internacional.

O ANA apela aos governos latino-americanos para que não aceitem a priori e de forma direta as posições de qualquer das Grandes Potências em conflito, mas que definam seu comportamento internacional de acordo com seus próprios interesses soberanos, sem ceder às pressões diplomáticas, políticas ou econômicas das potências hegemônicas. Há um paralelo interessante com os debates europeus contemporâneos e as propostas de autonomia estratégica europeia, conceito promovido pelo presidente francês Emmanuel Macron, e que encontra apoio no alto representante da União Europeia para Política Externa e de Segurança, Josep Borrell (Besch e Scazzieri, 2020).

Pegando uma página da tradição anterior do ‘Non-Aligned Movement’ [Movimento Não-Alinhado] (NAM) do século XX, cuja origem foi a Conferência de Bandung de 1955 sob a liderança de figuras como Jawaharlal Nehru, Gamal Abdel Nasser, Sukarno e outros, mas adaptando-a às realidades do século XXI, o ANA sublinha a urgência de responder ao momento difícil de um mundo cada vez mais marginalizado e fragmentado. Em 2020, quando seu PIB caiu 6,6%, a economia da América Latina passou pelo que a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) chamou de sua “maior contração em 120 anos” (CEPAL, 2021). No entanto, desde o início do ANA como conceito se referiu a um âmbito espacial e temporal mais amplo: seu apelo pode ser concebido como se estendendo ao Sul Global como um todo, e pode ser aplicado a situações de conflito hegemônico em geral.

Além de resgatar a honrosa tradição do NAM, o novo ANA também se inspira na Escola Autônoma de Relações Internacionais da América Latina, representada por autores como Helio Jaguaribe e Juan Carlos Puig. Mas, acima de tudo, o ANA se baseia no reconhecimento do que o Banco Mundial chamou de “Mudança da Riqueza” do Atlântico Norte para a Ásia-Pacífico que ocorreu desde o início do século XXI, (de la Torre et al, 2015). De acordo com projeções relacionadas, em 2050 as três maiores economias do mundo serão a China, a Índia e os EUA, nesta ordem. Até aquele ano, das 10 maiores economias do mundo, sete serão não-ocidentais. A diplomacia dos “cahiers des doléances” do que antes era conhecido como Terceiro Mundo foi substituída pelo que agora é chamado de “estatal financeiro coletivo” do Novo Sul, corporizado nos novos bancos multilaterais de desenvolvimento, como o Banco
Asiático de Investimento em Infraestrutura (BAII) e o New Development Bank [Novo Banco de Desenvolvimento] (NDB, o chamado “Banco BRICS”) que abrem novas perspectivas para os países da Ásia, África e América Latina.

Isto significa que “as nações líderes do mundo em desenvolvimento não só não querem ter que escolher lados na nova guerra fria, mas também – muito mais importante – não sentem que têm que escolher” (Traub, 2022). Quando um Novo Sul emerge e substitui o velho Terceiro Mundo, há uma sensação generalizada de que a ordem internacional dominada pelo Ocidente “não atende suas necessidades de segurança, suas preocupações existenciais em alimentos e finanças, ou ameaças transnacionais como a mudança climática” (Menon, 2022).

Dito isto, o Não-Alinhamento Ativo não significa neutralidade. Esta última, por definição, implica em não tomar posições sobre questões internacionais. A Suíça, com sua relutância em aderir à UE e, até 2002, mesmo as Nações Unidas, encarna esta política de neutralidade. O ANA como opção de política externa não se trata de recusar a tomar posição sobre questões internacionais, mas de se recusar a se alinhar automaticamente com uma ou outra das Grandes Potências. Nesta abordagem, os governos colocam seus interesses nacionais em primeiro plano, e não os de potências estrangeiras.

Usamos o qualificador “ativo” para expressar que este não-alinhamento é perfeitamente compatível com a tomada de uma posição (crítica ou de apoio) das decisões adotadas por qualquer uma das Grandes Potências. Cada uma destas decisões será avaliada por seus méritos sem preconceitos a priori de qualquer tipo. A neutralidade implica em se abster de emitir um parecer. Pelo contrário, o ANA contempla tomar uma posição baseada em convicções. Assim, por exemplo, dado o dilema com que o Chile e o México foram apresentados como membros não permanentes do Conselho de Segurança da ONU em 2003, diante da pressão dos Estados Unidos para apoiá-lo em uma resolução endossando a invasão do Iraque, a doutrina da neutralidade teria levado a não fazer uma declaração de uma forma ou de outra. Em vez disso, a oposição a tal resolução era consistente com uma posição do ANA. Por sua vez, nada impede que um país que abraça esta doutrina condene, por exemplo, algumas práticas do governo chinês que violam os direitos humanos.

No auge do NAM, o não-alinhamento significava, no mínimo, não aderir às alianças militares de nenhuma das duas superpotências, ou seja, os Estados Unidos ou a URSS. No novo século, em um mundo globalizado e interdependente, uma abordagem mais flexível é necessária. Por sua vez, quando originalmente apresentamos a proposta do ANA, alguns objetaram que ela era uma nostálgica reminiscência do passado e descartaram a possibilidade de uma Segunda Guerra Fria. No entanto, eventos como a “quase-crise” em Taiwan causada pela visita da Presidente da Câmara dos Deputados, Nancy Pelosi, em agosto de 2022, recordando episódios dos anos 50, parecem confirmar nosso diagnóstico.

As referências à noção de uma nova Guerra Fria e o ressurgimento do Não-Alinhamento na grande mídia, bem como na literatura acadêmica, confirmam que o Não-Alinhamento voltou a aparecer na América Latina e no Sul Global como um todo (Rachman, 2022; Menon, 2022; Traub, 2022; Friedman e Sela, 2022). Para aqueles que criticam o ANA, dizendo que ela revive o conceito de não-alinhamento do passado e o aplica a circunstâncias contemporâneas completamente diferentes, marcadas por fenômenos como a quarta revolução industrial, e mudanças tecnológicas disruptivas relacionadas, tais como inteligência artificial (IA), robótica e computação em nuvem, sugerimos que a validade e legitimidade do conceito está enraizada na história. O ANA reivindica os esforços históricos de não eleição que criaram um espaço para o mundo pós-colonial.

Dito isto, criticamos a forma alinhada que o não-alinhamento acabou por assumir na América Latina, pois Cuba acabou ficando próxima demais da União Soviética, determinada em grande parte pelas medidas adotadas para garantir a sobrevivência do regime após a revolução.

O novo contexto: a covid-19 e a guerra trazem o Estado de volta

Gravemente ferida pela crise do Lehman Brothers de 2008, a “globalização”, como a conhecemos nas últimas décadas, está sendo desenrolada. Isto foi até mesmo proclamado por Larry Fink, presidente da BlackRock, o maior gestor de ativos e gestor de fundos de pensão do mundo (Financial Times, 2022). Um questionamento radical da ideia-chave da globalização tomou forma; isto é, a transformação do mundo em um mercado único, grande e unificado, dominado por empresas que impõem seus padrões de consumo e produção e se localizam em diferentes países de acordo com suas vantagens comparativas, em termos de custos de mão-de-obra, disponibilidade de matéria-prima ou proximidade a grandes mercados.

Na esfera financeira, a crise 2008-09 foi gerenciada pelos Estados Unidos, China, bancos centrais do G7 e o BCE através da expansão monetária. Isto gerou um boom nos mercados financeiros e bolsistas. Mas também houve uma expansão monetária geral em todo o mundo – inclusive na UE – para tentar compensar os efeitos negativos da desaceleração econômica sobre os setores mais vulneráveis da população.

A guerra na Ucrânia agrava os problemas econômicos mundiais que datam da crise financeira de 2008-09. Eles foram exacerbados pelas tensões econômicas entre os Estados Unidos e a Europa, por um lado, e a China, por outro, assim como pela pandemia de Covid-19. Um efeito da pandemia da COVID-19 tem sido a ruptura das cadeias de valor na manufatura global. Isto tem sido especialmente evidente no setor de microprocessadores, com seu impacto em muitas outras áreas. Este fenômeno mostrou a vulnerabilidade da integração da produção nacional em cadeias globalizadas que podem ser interrompidas por choques externos, bem como os riscos de dependência externa de bens essenciais. Este último foi claramente observado na Europa durante a pandemia, em termos de disponibilidade de suprimentos médicos. Isto pôs em questão a relação com a China como o principal produtor mundial de produtos essenciais para a saúde. Segundo dados do Instituto Peterson de Economia Internacional, mesmo antes da pandemia, a China exportava mais respiradores, máscaras cirúrgicas, óculos médicos e equipamentos de proteção do que o resto do mundo combinado (Brown, 2020). Seu domínio de mercado não diminuiu até hoje. Por sua vez, a pandemia e a guerra geraram uma nova atitude em relação à integração comercial global e cadeias de valor globalizadas, e esforços renovados para aumentar a resiliência nacional e a autossuficiência nacional.

A pandemia da COVID-19 levou à resposta política da necessidade de encurtar as cadeias de produção e ressuscitou noções como soberania nacional em matéria de saúde. Por sua vez, a guerra na Ucrânia reforçou as tendências para a regionalização com estratégias de realocação (re-horing), relocalização próxima (nearshoring), a combinação de locais domésticos com locais estrangeiros (multishoring) e locais em países considerados “amigos” (friendshoring).

Entre fevereiro de 2020 e fevereiro de 2022, o mundo sofreu um duplo choque: primeiro a pandemia da COVID, e depois a guerra na Ucrânia. Esta última é a primeira guerra internacional desde meados do século XX que é indiscutivelmente “global” (“a primeira guerra global”, de acordo com Juan Gabriel Tokatlian, 2022), e a primeira a causar uma forte desaceleração no crescimento econômico em todo o mundo. Seu impacto sobre commodities como petróleo, gás, alumínio e cereais, e sobre insumos agrícolas, como fertilizantes, é quase global.

O efeito financeiro global de ambas as crises tem sido um forte aumento na demanda, o que, num contexto de redução da oferta e interrupção nas cadeias de abastecimento, se traduziu em um aumento geral dos preços. A estagflação (estagnação econômica junto com a inflação) reapareceu, dificultando a gestão desta crise, devido aos limites da política monetária no cenário atual.

Neste contexto, a economia como força motriz nas décadas de expansão da globalização tem sido deslocada pela geopolítica. No paradigma anterior, as grandes empresas multinacionais eram os atores mais influentes; sua atividade era desenvolvida mundialmente e impulsionada, sobretudo, por cálculos de custo-benefício. Hoje, os estados-nação recuperaram sua centralidade, colocando seu próprio cálculo político e estratégico na frente e no centro. A economia está subordinada à política.

O resultado é um abandono nos EUA e na Europa de políticas e ideologias que minimizam o papel do Estado. Ao invés disso, tem sido o “retorno do Estado”. Durante a pandemia e com a inflação crescente ligada à crise energética, o governo Biden lançou programas maciços de gastos públicos para salvar os setores mais afetados pela crise e dar um novo impulso à atividade econômica (CNN, 2022). A UE também lançou o plano de recuperação da Próxima Geração da UE durante a pandemia, que inclui gastos de 750 bilhões de euros (Euronews.next, 2022). Estas medidas impediram o colapso econômico dos mais vulneráveis nestas economias líderes e possibilitaram a manutenção da atividade econômica. Mas elas também contribuíram para o aumento da inflação, globalmente.

O ANA ganha nova moeda em meio a este novo contexto mundial como uma opção para os países que procuram manter sua autonomia e sua soberania, e não estar sob o domínio de nenhuma das Grandes Potências.

A América Latina e a geopolitização das relações internacionais

A geopolitização das relações internacionais prioriza as questões de poder, defesa nacional e segurança em detrimento da eficiência econômica. Ela também leva a avaliar as opções de política econômica em termos de seu possível impacto sobre o equilíbrio geopolítico de poder.

O governo americano define cada vez mais sua relação com a China nos campos do comércio e da tecnologia em termos de critérios geopolíticos. Esta tendência começou explicitamente durante a administração Trump, mas continuou, embora com retórica menos estridente, sob a administração Biden. Em 2019, a administração Trump acusou, sem qualquer evidência tornada pública, a empresa chinesa Huawei, um dos maiores fornecedores mundiais de equipamentos de telecomunicações, de incluir “backdoors” em seus equipamentos que lhe permitissem realizar espionagem para o governo chinês. Em maio de 2019, Washington incluiu a Huawei na lista de empresas com as quais as empresas americanas estão proibidas de fazer negócios. A administração Biden tem, até o momento, mantido a proibição.

Na mesma linha, com a guerra na Ucrânia, os governos da Europa Ocidental, e especialmente o governo alemão, reavaliaram as consequências de sua dependência do gás russo. Um resultado imediato foi a mudança para o GNL (mais caro), enviado dos Estados Unidos e do Golfo. Outros, como a França, estão reavaliando a opção nuclear adotada em 1975. O aumento constante dos preços da energia em toda a Europa tornou-se uma questão política importante, com os governos se esforçando para encontrar soluções para a emergência. O pacote de subsídios maciços da Alemanha aos consumidores desencadeou protestos nos países vizinhos, defendendo uma resposta à escala europeia.

O impacto da pandemia da COVID e da guerra Rússia/Ucrânia nas economias da América Latina teve variações sub-regionais e nacionais, mas para a região como um todo levou a uma desaceleração significativa. Em 2020, a região teve um crescimento negativo do PIB de – 6,6%, o mais alto de qualquer região (CEPAL, 2021). Em 2021, uma expansão de 6,3% foi o resultado dos pacotes de estímulo fiscal introduzidos pelos governos. Para 2022, a CEPAL estimou inicialmente um crescimento de 2,3%, mas após o início da guerra reduziu suas previsões de crescimento para 1,8%. O Chile, talvez o país mais desenvolvido da região, deverá ter um crescimento de -1,3 PIB em 2023.

Outra consequência negativa para a América Latina é a incerteza sobre o investimento que ameaça, segundo a CEPAL, um possível retorno aos níveis de crescimento muito baixos de 2014-2019 (CEPAL, 2022). O mesmo vale para a persistência da inflação e as concomitantes altas taxas de juros nos países desenvolvidos, que geram saídas de capital, desvalorizações cambiais e novos aumentos nos preços internos. Estes fatores provavelmente terão um efeito negativo sobre a pobreza e a desigualdade em toda a região. A CEPAL prevê que a pobreza regional em 2022 atingirá 33% (0,9 pontos acima do valor projetado para 2021) e que a pobreza extrema atingirá 14,5% (0,7 pontos a mais do que em 2021), dado que o aumento dos preços dos alimentos é maior do que o de outros bens.

No caso do Brasil, um produtor agrícola líder que importa um quarto de seus fertilizantes da Rússia, juntando-se às sanções contra Moscou teria significado sacrificar uma parte importante de sua produção agrícola (The New York Times, 2022a). Não o fez. Além da reação do Brasil à guerra na Ucrânia, houve precedentes para um comportamento mais independente por parte de Brasília. Embora Bolsonaro liderasse o que foi talvez o governo brasileiro mais pró-EUA na história, recusou-se a excluir Huawei da licitação das redes 5G, apesar da pressão de Washington. (Stuenkel, 2021).

Em outras palavras, nos últimos anos, a maioria dos países latino-americanos já vem aplicando uma política de não-alinhamento, percebendo que têm muito pouco a ganhar se se alinharem automaticamente com Washington ou com Pequim. Neste sentido, mais do que uma proposta orientada para o futuro, o ANA já constitui uma tendência empírica observável, mesmo padrão, da política externa latino-americana existente, “o mais importante desenvolvimento da política externa da região desde o final da Guerra Fria”, nas palavras de Brian Winter (2022).

A América Latina enfrenta um enorme desafio e, ao mesmo tempo, uma oportunidade notável. O desafio está em se reintegrar após décadas de desintegração regional. A oportunidade está aproveitando essa unidade regional em relação às Grandes Potências, em particular com a China e os Estados Unidos. Entretanto, isto requer uma condição política fundamental: A convergência latinoamericana. O Não-alinhamento Ativo fornece um guia útil para a ação a este respeito.

Não-alinhamento através do sul global

Nos últimos anos, os países latino-americanos tiveram que enfrentar e administrar as tensões entre os EUA e a China. Em questões como projetos de infraestrutura, conectividade digital e a implantação da tecnologia 5G, Washington pressionou os países latino-americanos a não chegarem a acordos com Pequim. No entanto, mesmo em meio à pandemia e a uma profunda recessão econômica, vários governos da região, direita, esquerda e centro, optaram por se concentrar em seus próprios interesses nacionais e não se colocar automaticamente ao lado de Washington ou Pequim. Além do Brasil, o que aconteceu com o Huawei tem se repetido em vários países da região. Alguns, como o Equador e o Uruguai, enfatizaram que é fundamental que os países da região tenham opções abertas. Ambos os países, governados por coalizões conservadoras, estão negociando acordos de livre comércio com a
China, ou explorando formas de fazê-lo, depois de terem sido rejeitados por Washington em suas tentativas de assinar ACLs com os Estados Unidos. Neste cenário, numa posição de alinhamento com os Estados Unidos tornaria impossível qualquer negociação deste tipo com a China.

Esta posição latino-americana também ficou clara no final de 2021, no Fórum Ministerial China-CELAC (Cidade do México, 2-3 de dezembro) e na Cúpula para as Democracias (Washington, 9-10 de dezembro). A esmagadora maioria dos países latino-americanos participou de ambas as reuniões e não viu nenhuma contradição em fazê-lo.

As reações em todo o Sul Global à guerra na Ucrânia e as subsequentes sanções ocidentais contra a Rússia demonstram que o ANA não está limitada à América Latina. O ANA tem maior atração e aplicabilidade global. O padrão também é observável na África e na Ásia, onde o NAM teve origem, e, como disse James Traub ( 2022), “a exigência ocidental de cerrar fileiras atrás da Ucrânia não provocou um retrocesso tanto quanto cristalizou formas de pensar que precederam a guerra”.

O atual conflito entre os EUA e a Rússia decorrente da guerra na Ucrânia gerou algumas respostas comuns de todo o Sul Global e reproduzindo a dinâmica do “Ocidente versus o resto”. A Índia desempenha um papel central na relutância do Sul Global em se alinhar no conflito Rússia/Ucrânia, apesar da aproximação nos últimos anos entre a Índia e os Estados Unidos. O Primeiro Ministro indiano Narendra Modi e o Presidente Trump trocaram visitas em setembro de 2019 e fevereiro de 2020, respectivamente. Modi também visitou a Casa Branca, convidado pelo Presidente Biden para participar da primeira cúpula do Diálogo Quadrilateral de Segurança (QUAD) em 2021. O QUAD é uma aliança militar composta pelos EUA, Japão, Austrália e Índia; a Índia é, portanto, o país que ocupa o centro da estratégia Indo-Pacífico de Washington. Apesar disso, a Índia recusou-se a condenar a invasão russa da
Ucrânia e, na verdade, intensificou suas compras de petróleo da Rússia, apesar da imposição de sanções norte-americanas ao comércio com Moscou. Pode-se dizer que nesta situação Nova Delhi descobriu suas raízes não-alinhadas; na maior crise da Europa desde a Segunda Guerra Mundial, a Índia está agindo em conformidade. Como diz o cientista político indiano Pratap Bhanu Mehta , “Paradoxalmente, a guerra na Ucrânia diminuiu a confiança nas potências ocidentais e concentrou as mentes das pessoas em como cobrir as apostas” (The New York Times, 2022b).

Além disso, 17 países africanos, incluindo a África do Sul, abstiveram-se na votação da Assembléia Geral da ONU sobre a resolução condenando a invasão russa da Ucrânia; 8 países não votaram, e um votou contra. Sobre a resolução da ONU de suspender a Rússia do Conselho de Direitos Humanos, 9 países africanos votaram contra, 23 se abstiveram e 9 não votaram. Muitos outros que votaram a favor, contudo, se opuseram à imposição de sanções a Moscou, sabendo que mais pessoas passarão fome em todo o Sul Global como resultado. De acordo com a estimativa da ONU, 13,1 milhões de pessoas poderiam passar fome devido à guerra.

Um papel fundamental neste processo é desempenhado por um grupo informal, uma entidade amplamente ignorada pela mídia ocidental, apesar de sua óbvia importância: os BRICS. Este grupo, que reúne Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, e que tem realizado cúpulas anuais desde 2009, tem seu próprio banco, o NDB, fundado em 2015, e sediado em Xangai. Seu capital é de US$ 50 bilhões, o Banco já emprestou US$ 15 bilhões, e foi avaliado favoravelmente pelas agências de classificação de crédito.

Os BRICS se posicionaram como interlocutores críticos e uma voz chave no Sul Global, criando vínculos e redes entre estes importantes países não ocidentais, independentemente das ideologias. Com a possibilidade de expansão com outros membros do G20 como Argentina e Indonésia, os BRICS incorporam o Novo Sul que emergiu no novo século. Um roteiro para evitar a tragédia

Os impactos da pandemia da COVID-19 e a guerra na Ucrânia marcam um ponto de inflexão nos assuntos mundiais. Ela constitui uma mudança de época (eine Zeitenwende, na expressão do chanceler alemão Olaf Scholz, 2023) e levou à discussão de uma “nova Guerra Fria” – desta vez de natureza tripolar. Mas, longe de enfraquecer a doutrina ANA, estes desenvolvimentos a fortalecem. Diante do reaparecimento de um confronto entre as Grandes Potências, um Sul global emergente está retomando as tradições do pós Segunda Guerra Mundial, movimento pós-colonial e está adaptando-as aos desafios do novo século.

Para a América Latina, o ANA fornece um roteiro útil para evitar a tragédia em um mundo turbulento e abre a possibilidade de definir uma posição comum na região. Na primeira Guerra Fria, os países latinoamericanos se colocaram em grande parte do lado dos Estados Unidos. Por que desta vez é diferente? A razão é simples. Enquanto a União Soviética não tinha muito a oferecer em termos de oportunidades de  comércio e investimento, muito menos de cooperação financeira, o mesmo não acontece com a China, o maior parceiro comercial da América do Sul. Ao mesmo tempo, os Estados Unidos, por razões relacionadas à sua política interna, estão altamente limitados em termos do tipo de recursos financeiros que podem ser utilizados na região, e de forma mais ampla. O mesmo vale para a concessão de acesso ao mercado dos EUA, limitado pelo sentimento cada vez mais anti-comércio livre da opinião pública norte-americana. E, enquanto no passado havia veto em países latino-americanos (grupos empresariais e militares) que estavam em posição de bloquear o estreitamento dos laços com a União Soviética, hoje
não é necessariamente do seu interesse fazê-lo com a China.

Estritamente da perspectiva de um ator racional, portanto, de longe, a melhor estratégia de política externa para os governos latino-americanos de qualquer matiz política, é manter suas opções em aberto, e lidar com Washington e com Pequim em bases de questão por questão, sem se comprometer a priori com nenhum dos lados.

Como Catherine Osborn (2022) escreve, o novo Não-Alinhamento da América Latina pode muito bem assumir uma tonalidade verde (ao contrário do vermelho de sua encarnação anterior, como alguns acusados), refletindo as prioridades ambientais urgentes de uma região especialmente vulnerável às mudanças climáticas. Entre a nova (e não tão nova) safra de líderes latino-americanos emergentes, como Gustavo Petro na Colômbia, Gabriel Boric no Chile e, criticamente, Luiz Inácio Lula da Silva no Brasil, a questão do aquecimento global e de como reduzir as emissões de carbono está na frente e no centro, uma questão em que as diferenças entre o Norte e o Sul quanto a quem e como pagar por tais programas continuam sem solução. As questões ambientais também podem ser uma âncora para a construção de novas coalizões no Sul Global, e o Brasil, com um forte histórico em entidades como o
IBSA e os BRICS, pode ser chamado a desempenhar um papel de liderança.

Sugerimos ainda que o ANA também tem maior atração e aplicabilidade em todo o hemisfério sul. Tal postura permitiria que os países e as regiões do Sul Global se posicionassem vantajosamente em suas relações com o resto do mundo, algo que tem sido sublinhado pela geopolitização das relações econômicas internacionais. Se há algo que a América Latina não precisa neste momento de crise econômica aguda, é começar a tomar decisões comerciais e de investimento por razões ideológicas. Por um lado, isto implica resistir à pressão dos Estados Unidos para reproduzir o alinhamento histórico baseado na hegemonia e nos interesses destes últimos, e insistir em uma relação mais simétrica e criativa. Por outro lado, com respeito à China, requer a manutenção da condição de parceiro comercial
chave, mas também definir uma relação diferente do modo tradicional de centro-periferia que a China tende a preferir quando não encontra resistência. Para ambas as tarefas, a unidade de propósito e ação dos países da região é essencial.

A boa notícia é que uma nova América Latina está mais uma vez emergindo da recente onda de eleições. Pela primeira vez em muito tempo há Estados que declaram sua forte vontade de retomar a integração regional: México, Argentina, Chile, Colômbia, Peru e Brasil, como foi refletido na VII Cúpula da CELAC realizada em janeiro de 2023 em Buenos Aires, e que levou à “Declaração de Buenos Aires”. A proposta do ANA pode encontrar apoio e massa crítica nestes países – como ponto de convergência na política externa.

Um novo ímpeto deve ser colocado na implementação de uma agenda de questões prioritárias. As definições institucionais devem focalizar objetivos funcionais e pragmáticos, rompendo com a longa tradição na América Latina de criar instituições que acabam condenadas a uma existência puramente burocrática, ou que desaparecem na ausência de tarefas claramente definidas, específicas e estratégicas. Os novos governos progressistas são chamados a revigorar o processo de integração regional que tem definhado nos últimos anos, gerando mecanismos e instituições duradouras que vão além das afinidades ideológicas e das políticas dos governos do momento.

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