“A verdade é que os juristas alemães tiveram diversas e reiteradas oportunidades para, sob o microscópio da legalidade, tomar decisões que dificultariam ou impediriam os nazistas de assumir o poder, mas, ao invés disso, desviaram convenientemente seus olhares e legitimaram uma situação de pseudolegalidade e pseudocontinuidade” (Meyer-Hesemann)[1]
A ilegalidade ostensiva de centenas de atos, discursos e métodos de governar do Governo de Jair Bolsonaro, toleradas continuamente pelo Sistema de Justiça do país, quase nos levou – ao fim do seu mandato – a uma revolução fascista, aparentemente feita dentro da ordem jurídica. Esta leniência do Estado de Direito para defender-se foi conquistada e instituída por uma postura do presidente de então, de destruição e desatenção deliberada ao sistema de normas positivas que é o mesmo até os dias de hoje e mostra-se suficiente para defender a democracia. A norma vem superando o medo e o autoritarismo intolerante e criminoso vem sendo vencido pelo Guardião da Constituição.
Há dois pacotes de impunidades em andamento. Trata-se da PEC ‘das prerrogativas’, que fere radicalmente o princípio da igualdade perante a lei, chancelando a desigualdade dos cidadãos perante a aplicação da lei penal; e da PEC “da anistia”, cuja teleologia é a proteção dos envolvidos na tentativa de golpe de 8.01, ainda em andamento, através de emenda constitucional que atenta contra cláusulas pétreas da Constituição, “que garantem a inviolabilidade das eleições livres e periódicas”, como lembrou Pedro Serrano. Ambas instituem um quadro de violação das fronteiras que separam a democracia constitucional de um estado de fato, diluindo a força normativa da constituição democrática. Ambas as PEC(s) se inscrevem como ações continuadas no processo de golpe tentado, que retoma – assim – o seu curso de violência institucional.
Reza a lenda que Mussolini esbravejou, em outubro de 1922, na Marcha sobre Roma, que ali “a ação enterrou a filosofia”. Se o disse, não fez apenas uma bravata, mas uma constatação que proclamava o Século Sangrento da 2ª Grande Guerra, que iria soterrar os valores fundamentais da modernidade democrática, propostos com diferentes formas jurídicas. As igualdades prometidas e as liberdades exercitadas por formas jurídicas imperfeitas – com novos sujeitos políticos em ebulição na democracia da República de Weimar – já estavam desgastadas sob o bastão de Hitler e Mussolini, que enferrujavam nos portões da história.
O não cumprimento das grandes promessas das revoluções sociais do século passado deve, portanto, servir de medida para verificar se as democracias políticas que vingaram no ocidente chegarem, ou não, aos seus limites definitivos. Borges dizia que “no deserto sempre se está no centro”, mas, se a metáfora de Borges estava correta – se estamos no centro desta dúvida – podemos buscar no horizonte os seus limites: se não entendermos onde paramos (uma cabeça um voto, eleições periódicas e legítimas e mais igualdade) a democracia constitucional, poderá terminar como ilusão de um mundo que se apagou.
A inquietação universal sobre o desenvolvimento político das sociedades democráticas não deriva das concepções ou ideologias políticas que lhe configuraram, nem do esforço humano que busca reformá-la, “mas de uma crítica do significado retórico das antigas ideologias, na natureza ilusória de sua abordagem idealista e irrealista” [2], que permanece em contradição com os resultados do desenvolvimento econômico. A política é o espaço outorgado ao desenvolvimento humano, mas a economia é a base sobre a qual elas operam as suas mutações e mediações.
As formas da democracia substancial, mencionadas nos conceitos de Norberto Bobbio, buscam uma diferenciação radical do velho conceito de liberdade: da democracia “vazia” ou “das formas” focadas particularmente nos procedimentos que se compuseram como democracia liberal, num regime incapaz de realmente conferir efetividade aos direitos fundamentais. A instabilidade política e jurídica que caracteriza a atual democracia de representação não é causada primariamente, então, pela emergência da extrema direita em escala global, pois estas formações políticas surgem como frustração das promessas não cumpridas pelos governos democrático-liberais do último terço do século.
Esta negação das promessas ocorre, em alguns governos, por adesão consciente aos limites impostos pela ordem global às suas ações; em outros governos por impossibilidade de ultrapassar os limites, constrangidos pelas pressões externas do grande capital que se move, hoje, como consciência universal da política. E o fazem, de uma parte, restringindo os marcos jurídicos que organizam os estados modernos na sua origem revolucionária, e –de outra parte– pelas novas tecnologias digitais de comunicação e controle, cujas transformações fizeram do mundo todo um mundo só.
São estas condições que, ao mesmo tempo, fragmentam materialmente a estrutura de classes e unificam o planeta no modo de vida e nas diversas formas perversas de consumo. Por isso, a criação das expectativas para o “novo democrático”, que ainda não apareceu no horizonte, tanto poderia ser para a estabilidade como para instabilidade, embora “sempre (a partir) das expectativas dos mercados e dos investimentos, nunca das expectativas das pessoas comuns, que vivem no seu entorno” (Santos, 1998)[3]. Como se pode projetar um futuro coerente a partir de um passado autêntico (ou inautêntico), se o passado ideal das revoluções se perdeu na poeira da História?
Uma garimpagem feita na obra de Walter de Benjamin faz pensar que “a autenticidade de uma coisa é a essência de tudo o que é transmissível, desde o seu surgimento, indo de sua duração substantiva até o testemunho de sua história. Como o testemunho histórico poderá se apoiar em autenticidades, quando seus elementos anteriores foram extintos pela reprodutibilidade técnica, sem duração da sua substância?(Machado, 2005)[4].
A constatação feita por Benjamin há quase um século, sobre a reprodutibilidade da obra de arte é válida para pensar, também, as formas jurídicas da democracia constitucional, que já começaram a ser atingidas pelo imaginário “tech”, muito longe do seu auge de hoje, que mudou completamente o imaginário social e foi fundido, na sequência, à base material da vida: na produção, no comércio, na indústria cultural e logo na cultura universal, atingindo em cheio os modos de pensar a vida, tanto pela arte, pela economia, como pelo fazer jurídico, para serem compatíveis com uma vida comum menos regionalizada.
São estes fluxos, como define Castells, dotados pelas novas tecnologias que percorrem ao mesmo tempo tanto a “base” (pelas tecnologias integradas no novo sistema produtivo), como a superestrutura (como novas formas de opressão), para logo formar um só movimento, que tanto alteram como reinterpretam as regras pelas quais operam as democracias políticas de representação, que são atingidas por uma jurisprudência de conveniência para o mercado (de forma construtiva ou destrutiva) e pela conduta da própria representação política.
As taxas de Trump são um marco histórico, tanto dos limites dos Estados de Direito como do conceito de organização estatal moderna, bem como são fundamentais para o exercício do autoritarismo antidemocrático, dentro de uma ordem concreta que pode acolher o vírus do fascismo. Esta ordem, portanto, torna-se um campo hábil para modular as técnicas autoritárias para gerenciar as instituições do Estado: a retórica da exploração corporativa – mundial e global – ordena, a partir desta nova situação, os novos limites do Estado de Direito nos seus fundamentos próprios (contido nas leis internas) ou impróprios (na força do “abraço letal da pilhagem”).[5]
O governo americano, de dentro de uma democracia constitucional, desfechou uma série de ações contra os poderes da sua Federação, mas o fez também, especialmente face à avocação da Lei Magnitsky, contra a soberania de vários países, que até então eram seus importantes parceiros comerciais. Internamente, desfechou verdadeiras caçadas aos imigrantes “indocumentados”, apanhados nas ruas pelas forças policiais a serviço de um Presidente delirante, que não está sujeito a qualquer moderação pelos poderes da República. O trumpismo, assim, tornou-se paradigma de um novo tipo de repressão fora da lei, testando os limites da legitimidade da Constituição Americana: “o Estado de Direito terá ainda um papel a desempenhar na tentativa de (pela Constituição escrita) estabelecer as condições para o retorno ao exercício das liberdades democráticas?” (Mattei, 2013)[6]
O mais provável é que não até o final da gestão Trump, pois as principais ações de violação de direitos pelo Estado americano, depois da 2ª Guerra Mundial, foram cometidas em países estrangeiros, enquanto internamente, ao contrário, avançava a legalidade federal para combater o racismo e para prover amplos espaços de vivência e apropriação cultural pelas classes médias ilustradas. No atual ciclo histórico, todavia, no auge da perda da hegemonia da democracia constitucional, é visível o “declínio do papel dos Estados, comparado ao ascenso dos grandes agentes empresariais”[7], transformando o direito, mundialmente, em pura regra e “produto da economia”
A fragilização da aplicação das normas mais nobres do Estado de Direito como aquelas que referem aos direitos humanos – consagradas em normas internacionais já pactuadas – bem como a relativização do garantismo jurídico, quanto aos direitos fundamentais (já que as formas jurídicas ficam subordinados à retorica do desenvolvimento econômico) serve fundamentalmente ao “topo” da economia corporativa e bloqueiam os direitos para a “base”, que aprofunda sua subordinação ao altar da exploração desregulada.
É a época em que as guerras são descentralizadas com seus modos e tempos acordados entre aliados, nos seus termos mais comezinhos, para manter todos os países ricos no centro político orgânico do capital. Não se trata mais de formar e fortalecer a nação, mas de melhorias no seu ambiente de negócios no espaço global: “Em suma, a guerra tradicional entre Estados, precisamente por suas características intrinsecamente destrutivas (dirigidas) não admite, hoje, justificativas morais ou políticas. É por natureza um mal absoluto, em relação ao qual os antigos limites da lei natural da guerra justa são agora insuficientes, uma vez que todos os limites naturais às suas capacidades destrutivas foram excedidos.” (Ferrajoli,2004)[8]
O estrangulamento da democracia política, herdeira das grandes revoluções democráticas do ocidente –aqui, tomadas na sua essencialidade democrática e burguesa, que conformaram o Estado de Direito-, este estrangulamento pressiona a governança da democracia política para esta demonstrar-se cada vez mais incapaz de assegurar os Direitos Fundamentais, pois sua base econômica naturaliza a concentração de renda e perverte as próprias funções do parlamento (Dahrendorf,1997)[9].
Estes limites da democracia representativa hoje, também presentes nos países do núcleo orgânico do sistema do capital, ocorrem igualmente nos países onde a integração das religiões com o estado – embora de formas diferentes daquelas que se discutiam nos conflitos com a Igreja Católica – se dá como uma nova forma de acumulação. A época que serviu de referência aos estudos de Kelsen sobre o conceito de laicidade do Estado, estava muito distante da situação de hoje, quando a violenta pressão das religiões do dinheiro – que se tornaram verdadeiros empresas e partidos políticos modernos (na sua pior versão)- tornaram-se os inventores do orçamento secreto, fundindo a política com a religião de maneira criminosa.[10]
Ferrajoli mostra, todavia, que “o paradigma da democracia constitucional é ainda um paradigma embrionário, que pode e deve ser ampliado em três direções: primeiro, rumo à garantia de todos os direitos, não só os direitos de liberdade, mas também os direitos sociais; segundo, contra todos os poderes, não só os poderes públicos, mas também os poderes privados; terceiro, em todos os níveis, não só no direito estatal, mas também no direito internacional.” (Kelsen, 2021).[11]
O discurso do golpe de estado continuado ainda em andamento, mesmo que modulado pelos seus epígonos de extrema direita, realiza o mesmo movimento pelos quais Trump processa os seus arremedos golpistas: atravessa ostensivamente as linhas da constituição para deslegitimar o direito positivo. A observância dos direitos do homem é uma condição necessária para a legitimidade do direito positivo “visto que o direito positivo deve respeitar, proteger e fomentar, os direitos do homem para ser legitimo e portanto, para satisfazer a sua pretensão de correção expressa-se na prioridade dos direitos do homem (que) estão, com isso, em uma relação necessária para com o direito positivo”, (Alexy,2007). [12]
São estas expansões que estão contidas embrionariamente no direito moderno e na sua configuração como Estado de Direito, Estado Democrático de Direito, com sua complementariedade como Estado Social, como “três expansões igualmente indispensáveis do paradigma constitucional e garantista herdado da tradição. Este paradigma, como sabemos, nasceu em defesa dos direitos de liberdade; conjuga-se apenas como um sistema de limites aos poderes públicos, não aos poderes econômicos e privados — que a tradição liberal confundiu com os direitos de liberdade — e (que) permaneceu dentro dos limites do Estado-nação.”[13]
Os estudos sobre os limites da democracia constitucional, como se conclui agora no período de crise aguda dos valores da modernidade, exige a atenção, todavia, de duas premissas epistêmicas. A primeira sobre o estado da arte da subjetividade pública como declínio do mercado das ideias, conforme Casara (2024)[14], que as novas tecnologias reforçaram em substituição dos valores ético-morais tradicionais da modernidade. A segunda, sobre o grau de confiança (ou desconfiança) no direito público, no qual o jogo das formas jurídicas sempre pode colocar uma cortina de fumaça, na proteção da confiança no Direito e no Estado, (Couto e Silva).[15]
Sobre a primeira questão, subjetividade pública, parece certo que pelo menos 1/3 da cidadania teria apreço por um governo forte, sem democracia política. Sobre a segunda questão, sobre como a atitude (de confiança) se expressa perante o Estado Democrático – se gerando instabilidade ou estabilidade constitucional – como marca do extravasamento ou do respeito aos limites da democracia constitucional: a extrema direita o faz buscando o golpe de estado contínuo e os democratas de todas as extrações políticas resistem exigindo a ampliação da força normativa da Constituição. Os níveis de confiança nas relações jurídicas geradas pelo Estado, são produzidos pelo “guardião da constituição”, o STF, sempre assediado pela força dos poderes fáticos, que só ganham expressão quando “a ação enterra a filosofia”.
[1]Meyer-Hesemann “in” ‘Positivismo jurídico e nazismo, formação, superação e refutação da lenda do positivismo’ -Ed. Contracorrente – pg. 330 -Rodrigo Borges Valadão).
[2] PECES-BARBA, Gregorio – LIBERTAD, PODER,SOCIALISMO. Madrid: Editorial Civita, S.A., 1978, p. 79.
[3] SANTOS, Boaventura de Sousa. Reinventar a Democracia. Direcção de Mário Soares. 1.ª Edição. Cadernos Democráticos. Lisboa, Portugal: Gradiva. 1998,p .45: “(…)O seu carácter imprevisível e pouco organizado permite redistribuir socialmente a ansiedade e a insegurança, criando condições para que a ansiedade dos excluídos, se transforme em causa de ansiedade para os incluídos, e se torne socialmente evidente que a redução da ansiedade de uns não é possível sem a redução da ansiedade dos outro”.
[4] MACHADO, André. “A técnica liberou a arte do ritual”. O Globo, Rio de Janeiro, 26 de dez. 2005, Caderno Informática etc, p.1.
[5] Ibid.
[6] MATTEI, Ugo e NADER, Laura. PILHAGEM Quando o Estado de Direito é Ilegal. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013, p.11
[7] Ibid.
[8] FERRAJOLI, Luigi. Razones jurídicas del pacifismo. Ediciónde Gerardo Pisarello. Madrid: Editorial Trotta,A.S,2004.p.31
[9] DAHRENDORF, Ralf. A Lei e A Ordem. Rio de Janeiro: Instituto Liberal,1997, p.83.
[10] KELSEN, Hans. A teoria do Estado de Dante Alighieri. Tradução: Luiz Felipe Brandão Osório. São Paulo: Contracorrente, 2021, p. 145. “…valendo-se de todos os meios de uma dialética afiada, de uma convicção entusiasmada, ele (Dante) se esforçou para reunir os argumentos para defender um poder estatal autônomo; e, agora, quando se trata de tirar as conclusões, fala, com palavras vagas ambíguas, de uma “reverentia de César a Pedro” e de que de algum modo a felicidade terrena depende propriamente do céu. Com isso, depois de tanto esforço em sua ousada argumentação, Dante mesmo derruba toda sua construção!”
[11] FERRAJOLI, Luigi. Garantismo: una discusión sobre derecho y democracia. Edição de Miguel Carbonell Madrid: Editorial Trotta S.A. 2008, p.35: (…) Y también en el sentido de que el paradigma de la democracia constitucional es todavía un paradigma embrional, que puede y debe ser extendido en una triple-direccións ante todo, hacia la garantia de todos los derechos, no sólo de los derechos de libertad sino tambien de tos derecitos sociales; en segundo lugar, frente a todos los poderes, no sólo frente a los poderes públicos sino también frente a los poderes privados; en tercer lugar, a todos los niveles, no solo en el derecho estatal sino tambien en el derecho internacional.”
[12] ALEXY, ROBERTO. Constitucionalismo discursivo; HECK, Luís Afonso, organizador/tradutor. Porto Alegre: Editora: Livraria do Advogado, 2007, p.47.
[13] Ibid., p.35: “Se trata de tres expansiones, todas igualmente indispensables, del paradigma garantista y constitucional legado de la tradición. Este paradigma, como sabemos, ha nacido en defensa de los derechos de libertad, ha sido conjugado sólo como sistema de límites a los poderes públicos y no a los poderes económicos y privados –que la tradición liberal ha confundido con los derechos de libertad– y ha permanecido dentro de los confines del Estado nación.”
[14] CASARA, Rubens. A construção do idiota- o processo de idiossubjetivação. Rio de Janeiro: da Vinci Livros, 2024, p. 34.: “A própria percepção sobre o conceito, os limites e os fins da democracia, sofre uma alteração profunda. Para alguns, a democracia volta a possuir uma dimensão meramente formal, que se identifica com a possibilidade de pessoas votarem em outras pessoas na formação de um governo, enquanto outros reduzem o ideal democrático ao estabelecimento de um “mercado de ideias”, no qual os princípios, as regras e os valores tornam-se negociáveis a partir de cálculos de interesse”.
[15] SILVA, Almiro do Couto e – O princípio da segurança jurídica (proteção à confiança) no direito público brasileiro e o direito da administração pública de anular seus próprios atos administrativos”. Editor: Coimbra Editora, . P.559.: “(…)nos dá a esperança de que (se) abrirá caminho para que, daqui para a frente, se consolide, nos julgados dos tribunais brasileiros, especialmente do Supremo Tribunal Federal, a ideia de que tanto a legalidade como a segurança jurídica são princípios constitucionais que, em face do caso concreto, deverão ser sopesados e ponderados, para definir qual deles fará com que a decisão realize a justiça material. É nesse rumo, aliás, que se orientou o direito da União Europeia, a partir das contribuições doutrinárias e jurisprudenciais do direito alemão”.